31 dezembro 2020

O Sol também nasce


Mesmo em tempos de noites longas, o Sol acaba por nascer. Mesmo no final de um ano que tantos espíritos escureceu, o Sol também nasce.

Mesmo depois de uma passagem de ano com festejos anulados, condicionados ou proibidos, o Ano Novo nascerá.

Em cada dia, em cada Ano, haverá cores vitais a cintilar, aquecendo ânimos e repondo energias.

Para todos aqueles para quem o 2020 foi duro, o Sol também nasce.

2020 era um número bonito. “Objetivos 20-20”; “Agendas 20-20” foram durante muito tempo chavões sonantes de estratégias e de ideias mais ou menos esclarecidas, mais ou menos consequentes, antecipando um ano especial. Ironicamente 20-20 acabou por ser um ano mesmo muito especial que rompeu previsões, desorganizou objetivos e baralhou todas agendas.

Mas o Sol também nasce. Cada qual no seu canto, escondido ou exposto, sobrevivente de uma travessia inesperada, procurará um local onde respirar a luz que virá, inspirara-la a fundo, perscrutar horizontes, arriscar caminhos e… acreditar que o Sol sempre nasce. Força nisso! 

30 dezembro 2020

Espetáculo

 

O início da campanha de vacinação contra o Covid-19 é efetivamente um momento marcante, que esperamos venha a marcar um antes e um depois nesta época estranha que estamos a viver. Compreende-se que o momento seja divulgado e mediatizado, mas o espetáculo tem limites. Para que serve aquele aparato policial, como se fossem transportadas barras de ouro? Se eventualmente alguém conseguisse roubá-las, que faria com elas, dadas as dificílimas condições de transporte e armazenagem?

Cereja em cima do ridículo o bloqueio da escolta da GNR em Évora, pela PSP, por disputa de jurisdição. Se um criminoso em fuga atravessar uma destas fronteiras, os seus perseguidores não continuam? Não sei, mas depois das desafinações entre a PJ e a sua congénere militar em Tancos, só faltava ver este belo espírito de colaboração em que a formalidade rígida supera o mínimo bom senso e perguntamos: Não têm mais com que se preocupar? Nos casos sérios em que é mesmo necessário diálogo e cooperação entre das duas forças policiais, é este o espírito que prevalece?


20 dezembro 2020

Já vi este filme


A imagem de Eduardo Cabrita tentando defender o indefensável traz-me à memória Azeredo Lopes argumentando sobre Tancos e o célebre “no limite pode não ter havido furto nenhum!”. Neste caso, houve SEF, certamente, mas, enfim…  no limite pode deixar de haver.

O traço comum é a ligeireza com que supostos responsáveis ministeriais conseguem assumir tão facilmente uma postura de tamanha irresponsabilidade e fabulizar argumentos e suposições sem o mínimo de respeito pela inteligência de quem os ouve, os elegeu e a quem devem prestar contas.

Para ministros assim, efetivamente, basta ter sido fiel jotinha, assessor, chefe de gabinete e secretário de Estado. Se assim vamos a algum lado decente, obviamente que não! E encerro porque, a partir deste limite, já só me saem palavrões.

12 dezembro 2020

Para lá do mínimo


Pelo princípio, o salário deveria ser uma retribuição justa pelo valor criado por um trabalhador. Na prática a coisa complica-se, dado não ser evidente individualizar a contribuição de cada um e existindo mercado tanto do lado do trabalho, excesso ou falta de profissionais qualificados, como do lado do produto/serviço criado. Se, exagerando, não se consegue um profissional por menos de 10000 Euros/mês e a atividade gera apenas 5000, não funciona; se, contas feitas, descobre-se não ser possível pagar mais do que 50 Euros/mês, algo está errado na estrutura da empresa ou no seu posicionamento no mercado. Ambos os casos são inviáveis.

Esta introdução tem a ver com a questão do salário mínimo. Confesso que me surpreendo ao ver a quantidade de gente nesse nível. Enorme. Por coincidência, haverá assim tantas atividades e postos para os quais o SM é mesmo o justo e possível valor? Ou será apenas que, por excesso de oferta, os “empresários” pagam o mínimo… apenas porque não podem pagar ainda menos? Em ambos os casos algo está mal.

Obviamente que aumentar o salário mínimo à bruta tem implicações importantes que podem inviabilizar muitas empresas, mas a tendência de aumento do salário mínimo tem algo de positivo. É essencial que as empresas se procurem equipar e estruturar de forma a permitir contributos diferentes e crescentes dos seus colaboradores e também é importante que aqueles que pagam o mínimo pelo mínimo, evoluam…


11 dezembro 2020

DesTAPam-se os olhos


Para os portugueses que antes de viajar fazem contas à vida, a TAP é apenas uma alternativa, não necessariamente a mais escolhida, especialmente após a banalização das “low-cost”. Para eles, e para mim, como viajante, existir TAP ou não, não tem nenhuma dimensão estratégica e em pouco contribui para a minha felicidade; como contribuinte, existir uma TAP nacionalizada, já contribui e em muito para a nossa infelicidade.

Quando parecia que a companhia estava a caminho de ir ter que voar pelas suas próprias asas, eis que por burrice, teimosia ou cumulativamente outro defeito qualquer, inaceitáveis em quem gere o dinheiro de todos nós, ela volta a aterrar no colo do Estado e na conta dos contribuintes. É certo que o Covid-19 mudou muita coisa, mas mal estaríamos se o Governo aproveitasse para nacionalizar todo a indústria do turismo, por exemplo.

Reconhecida a cagada em que se meteram, desculpem, mas o nome é este, o impetuoso nacionalizador teve a ideia peregrina de fazer caucionar pelo Parlamento o plano de restruturação, como quem diz: Se for aprovado, a dolorosa fatura ficará numa conta alargada; se não passar e a empresa cair, a culpa será de uma qualquer “coligação negativa”. De mãos mais lavadas do que o próprio Pilatos? Grande exemplo! Entretanto, lá irão voar 3 mil milhões de euros, por teimosia e/ou burrice, e que muito falta fazem noutros domínios.

09 dezembro 2020

Desclassificar Camarate

 

Recordo-me daquele dia de dezembro em que o país atónito e apreensivo recebia a notícia do acidente de Camarate. Na jovem democracia, nunca algo de semelhante tinha ocorrido. O facto em si e as potenciais consequências assustavam. Recordo-me dos julgamentos sumários populares: - Foi um acidente! – Foi atentado! – Foram os comunistas! – Foi a CIA!

As conclusões oficiais e imediatas foram pelo acidente. Durante anos, associar a palavra atentado a Camarate foi tabu e motivo de indignação e insulto contra qualquer temerário que as evocasse. Dez (10!) comissões parlamentares de inquérito foram apontando para o atentado e evidenciando a falta de vontade e de eficácia da investigação criminal. Falou-se da questão de um eventual tráfico de armas que condenou o Ministro da Defesa e, por arrasto, o Primeiro-ministro.

Podemos imaginar que, na altura, assumir o atentado teria tido consequências devastadoras na ainda frágil democracia. Podíamos? O que não podemos, de todo, é passados 40 anos continuar sem saber o que realmente se passou antes, no dia e depois. Ainda falta vontade?  A revelação de toda a trama ainda fere alguém com poder para a travar? 40 anos depois, é obrigatório saber.


E ainda: 

Recordo-me da longa transmissão televisa das cerimónias fúnebres, em véspera de eleições. Arriscando fazer futurologia no passado: Tudo isto ajudou ou prejudicou o resultado de Soares Carneiro? Eu acho que prejudicou e acabou por confirmar uma derrota já previsível. Estas situações fortalecem os fortes e enfraquecem os fracos.

Soares Carneiro, sem chama nem carisma, “pau de cabeleira” da AD ficou adicionalmente exposto na sua fraca figura. Quem não queria votar nele, não mudou de ideias; quem estava na dúvida, em maior dúvida terá ficado ao vê-lo desamparado, sem tutela.


07 dezembro 2020

Função e estatuto

 Nos tempos que correm, de luta contra a propagação do Covid-19, as restrições de circulação visam obviamente forçar o pessoal a ficar em casa, a menos que haja algo mesmo essencial que obrigue a sair. O cidadão lambda está, portanto, confinado, a menos de necessidades bem caraterizadas.

Curiosamente, há exceções que não funcionam pela necessidade, mas pelo estatuto. Exemplo a Resolução do Conselho de Ministros n.º 89-A/2020 sobre a limitação de circulação entre concelhos, prevê nas isenções - c) Aos titulares de cargos políticos, magistrados e dirigentes dos parceiros sociais e dos partidos políticos representados na Assembleia da República;

Se eu bem entendo, aqui, um dirigente de um partido, mas apenas dos da primeira divisão, note-se, pode circular, independentemente da razão. Tem lógica? Não!

Entretanto, achamos muito divertido que o Presidente da República tenha um esquema para não deixar de dar o seu mergulho e anda meio país escandalizado por alguém ter oferecido umas garrafas de vinho a um polícia para furar o confinamento. Certo, não é comparável, já que o primeiro caso não sai da legalidade e o segundo sim, mas… num país em que esta corrupção é justamente considerada primeira página, seria eu muito feliz.

05 dezembro 2020

O Tino não chegou...


Aproximam-se as presidenciais e, com tanta previsibilidade no resultado, ainda nos arriscamos a ver algumas surpresas, não no principal, mas no acessório.

Surpreende-me a campanha anti-Chega, baseada no caráter condenável da sua ideologia. Eu acho que o problema principal com o Chega não é a ideologia, falta-lhe tanto em ideologia, quanto lhe sobra em incoerência e oportunismo. Se André Ventura julgar que falar contra os ciganos lhe traz votos, ele avança; se entender que uma gravata com riscas amarelas e bolinhas roxas funciona bem, ela vai já comprar uma dúzia. O Chega não tem ideias feitas, nem nenhuma conceção fechada; ele luta pela influência e pelo poder, chutando com o pé mais à mão.

O seu crescimento e aparente sucesso, pelo menos temporários, vêm de preencher um espaço deixado vazio pelos “do costume”. Escalas e estilos à parte, sabemos que os do costume também não se importam se ser ateus ferrenhos de manhã e ir a Fátima à tarde, se isso ajudar.  A diferença é o Chega ultrapassar limites considerados linhas vermelhas, algumas delas pintadas um pouco à força.

Lembram-se do Tino de Rans nas últimas Presidenciais? Não precisou de ideologia nenhuma para ter 152 000 votos, bastou ser radicalmente diferente dos padrões estabelecidos. Viajando um pouco: Pepe Grillo em Itália, Tiririca no Brasil e Trump nos USA têm o seu sucesso baseado exatamente na mesma tática: enviar “aquela parte” os de sempre e esse palavreado encontrar ouvidos recetivos.

Gritar “Aqui d’el Rei!” contra a “ideologia” do Chega, manifestamente não chega!

03 dezembro 2020

Alguma coisa acontece


Cantava Caetano Veloso que alguma coisa acontecia no seu coração, que só quando cruzava a Ipiranga e a Avenida São João…

Noutras latitudes, outras músicas, ou mesmo sem música, mas algo acontece no meu coração quando cruzo Passos Manuel e Santa Catarina, mesmo sem rimas e com uma toponímia muito menos sonante. Dispensando considerações arquitetónicas e históricas que não as sei fazer, aquele cruzamento tem algo de especial.

De um lado a Batalha, o meu porto de chegada ao Porto, durante muitos anos de transportes públicos; Santa Catarina, em boa hora pedonal, que rasga a cidade e onde se ancora uma boa parte do comércio tradicional; Passos Manuel que mergulha para o rio da Avenida, sendo que as ruas no Porto vão muitas vezes desaguar a rios e vales. E a subida para os “pobeiros” e para o porto mais profundo e popular, onde não há “spots” turísticos de nota e a cidade pouco mudou. Ali ao lado o Coliseu, onde tantos dias se ouviram coisas como o primeiro dia e a quem a cidade recusou o último dia. E depois, ao dobrar da esquina, o majestoso Majestic, agora a fechar as portas, indefinidamente.

A primeira reação é de um duplo lamento, pelo desaparecimento daquele espaço, de uma riqueza única no género e pelo que significa um café tradicional a menos na vida da cidade. Numa segunda vista, um café que cobra 5 Euros por um café, não é um café social da cidade. É um local a ser visitado por experiência, uma vez, em visita à cidade, que vive da rotação das experiências e da cadencia das aterragens em Francisco Sá Carneiro. Não seria possível “ter dado uma volta”…? Entre o Majestic fechado e o Imperial McDo, nem sei que diga.

01 dezembro 2020

De charanga y pandereta


Este título faz parte de um poema irónico e corrosivo sobre uma certa Espanha caricatural e retrógrada, escrito pelo andaluz António Machado (1875-1936). Encontrei-o num CD de Joan Manuel Serrat, de músicas feitas sobre textos do poeta, sendo a mais famosa a do “Caminante no hay camino, se hace camino al andar” e revi-o mais recentemente citado num livro sobre a Andaluzia, antes, durante e depois do domínio muçulmano: Andalousie, Vérités et Legendes, por Joseph Perez.

Lá como cá, esse período da história tende a ser visto de forma redutora, seja como um desvio pontual e rapidamente normalizado, seja como um período culturalmente rico que as armas castraram. Uma realidade que ultrapassa 5 séculos é naturalmente muito mais complexa e este livro veio-me parar às mãos no processo de mais aprender sobre o tema, mas esse não é o tema de hoje.

Sobre a imagem “típica” do flamengo, ciganos e touradas, da “charanga y pandereta”, diz J. Perez que sua popularidade cresce numa certa franja da população espanhola e muito fortemente na Andaluzia, como reação à tentativa de modernizar e de trazer ao país as luzes europeias, um efeito colateral das invasões napoleónicas do início de século XIX. Enquanto o pé direito carrega no acelerador, promovendo uma certa (a sua) ideia de evolução e modernidade, o esquerdo trava, reforçando a ligação ao passado e à especificidade local, contrariando o importado (para a imagem ser mais feliz, talvez os lados dos pedais devessem ser permutados).

É um processo relativamente comum de reação à mudança, especialmente presente em muitas comunidades expatriadas, que tanto se podem integrar, como amplificar o seu arreigo à identidade e cultura originais. Quanto mais me querem impingir hambúrgueres, mais aprecio a posta mirandesa. Menos ironicamente, podemos recordar como o Estado Novo utilizou e promoveu uma certa imagem da “cultura popular”, para bloquear o interesse e incentivar a falta do mesmo por coisas mais “modernas”…

As tradições tanto podem ser fonte de riqueza e raiz fecunda, como um lastro que atrasa a evolução. O empurrar a modernidade tanto pode ter como consequência um efetivo e positivo progresso como o enquistamento e um retrocesso nocivo. Nem o povo se educa e se desenvolve por decreto, por muitos iluminados que sejam/se julguem ser os legisladores, nem o congelamento em referências antigas tem futuro. Obviamente… ! E em nada ajuda a religião do fraturar, que tantos gostam de praticar…  quase um século depois, continuando a citar Machado, lá continuam e dificilmente reconciliáveis “las dos Españas”.


29 novembro 2020

Sobre a saúde


 

Este texto não de destina ao destina ao Sistema Nacional de Saúde em si, nem aos seus profissionais, independentemente do que funciona bem ou mal por lá.

Este texto endereça-se à visão que alguns políticos, e não só, têm do mesmo e da saúde dos portugueses:  A saúde não deve ser um negócio, sendo inaceitável permitir a entidades privadas lucrar com a saúde.

Bem… mas se for necessário um exame complexo, uma ressonância magnética por exemplo, no hospital público de Braga esperam-se meses, na Clipóvoa privada poderá ser para o próprio dia.

Se existe um equipamento operacional e disponível, não faz sentido montar um protocolo, bem negociado, que o permita utilizar a partir do SNS, para quem necessita? É pecado contratualizar serviços a privados? Mas, uma fatia importante do custo associado, equipamento e infraestrutura, não terá, porventura, a mesma origem, privada, eventualmente comum a ambos. E quanto do orçamento do sistema de saúde público não remunera fornecedores privados?

Limitar o acesso à saúde dos portugueses por um preconceito ideológico mal fundamentado e, ao mesmo tempo, encher a boca com os méritos de um SNS público é incoerente. Não quero aproveitar para especular sobre o eventual interesse tático da situação atual, em que o cidadão lambda, não atendido no SNS, cai na necessidade da rede privada, aliviando a carga e os custos no sistema público.

Mas, podemos estar descansados, porque “tudo” está a ser feito para nada falhar na próxima vacinação Covid. Podemos estar descansados quanto à capacidade de antecipação e de preparação para algo tão novo, como para a resposta ao banal… Considerando o que falha na vacinação contra a simples gripe…


22 novembro 2020

Unamuno



Foi a este e ao Cervantes que Adolfo Correia da Rocha foi buscar o nome próprio para juntar à planta brava da montanha, Torga, e criar o seu pseudónimo literário.

Passando ao lado da polémica dos seus apoios e desapoios, posições tresmalhadas ou coerentes e se o franquismo o matou e depois solenemente enterrou, ou não… e concentrando-nos no que fica de fundamental, a obra.

Num destes dias longos de fim de semana caseiro reencontrei a "Névoa” entre os meus livros. É um daqueles em que quase com pena vemos aproximar-se o final da obra e do prazer de uma leitura que não se quer ver terminada.

Magistral. Muito bem escrito e sendo relativamente curto, tem uma profundidade e abrangência enormes. Dentro da simplicidade de muito discurso direto, são 200 páginas sem palavras complicadas. Mas que de imagem em imagem, quase linearmente, sem saltos nem surpresas de arrebatar, nos despe e mostra a simplicidade da complexa condição humana.

Bravo, senhor Miguel.

12 novembro 2020

Triste podium


O livro de António Barreto, “Salazar, Cunhal e Soares” é um interessante retrato dos três políticos que mais marcaram o século XX português. Não havendo muitas dúvidas sobre a pertinência da escolha, uma análise do perfil e da obra dos mesmos acaba por ser bastante deprimente sobre as grandezas e pequenezas (mais estas…) da nossa história recente e a herança que nos deixaram.

Para começar, a longevidade do Sr de Santa Comba. Vamos apostar que, sem o desgaste da guerra colonial, o regime não tinha caído, pelo menos naquela altura, pelo menos daquela forma tão rotunda? A esperteza oportunista em que tudo é pequenino e as lideranças se querem autoritárias, avaras e patriarcais não se institui em credo nominativo. Não há neossalazaristas que se vejam, mas o povo revê-se e aceita com alguma facilidade um líder austero e ditador, que faz e desfaz as regras como entende, controlando a distribuição de uns (poucos) rebuçaditos aos meninos. Um severo ministro das finanças é uma instituição recorrente e a respeitar.

Cunhal, paradoxal. Um partido dos que mais se proclamavam ao serviço do povo e do país, tentou anular a democracia e colocou os interesses de uma potencia estrangeira acima dos interesses nacionais como nenhum outro. A famosa coerência que tantos louvaram tem outro nome: teimosia cega e incapacidade/ desonestidade, típicas do maior cego. Certamente que se o “processo” não tivesse abortado em 1975, Cunhal teria ficado para a história numa galeria bastante diferente. Muito interessante o relato de Jorge Miranda sobre os tempos conturbados “Da Revolução à Constituição - Memórias da Assembleia Constituinte”.

Soares: a empatia e o mérito de ter lutado por um regime muito mais próximo do desejado e acarinhado pela larga maioria do povo, que se queria ver num modelo progressista, mas em meridiano mais ocidental. Este enorme espaço da esquerda moderada foi liderado por Soares, aproveitando também o trabalho de Salazar, que conseguiu colocar indeléveis dúvidas no povo sobre a natureza dos pequenos-almoços comunistas e a real harmonia dos respetivos amanhãs. Para lá deste Soares lutador pela democracia, há brigas a mais na sua vida e realizações a menos, distinguindo-se mais na disputa pelo leme e muito menos na qualidade da navegação, uma vez ao comando. Quanto ao seu lado lunar, não se fica a olhar para Soares da mesma forma após ler “Contos Proibidos – Memórias de um PS desconhecido” de Rui Mateus.

E vão três.


09 novembro 2020

70 Milhões de Parvos

 


Ao contrário dos golpes palacianos, ou de caserna, em que ocorrem descontinuidades no poder, sem que a rua participe ou saiba bem o que se passa, nas revoluções há uma ignição, eventualmente provocada por uma questão secundária, mas que vai encontrar eco numa parte significativa da população, recetiva a uma mudança de regime, e que assim se consolida.

Acho que estamos a assistir a uma revolução, não necessariamente ao longo de uma simples madrugada, nem em direção a amanhãs entusiasmantes. Está em curso uma mudança significativa de valores e de princípios valorizados pelos eleitores. Os 70 milhões que nos USA votaram num parvo, não são todos parvos, basicamente não queriam mais do mesmo. Numa versão mais suave do que já foi, o “Front Nationale” francês arrisca-se a eleger o próximo presidente do país. Isto era um cenário de pesadelo considerado absolutamente impossível não há muito tempo. E mais exemplos não faltam.

A eleição de Biden (a derrota de Trump) é algo de positivo, mas não é nem deve ser considerada um alívio porque não consolida nada. A revolução contínua e não serve de muito condenar as faíscas quando se é descuidado com a pólvora.


30 outubro 2020

Três tempos e…

Tempo hoje:

Em outubro de 2020, num bonito e cerimonioso cenário, na Sorbonne, entre as figuras de Vitor Hugo e de Louis Pasteur, repousa a urna e é homenageado por toda a França o professor Samuel Paty, assinado por um islamista radical, e cujo crime foi ter mostrado numa aula as famosas caricaturas de Maomé, do Charlie Hebdo, no âmbito de uma discussão sobre a liberdade de expressão. Evocadas generosamente as três palavras: liberdade, igualdade e fraternidade.

Tempo antes:

Quantos “Maires”, galhardamente envergando a faixa tricolor, agora inquestionavelmente solidários com o luto, proclamando e repetindo as três palavras mágicas, num tempo antes, não fecharam os olhos e até ajudaram a construção de madraças suspeitas, com financiamentos de origem suspeita, com formações suspeitas, desde que isso os ajudasse a preservar o poder? Democracia a quanto obrigas?

Quantos intelectuais e outros que tais, que aplaudiram o filme de Jean-Luc Godard, o preservativo no nariz de João Paulo II, todas as provocações de bom e mau gosto, do “é proibido proibir”, estão calados, amedrontados ou intelectualmente acorrentados e porquê?

Tempo depois:

Diz o Presidente de lá que a França não renunciará às caricaturas religiosas. Do ponto de vista do princípio é coerente. Na prática, um vendaval se levanta, até maior do que a decapitação original provocara. Apetece questionar até onde irá este vendaval. Até as caricaturas serem aceites, sem causarem mortos, ou até um pouco mais de autocensura e chamemos-lhe respeito virem definitivamente amedrontar e acorrentar a liberdade de expressão? Certamente haverá mais mortos… mas qual será o próximo tempo?

 

13 outubro 2020

O dia em que o PS morreu


 

Após o 25 de Abril, o PS tornou-se rápida e claramente o maior partido português. Para lá da empatia e bonomia de Soares, havia um grande desejo de mudança, de progresso e de justiça social, mas em contexto ocidental. Sábia a escolha do povo. Era a vontade de uma coisa assim tipo Suécia, quando o outro partido, que na altura ainda não se chamava social-democrata, para muitos cheirava um pouco à antiga senhora.

Hoje, esse PS está morto e não é questão de lamentar a ausência dos fundadores, não foram santos e limpos como muitos imaginam. E ao executor darei um nome: Sócrates. Se não há virgindade antes do mesmo, a escala deste é outra e a sua herança assusta. Independentemente do resultado do processo que corre na justiça, ele está politicamente acabado, mas tanta trafulhice não é nem pode ter sido obra de um homem só, por mais poderoso que fosse. Houve Sócrates e houve companhia.

E à morte darei um momento. Quando António José Seguro foi saneado pela companhia.

E hoje podemos passar a certidão. As mudanças na Procuradoria Geral da República e no Tribunal de Contas, para lá de coisas de importância formal menor, como Vitor Escaria no gabinete do PM, atestam que a companhia está pujante e bem instalada. Atestam que o se o cancro até pode ter nascido com Sócrates, não morreu com o seu afastamento.

O PS, tal como muitos o viam em 1974, está definitivamente morto e ai, ai os populismos! São uma séria ameaça.

Imagem: versão impressa no Público de hoje.


04 outubro 2020

Apropriação e integração


Fazem-me muita alergia as polémicas com as chamadas apropriações culturais. Alguém de uma cultura utilizar uma referência cultural de outra ser condenável como um roubo. Como se cada manifestação cultural e cada agente pudessem ser catalogados, associados inequivocamente a uma cultura específica e fosse possível construir muros à volta. Isto é inviável e a História da Humanidade e das Artes está cheia de belas realizações mestiças.

Ridicularizando o que o merece: se eu usar uma boina vasca, umas havaianas brasileiras, cozinhar uma pizza ou preparar um sushi… será aceitável? E aquele cabelo louro do Neymar?

Mas o fundo do problema não é esse, de todo. Se um branco se vestir de zulu e dançar conforme, será fortemente recriminado, se um negro se trajar a rigor e dançar o vira, é um bom exemplo de integração. Obviamente que há questões de gosto e mau gosto. Não aprecio de todo as varinas, tricanas e minhotas das marches populares, mas nunca me passou pela cabeça apelar à sua censura. As ditaduras do gosto acabam sempre em coisas feias.

Nos anos 80 a Brigada Vitor Jara pegou em temas tradicionais e interpretou-os com instrumentos populares, mas sem respeitar as suas regiões de origem. Um trabalho excelente, que muito contribuiu para lançar um grande interesse são pela música tradicional portuguesa. Mas … um cavaquinho ir colorir um tema da Beira Baixa ou um adufe vir marcar um do Minho? E as enormes influências africanas em muita boa música popular portuguesa? E o ukulele??


01 outubro 2020

Recuperação e Resiliência


 A aplicação da bazuca dos fundos europeus para a recuperação pós-covid recebeu o nome de resiliência. Não me parece feliz. Resiliência é resistência, aguentar, mas nós precisamos muito mais de que a manutenção e a salvaguarda do que existia antes. 

Precisamos de desenvolvimento, a sério, de formação e qualificação, a sério, um Estado de direito a funcionar, de ter a justiça a aplicar a legislação célere e a sério. De novas mentalidades, de uma cultura de inovação, de risco. Basicamente fazer mais coisas e melhor. De preferência coisas que sejam faturadas por empresas, em ambiente competitivo e não em circuitos fechados, controlados. Não deverão existir dúvidas sobre a pertinência deste princípio, não será certamente um tema fraturante. 

Infelizmente, parece que o conceito de resiliência prevaleceu. Resiliência de um sistema que não funcionou, que é o Estado gastar, gastar... Estes anúncios de “investimento” público no SNS, que necessita, e em pontes e estradas, bastante mais discutível, faz-me lembrar tristemente a resposta a uma outra crise e aos “investimentos” no parque escolar e TGV’s… de má memória. Efetivamente, o betão é muito resiliente.

22 setembro 2020

De Portugal e dos Algarves


 

Se desde Afonso III e a conquista definitiva de Silves passou a existir rei de Portugal e dos Algarves, se hoje o antigo ocidente do Andaluz é simplesmente uma província do país, aquela terra, para lá dos montes de Monchique e Caldeirão, continua a ter algo de diferente. 

Não sou do tempo do Algarve virgem, das pequenas aldeias e portos de pesca, sem as urbanizações e demais aflições. Sou do tempo em que a viagem, no verão, pois claro, incluía uma travessia árdua de longas searas escaldantes em estrada nacional e sem climatização para amenizar. Era muito longe, reforçando o exotismo e o exorcismo dos arrepios das ondas e vagas do atlântico mais a norte. 

Não sou daqueles para quem verão e Algarve são sinónimos, pelo contrário, mais facilmente me ouvirão dizer, “Tudo menos Algarve”. Apenas para Sol e praia não me mexo. 

Ao contrário do restante ex-Andaluz, o património histórico é bastante limitado. Para lá de uns pequenos cantos reservados e umas ruínas em Sines ou Aljezur, nada disto tem paralelo com a exuberância do outro lado e descontando já de caras o Alhambra. 

No entanto, de vez em quando, por lá passo, indeciso entre a espetacularidade natural do barlavento e a tranquilidade do sotavento. Dois qualificantes geográficos exclusivos do pequeno reino. Ficam sentimentos misturados. Se, por um lado, a devassa urbanística e de frequentação são impossíveis de ignorar e de facilmente aceitar, por outro lado, aquele ar, aquelas águas, têm um embalo e um encanto que se colam. 

No momento do regresso, quando se aponta o Norte, para vencer a serra, agora com as novas facilidades da autoestrada e do ar condicionado, há um sentimento de realmente deixar qualquer coisa de diferente. Entre “Tudo menos Algarve” e a qualquer coisa que por lá fica na partida, nem sei que diga.

29 agosto 2020

“Reguengolaniar”


 

O triste relato e retrato dos acontecimentos em Reguengos de Monsaraz tem um significado que ultrapassa o lar de idosos da cidade alentejana e o contexto da atual pandemia. Tanta falha, desleixo, irresponsabilidade e inação são um sinal de um sistema disfuncional. E este problema não é certamente exclusivo de Reguengos. 

 Em quantas direções, administrações, regionais ou municipais e outras que tais estão nomeados/colocados dirigentes/responsáveis desprovidos de cartão partidário, simplesmente pela sua competência? Em quantas cidades e vilas o poder autárquico e autocrático sustenta e controla uma fatia excessiva da sociedade/economia local, asfixiando e condenando toda iniciativa ou critica que o possa questionar e fazer “avançar a terra”? 

 Qual é o contrapeso que trava estes pesos pesados? As eleições e a alternância democrática? Teoricamente sim, mas a prática prova que estes sistemas acabam por se enraizar de tal forma que sobrevivem com facilidade a esse escrutínio, amplificando até a cada mandato a sua pegada sufocadora. 

Falta contrapeso e esse escrutínio e freio são fundamentais ao saudável desenvolvimento do país, especialmente do interior. Depois, não vale a pena chorar… 

Infelizmente este flagelo acaba por ser vertical, atingindo vários níveis do poder, embora em níveis mais elevados a visibilidade seja maior e a vigilância potencial mais elevada. Ou, nem por isso… a nomeação de Vitor Escária como chefe de gabinete do nosso primeiro ministro (que tão bem se portou neste processo) poderia ter sido mais escrutinada.

17 agosto 2020

Isto de cativar…

 

É necessário denunciar Luis de Camões. Então, não é que em vez de condenar a escravatura, resolveu escrever poemas sobra uma bela (?) cativa que supostamente o tinha cativo – rica ironia! Um mau exemplo que perdurou. Mesmo no século XX, reputados esclavagistas como Zeca Afonso e Sérgio Godinho ainda tiveram o desplante de musicar e cantar a “bela cativa”. Obviamente, não podemos nem devemos olvidar que o poeta, despudorado esclavagista, manteve até à sua morte um escravo, Jau, trazido do Oriente. 

Os Lusíadas são pouco mais do que o exaltar de uma campanha miserável que levou a escravatura aos quatro cantos do mundo. Algo que nos deveríamos envergonhar profundamente. “Shame on you!”; queimem os livros; estátuas abaixo e toponímia corrigida! 

E não nos acusem de violência. Num passado não muito longínquo, jovens burgueses revoltados contra o seu próprio meio sociocultural, chegaram a despoletar bombas em estações de caminho de ferro. Aqui não se mata ninguém, apenas uma cultura podre, que indiscutivelmente é podre e nefasta. 

Não, ainda não chegaram ao ponto de derrubar estátuas de Camões e mudar nome de ruas e praças, mas a lógica subjacente está lá, se pensarmos, por exemplo, no Padre António Vieira. 

Sim, está em causa destruir uma cultura, a própria. Sim, é esse o objetivo destas excitações. Com todos os defeitos e virtudes, crimes e maravilhas que balizaram o seu caminho é a nossa história e raiz. O mínimo dos mínimos é construir o futuro lendo justamente o passado. As políticas de terra queimada nunca trouxeram nada de bom, especialmente no domínio cultural. Isto de cativar julgamentos e aprisionar pensamentos é muito mau sinal.


14 agosto 2020

“Hidrogenizar” a energia

 

Quando se fala em descarbonizar a produção de energia, estamos a falar em substituir os combustíveis de origem fóssil, produtores de CO2 por “outra coisa”. Essa outra coisa pode ser energia hídrica, ai os rios e os peixes, as eólicas, ai a paisagem e os pássaros, o nuclear, ai os riscos e os resíduos e por aí fora, entre outras alternativas e ais. 

 O hidrogénio não é nenhuma fonte de energia… usamos energia elétrica para o produzir, vinda de um ai qualquer, ele é armazenado e posteriormente devolve parte da energia elétrica que o produziu. É apenas um acumulador, digamos que uma bateria diferente… 

 Poderá ser um acumulador mais eficaz e interessante do que os existentes e permitir um armazenamento mais vantajoso, mas nada mais do que isso. Convém ainda recordar que a sua utilização ainda está muito na fase protótipo. Não há escala nem experiência consolidada. 

 Quando, neste contexto, vejo tanta excitação com tantos milhões para uma coisa tecnologicamente tão embrionária e com impacto real tão limitado na tal descarbonização, os ais são muitos.

05 maio 2020

Legitimidade


Independentemente de considerações técnicas linguísticas mais elaboradas, ser legítimo, na raiz, significa de acordo com a lei. Para lá da conformidade com a letra das normas formais, pode-se invocar legitimidade noutras situações. Por exemplo, é legitimo ter a expetativa de uma vida melhor e será tão mais formalmente legítimo quanto a lei não o proíbe.

Mas também há ruturas na legitimidade. Por exemplo, uma revolução nunca será legitima à luz do quadro vigente, pela simples razão de que certamente nenhum código prevê e enquadra uma transição de poder dessa forma. Aí teremos a chamada legitimidade revolucionária, indispensável, mas que se quer transitória. E não faltam revoluções em que os seus líderes se “legitimam” donos do poder ad eternum, mesmo à revelia do programa inicial. O "Ganhamos, é nosso!", foi um princípio infelizmente adotado em muitas independências pós-coloniais.

Depois, há as auto-legitimizações, em que se trata de reformatar, adaptar a lei com o único objetivo de servir um interesse particular e não o geral. Por exemplo, mudar uma Constituição para eliminar a limitação de mandatos, quando o Presidente em funções chega ao limite.

Tudo isto vem a propósito das comemorações do 1º de Maio pela CGTP em Lisboa. À luz das regras gerais em vigor no dia era ilegítima, iníqua e irresponsável. O fato de na regulamentação do estado de emergência, ter sido acrescentada uma alínea muito especifica a legitimar o evento, pode ter resolvido o problema formal, mas não resolve o problema de fundo, pelo contrário. Um xadrez que se dispensava ter sido jogado.

01 maio 2020

Crime e castigo


O local da bonita foto acima, que não é de hoje, hoje o tempo esteve cinzento, é no limite do meu concelho de residência. Num dos meus circuitos de bicicleta habituais atravesso ali o rio Neiva e percorro umas centenas de metros na margem norte, até regressar ao lado sul no Minante.

Hoje, ser-me-ia proibido fazer essa travessia e sair do meu concelho, mas arrisquei. Com espírito de contrabandista, lancei-me no troço clandestino. Nesse percurso existe uma passagem improvisada sobre um curso de água, feita com umas tábuas manhosas, que costumo abordar com bastante prudência, redobrada esta manhã pelo ingrediente adicional de a madeira estar molhada e mais escorregadia. Infelizmente havia ainda outro ingrediente mais, que não detetei a tempo: as tábuas estavam inclinadas. De forma que ao, por segurança, colocar o pé no chão, ele não ficou estável e eu parti para uma cambalhota e um mergulho completo.

Ultrapassada a fase inicial de uma breve discussão inglória com a força da gravidade, verificado após emergir que a bicicleta não fugira para longe e posteriormente que a embalagem semiestanque do telemóvel tinha aguentado, reconheço que a temperatura da água não estava tão desagradável e que para a quantidade de lama acumulada, o mergulho até serviu de pré-lavagem… e certamente castigo contra a transgressão. Merecido ou não, é outra questão.

Pode-se entender que na Páscoa, naquela fase e atendendo à tradição das viagens e dos reencontros familiares alargados, poderia fazer sentido o travão. Neste fim de semana, já me parece absolutamente abusivo e um tique de quem ganhou o gosto. Que não se consolide o tique, esperemos. E da iniciativa da Intersindical para o dia, “nada” a acrescentar.

29 abril 2020

24 de abril e bacalhau


Quando se fala no 24 de abril, para lá da estúpida, obtusa e infindável guerra colonial, é comum avançar com os nomes de Aljube, Peniche e Tarrafal. Hoje, apetece-me falar de bacalhau. Há uma certa visão de que a PIDE só incomodava comunistas, conceito bastante largo na altura, e, segundo essa perspetiva, aqueles para quem “a sua política era o trabalho”, não tinham problemas com o designado Estado Novo. 

O bacalhau tocou muita gente pelo trabalho e muito duramente. Refiro-me a quem participou na chamada campanha do bacalhau, organizada e promovida pela “outra senhora”. A visita ao museu marítimo de Ílhavo é muito interessante e elucidativa sobre a vida terrível daqueles homens, que chegavam a trabalhar 20 horas por dia, em condições arrepiantes. Os lançados nas águas gélidas dos mares da Terra Nova não tinham sido condenados pelo regime a derreter numa frigideira do Tarrafal por delito de opinião, mas estavam condenados a um trabalho duríssimo e miserável para a sua sobrevivência e dos seus. 

Um regime que estabelece como grande política alimentar o seu povo a partir de condições tão sub-humanas é pequeno, é mesquinho e sem visão. Esta condenação do país ao miserabilismo, por ignorância, incapacidade, falta de visão ou o que quer que seja como defeito não é o único problema do Estado Novo, nem a campanha do bacalhau o único exemplo, mas é uma ilustração muito concreta e bem documentada. Não fica mal falar dela neste mês de abril.

22 abril 2020

Liturgias, forma e conteúdo


Pertencendo eu ainda a uma geração que viu o 25 de Abril, para mim não se trata de uma data apenas histórica e muito já escrevi aí para trás sobre o tema (ver etiqueta correspondente). Quando se fala nas respetivas comemorações, há duas coisas que se repetem, quase tão certo como chegarem as andorinhas na primavera.

A primeira é o carater enfadonho das comemorações oficiais, incapazes de passarem uma mensagem mobilizadora e de transmitir algo que seja ouvido com interesse, sobretudo por quem não viveu nem o antes nem o dia, sendo que isso devia ser o prioritário. São discursos dos próprios para os próprios e como se bastasse uma vez por ano ir ao frigorifico ou à estufa buscar um cravo vermelho e cumprir uma liturgia.

A segunda é a facilidade com que se arranja uma polémica, seja sobre a forma, seja sobre quem se convida ou quem participa. O subjacente à maioria das polémicas é existir um grupo que entende ser mais igual do que os outros, quando o 25 de Abril no espírito e na realidade do dia foi muitíssimo mais abrangente do que pretendem alguns agora reivindicar e capitalizar.

A situação excecional que o país e milhões de portugueses vivem exigia fazer diferente e não invocar um “direito adquirido” a celebrar, simplesmente como dantes. Vejam as imagens impressionantes de Roma nas celebrações pascais. Perderam impacto e significado pela adaptação ao tempo atual? Não, muito pelo contrário. Por aqui, fazemos umas contas mais ou menos científicas quanto a lotações e distâncias e tudo como sempre. Desculpem lá, mas podem deixar de ficar parados a olhar para trás e ter sensibilidade para entender e falar ao país presente? 25 de Abril deveria ser futuro e não passado.

20 abril 2020

A OMS está doente?


Dentro da polémica levantada pela ameaça de D. Trump de cortar o financiamento dos USA à OMS, por esta supostamente estar demasiado alinhada com a China, e independentemente da razoabilidade e da justificação para tal medida, encontrei a referência a um tweet da organização, publicado em 14 janeiro, acima reproduzido e aqui referenciado.

O tweet informava que, à data, segundo as autoridades chinesas não havia evidencia clara que o Covid 19 fosse contagioso entre humanos! Portanto a China enganou a OMS, descaradamente, esta acreditou e reproduziu ingenuamente a patranha. Posteriormente, ao constatar que tinha sido aldrabada não a vi dar nenhum raspanete valente à China, pelo contrário, só me recordo de elogios à forma como o país estava a lidar com a epidemia.

Obviamente que o papel da OMS não termina aqui e enviablizá-la não é solução, mas que a gestão desta crise foi muito pouco saudável e a necessitar de algum tratamento, sem dúvida.

17 abril 2020

Histórias para voar


Há aqueles livros de que gostamos e há aqueles autores que devoramos. Que, quando começamos uma nova leitura, temos a certeza quase certa de que iremos gostar. E assim passamos ao longo da sua obra editada, uma a uma, apenas com pena de não haver sempre mais.

Luís Sepúlveda foi, para mim, um desses. Grato pelas belas histórias.

15 abril 2020

Sensações de segurança


Estou a considerar seriamente deixar de usar capacete de proteção ao andar de bicicleta. Dá-me uma falsa sensação de segurança. Se um automóvel desgovernado me abalroar, não garante que me safe. Ainda por cima, se não o souber utilizar, não o apertando, aí não servirá mesmo para nada. Não entendo sequer porque me obrigam a usar capacete de moto, não me salvará de tudo, tão-pouco.

Mesmo o ABS nos automóveis não é assim uma grande ideia. Dá uma falsa sensação de segurança. Mesmo fechar à chave a porte de casa… não garante que não seja assaltado.

Não faltam exemplos de coisas que contribuem positivamente, mas sem garantirem e parece-me que a questão da utilização de máscaras no contexto atual de pandemia entra nesse capítulo. Sendo que tanto protegem a entrada como a saída do bicho e considerando a existência de contaminados assintomáticos, é obviamente absurdo sugerir a sua utilização em função dos “sintomas”…

Obviamente que se não há máscaras suficientes para toda a gente, deve ser dada prioridade a quem delas mais precisa, mas se não há XPTOs, inventem, improvisem, XPTPs ou XPTQs, que não garantam mas contribuam. O que não faz sentido é eu ir ao supermercado e mais de metade do pessoal andar por ali sem máscara…

09 abril 2020

Depois


Wuhan, até há pouco tempo o nome de uma cidade chinesa que poucos reconheceriam ou conseguiriam apontar num mapa. Num daqueles horripilantes mercados de animais vivos, um vírus viajou e entrou na espécie humana. Depois, o regime chinês tentou abafar a divulgação da má noticia, atrasando dramaticamente a sua identificação e contenção inicial.

Já em 2002 o SARS, com algumas analogias, tinha posto o mundo de sobreaviso. Se este seguisse o mesmo caminho, os estragos seriam limitados e aceitáveis, pelo menos para o nosso mundo. Sobranceria? Depois, passou aos países vizinhos, de onde se acreditava que não sairia de forma significativa.

Seguia-se a evolução, em primeira mão, no Asiatimes e especulava-se, à distância, sobre o efeito da paragem chinesa na cadeia de fornecimento global. Apesar do tempo perdido pelo encobrimento inicial chines, ninguém viu vir o que estava para vir. Esperou-se calmamente com medidas prévias que provaram ser manifestamente inadequadas. Depois, passamos a ver as notícias principais nos jornais europeus.

O mundo descobriu que o bicho era simplesmente incontrolável, silenciosamente transmissível, com uma facilidade e uma eficiência alucinantes. Ninguém está a salvo, nem se sabe bem onde estarão exatamente os 4 a 5% dos casos complicados. Lentamente, o nosso mundo foi perdendo a descontração de que era apenas uma coisa longínqua, no limite uma gripe mais forte, para ser algo que nos poderia fazer despedir definitivamente de um próximo querido. Demasiado lentamente. Já com a noção clara de que o bicho era muito mais perigoso do que inicialmente se pensava, em 8 de março houve amplas manifestações em muitas capitais europeias e a 15 de março França foi a votos.

Vivemos a urgência sanitária, de ver a evolução diária das estatísticas, da emoção dos que sofrem sós e dos que partem desacompanhados. Quase que já há notícias de outra coisa nos média. Entretanto, apercebemo-nos de que a brutalidade das medidas de contenção e mitigação da epidemia provocarão feridas brutais ao tecido económico e social. Depois, o mundo sairá daqui diferente, atividades económicas desaparecerão e comportamentos sociais mudarão.

Para lá do que tudo o que cada um pode fazer por si e por todos, o Estado tem um papel fundamental neste momento, mais do que talvez nunca teve nas últimas décadas. Há uma fase transitória de responder ao problema sanitário e de atender às primeiras necessidades económicas e sociais. Mas ele próprio tem limites, como amargamente já descobrimos num passado recente. Não vai poder acudir a tudo para sempre.

Depois da estabilização sanitária, que nem sabemos quando virá nem como, há dois desafios cruciais para a sociedade. Sobriedade e seriedade no acesso e utilização das ajudas estatais transitórias e iniciativa e empreendedorismo para se reposicionar na nova realidade. Depois de contados os mortos e fechados os hospitais improvisados, o pior que poderá acontecer é vermos enraizada uma dependência permanente e insustentável das ajudas do(s) Estado(s), ainda pior com alguma inevitável desonestidade à mistura. Porque aí a tolerância será pequena e mudanças mais profundas serão possíveis, como o colapso e transfiguração radical do sistema social e político. Só com lideranças sérias e esclarecidas, apesar de o passado recente não ter sido bom exemplo, e sociedade civil responsável e exigente, podemos encarar um depois que não seja um final definitivamente dramático.

06 abril 2020

Depois da Primavera


A Primavera parecia vir adiantada. As amendoeiras floridas até coincidiram com o Carnaval. À data havia 80 mil casos a nível mundial, mas apenas 34 mortos fora da China e 7 na Europa (6 em Itália e 1 em França), dados da OMS. E foram as deslocações nas férias de Carnaval as principais responsáveis pelo grande espalhar do bicho na Europa.

Era antes do tempo, mas era uma Primavera pujante, confiante e festiva. Estavam longe as nuvens e acreditávamos que as condições e o sistema sanitário na Europa não eram iguais os da Ásia. Afinal, de falsos alarmes já estávamos cheios. O próprio Presidente da República vai a Podence para um banho de multidão. Imagens com pouco mais de um mês, mas que hoje parecem de há um século.


Na data oficial, a Primavera não chegou, foi suspensa. Podem ainda lá estar flores, mas não as vemos. Já não podemos atravessar rios nem cruzar cordilheiras. Não há pessoas em quem tocar. Desconfiamos do calor humano, fugimos, damos distancia. Os olhares cruzam-se receosos e apreensivos, sorrisos são apagados. Desaparecem os lugares onde se possa rir ou chorar, ou partir ou chegar, ou cantar ou amar.

A Primavera está suspensa, sim, mas um dia chegará. Como depois de um fogo devastador, de rescaldo delicado, sairemos de novo à rua e haverá cinzas. O bicho terá queimado vidas, sonhos, ganha pães, projetos e alentos. As cinzas serão varridas para dar lugar a um novo campo deserto, ou por lá ficarão fecundando o que irá renascer. Ou, quem sabe, nalguns lugares estarão intactos frutos sobreviventes, resistentes. Entre o que muda e o que fica, não sabemos como ficará, mas a Primavera chegará.



05 abril 2020

Viva quem canta


Na monotonia dramática do tema que tem monopolizado as notícias, há e haverá outras coisas que vale a pena evocar, não relacionadas com o dito cujo drama. É importante fazer um esforço e procurar mais mundo, mais gente e mais coisas a destacar. Sendo que mais vale tarde do que nunca, apetece-me evocar Pedro Barroso, recentemente falecido.

Um cantante autor popular, num dos sentidos mais puros e ricos do tema. A sua música entra por todos os ouvidos, simples de ouvir, mas não pobre. A difícil qualidade do não complicado. E aqui fica uma bela memória porque não vale a pena mais conversa inventar.

Menina em teu peito sinto o Tejo
E vontades marinheiras de aproar
Menina em teus lábios sinto fontes
De água doce que corre sem parar

Menina em teus olhos vejo espelhos
E em teus cabelos nuvens de encantar
E em teu corpo inteiro sinto feno
Rijo e tenro que nem sei explicar

Se houver alguém que não goste
Não gaste, deixe ficar
Que eu só por mim quero te tanto
Que não vai haver menina para sobrar

Aprendi nos 'esteiros' com Soeiro
E aprendi na 'fanga' com Redol
Tenho no rio grande o mundo inteiro
E sinto o mundo inteiro no teu colo

Aprendi a amar a madrugada
Que desponta em mim quando sorris
És um rio cheio de água lavada
E dás rumo à fragata que escolhi

Se houver alguém que não goste
Não gaste, deixe ficar
Que eu só por mim quero te tanto
Que não vai haver menina para sobrar

24 fevereiro 2020

Legislar pela saúde




Vimos recentemente no Parlamento uma discussão precipitada e, segundo vários especialistas, não suficiente refletida e ponderada sobre a legalização da eutanásia. Aparentemente haveria uma enorme urgência, a justificar essa pressa. Uma urgência difícil de entender, até porque apenas há quatro meses atrás, nenhum dos maiores partidos se deu ao trabalho de incluir este tema sensível e controverso nos seus programas e campanhas eleitorais.

Ao mesmo tempo, a ameaça do Corona vírus chega à Europa, não se sabendo muito bem como o combater, exceto tentando limitar a sua propagação, isolando pessoas e comunidades.

Portugal será um dos poucos países em que esse isolamento não pode ser imposto, dado que a quarentena compulsiva não tem enquadramento legal neste contexto.

Portanto, pensar em rever esse enquadramento legislativo como precaução contra uma eventual (certa?) chegada do vírus, não é prioritário; a eutanásia, essa sim. O sentido das prioridades para aquele pessoal em S. Bento não andará um pouco desalinhado dos anseios e necessidades da população que representa? Depois, queixem-se…

18 fevereiro 2020

É futebol, ninguém leva a mal!

O recente episódio com o jogador Marega em Guimarães é um caso lamentável e condenável de racismo. Sim! Não é caso inédito e isolado e apenas a reação inédita e louvável do jogador lhe deu todo este destaque.

No entanto, o problema de fundo não se esgota no racismo. Naquele contexto o insulto não se limita de todo a questões de raça. A ofensa e a agressividade são tão comuns nesse mundo bestial que recentemente um tribunal de primeira instancia, devidamente depois confirmado pela Relação de Lisboa, entendeu que um delegado a um jogo dizer ao treinador adversário “vá lá p’ra barraca, vai mas é pó caralho seu filho da puta”, é normal no mundo do futebol e citando : “é notório que, no mundo do desporto, e, em particular, do futebol, estão instituídas determinadas práticas que a generalidade das pessoas valora de uma forma mais permissiva, desde que tais condutas se desenvolvam no âmbito restrito do sub-sistema desportivo”.

Aproveitando a permissividade instituída: o mundo de futebol é um mundo de merda, onde todos os merdas podem dizer o que lhes apetecer, que nem as mais altas instâncias judiciárias tomam a sério essas merdas, já sem falar das individualidades que adoram ser convidadas, participar e acarinhar este meio nauseabundo.

Voltando ao caso Marega, a dimensão racial ajuda a amplificar a indignação. Ainda bem. Mas, se um treinador abandonar um jogo para não aturar mais insultos à sua mãe, será talvez e apenas um pequeno episódio, visto com mais ironia do que escândalo. No futebol é normal… mesmo a maior criminalidade ninguém leva a mal.

31 janeiro 2020

Essa coisa do colonialismo e racismo e os concursos de cuspidela


Recordo-me de, ao visitar o museu do Louvre pela primeira vez, ter tentado imaginar qual seria o estado de espírito de um egípcio ao ver ali a enorme quantidade de património trazido (roubado?) do seu país… Recordo-me também de, ao ter sabido dos riscos que correu o museu do Cairo aquando da famosa “primavera” de 2010, ter pensado… ainda bem que há tesouros culturais egípcios guardados em local seguro.

O tema do património deslocado não se resume a questões coloniais. Existe desde que na História há vencedores e vencidos e, inclusive, vendedores e compradores. Um tema passível de discussão, séria.

Um personagem como a deputada do Livre, famosa pela forma agressiva e pouco esclarecida como grita por “racismo e colonialismo” sem se preocupar demasiado em saber do que fala, veja-se a fotografia junto do quadro representativo da chegada de Vasco da Gama à India, vir lançar este tema em âmbito de discussão de orçamento de Estado é uma boa forma matar a discussão… Não sou racista, mas de tanto ouvir acusações generalizadas e cegas, começo a não ter pachorra para estes discursos, que já merecem um: “Porque não te calas?!”. Acusações mal fundamentadas, temperadas com fortes doses de injustificável e desnecessárias belicosidade e arrogância são um descrédito para a causa séria e uma bênção para o verdadeiro racismo.

O que André Ventura disse… é incorreto… mas não é sexista, nem racista. É uma resposta xenófoba a um irritante despropósito. E a discussão séria acaba antes de começar, até porque estes intervenientes, ungidos de uma suposta sapiência inatacável e inquestionável, não parecem verdadeiramente interessados em ouvir e discutir o que quer que seja… é mais “tipo” concurso de cuspidela!

29 janeiro 2020

O dinheiro não tem cheiro



Há quem diga que sim, há quem diga que não, mas poucos serão os que apuram o olfato quando as notas passam à frente do nariz… e poucos se preocuparam com o “eventual” cheiro do dinheiro de Isabel dos Santos. Agora, com escândalo declarado, vemos uma precipitação que recorda a imagem dos ratos a fugirem do navio… Veremos no futuro, caso apareçam por aí outras notas com perfume duvidoso, como estará a sensibilidade dos narizes.

Para lá do que tudo o que agora se diz e agora se sabe, para lá do ridículo deste agora ser agora, há outro ridículo, que é o carater único e excecional atribuído ao fenómeno, como se este súbito cordão sanitário desse uma boa consciência, se bem que tardia, e mais vale tarde do que nunca…

Não! O que a família dos Santos fez ao longo de décadas em Angola, não é único daquela família nem daquele país. Não faltam por esse mundo fora, belas capitais europeias incluídas, transações e negócios relevantes com notas de cheiro suspeito.

Por outro lado, e mais importante, escala e contextos diversos, compras com dinheiro derivado de governação desonesta… não faltam, mesmo com origem neste nosso querido país. Vamo-nos escandalizar com isso também…? É possível?

14 janeiro 2020

Tecnicamente não é branco



Neste mundo, cada vez mais discriminado e discriminatório, por razões que não deviam ser razões, por pessoas que supostamente defendem a igualdade ou a equidade, ou lá o que lhe quiserem chamar, mas que basicamente se declaram contra as discriminações… a lista de idiotices não para de aumentar e de nos fazer diminuir a pachorra para aturar ativismos patetas.

Nos States, where else?, terá sido referido pelas publicações Deadline e Vanity Fair que António Banderas era um dos poucos atores de cor nomeado para os Oscares. A seguir veio a contestação de que ele não era de cor… será eventualmente transparente? e a seguir a tentativa de correção segundo a qual os espanhóis, e presumo que para quem o disse os portugueses pertencerão ao mesmo grupo, tecnicamente não sendo considerados de cor, mas …. Estou muito curioso em conhecer a base “técnica” de tais afirmações.

Há uns anos tive uma conversa estúpida com alguém lá do Norte, segundo o qual eu não era bem branco, tendo eu argumentado que ele também não, puxava assim para o rosa. Nunca imaginei que tal nível pudesse um dia subir tão alto. Catalogar pessoas em função da sua tez… é racismo, mesmo se pretensamente com boas intenções.

Portanto, temos uma discussão de alto nível artístico, social e cultural sobre se António Banderas em particular e os hispânicos em geral, podem ser encaixados nas quotas da gente colorida… se polegar para cima ou polegar para baixo!

O ridículo não mata, mas estraga… bastante.

06 janeiro 2020

Quando as almas das empresas se perdem



A história trágica e caricata do Boeing 737 Max não me larga e continua a intrigar-me, mesmo depois de lhe ter dedicado algumas reflexões aqui e aqui. Como foi possível a uma empresa com os pergaminhos tecnológicos da Boeing se ter enfiado em tão grosseira asneira? Ao navegar no assunto, encontrei este interessantíssimo artigo  que me fez soar campainhas a vários níveis e acredito que também o fará a muitos meus antigos companheiros de estrada.

Em 1977, a muito saudável Boeing comprava a praticamente falida McDonnel Douglas, mas na recomposição acionista subsequente ficou a mandar a cultura da segunda. A entusiasta e bem sucedia família engenheira da Boeing foi cilindrada por frios gestores, distantes, mesmo geograficamente, cujas prioridades 1, 2 e 3 eram cortar custos a tudo custo.

A sede social foi transferida de Seattle, onde tudo tinha acontecido, para Chicago, onde qualquer coisa podia acontecer. Em vez gestores de topo nascidos e criados na casa, chegaram génios externos. Não do tipo que tanto podem gerir uma empresa tecnológica como um fabricante de refrigerantes, mas quase. Segundo o artigo acima citado, tudo isto mudou radicalmente a empresa, minou o empenho, o entusiasmo, destruiu a solidariedade e o espírito de família e, de certa forma, matou-lhe a alma.

É certo que este processo coincide com uma enorme alteração do negócio do transporte aéreo, onde, na sequência da desregulamentação, passou a ser necessário ter muito mais atenção à competitividade. Se a Boeing tivesse continuado a ser uma empresa de engenheiros entusiasmados e divertidos a inventarem aviões, poderia não ter sobrevivido. Mas se financeiros mauzinhos esquecerem que numa empresa que cria, e em maior ou menor escala são todas, é fundamental dar poder a criativos entusiasmados e divertidos com o que fazem e identificados de corpo e alma com o projeto, correrá mal.

Na ótica da maximização do valor para o acionista o genial Boeing 737 foi espremido para lá dos limites. Cortaram tanto os custos que acabaram por cortar algo de vital. Provavelmente porque é a Boeing e é nos USA, a empresa sobreviverá, mas o acidente tem escala suficiente para matar uma qualquer empresa, por muito saudável que seja. Noutras escalas e noutra paragens, quantas haverá por aí no passado e para o futuro a morrerem por terem perdido a alma? E em quantos casos, contas feitas entre a entrada e a saída, o processo não terá até “gerado valor para os acionistas”?


Imagem do voo inaugural do histórico Boeing 747

04 janeiro 2020

Não sabe o que faz ?



O general iraniano Qasem Soleimani não seria certamente uma flor que se cheirasse e a lista de crimes e atrocidades cometidos pelas estruturas por ele lideradas não é leve nem pequena. De todas as formas, ao ler a notícia da sua morte por ação deliberada da administração Trump, é impossível deixar de pensar que isso não vai resolver nada, muito pelo contrário.

O carisma e a admiração a ele devotadas no Irão eram e serão enormes. O seu desaparecimento físico pode provocar algum enfraquecimento, mas ele era “apenas“ a cabeça de uma organização sólida e consolidada, que não vai desaparecer e a galvanização gerada pela raiva suplantará largamente essa perda.

Se, segundo a administração americana, a ação visava evitar a realização de atentados que custariam a vida a milhar de americanos (?!), podem ficar seguros de que as ameaças e ataques aos interesses americanos serão a partir de agora muito maiores do que antes.

Pela sua história e forte identidade, a Pérsia não irá abdicar de joelhos, por muito sofrimento que lhe inflijam. Fico mesmo com algumas dúvidas sobre até que ponto a repulsa pelo assassinato não será mesmo condenado por uma parte da rua árabe sunita, tradicionais e figadais inimigos do Irão.

Sabemos que a paz no Médio Oriente não é um problema exclusivamente importado por influências externas, mas, esta ação que nada ajuda nem resolve, mostra que a administração Trump não sabe o que faz, ou, o sabe… e isso é ainda mais grave.