24 dezembro 2021

Natal Torga


Apesar de poder não o parecer à primeira vista, eu acho que Natal rima muito com Torga:

Natal.

E, só pelo facto de o ser, o mundo parece outro. Auroreal e mágico. O homem necessita cada vez mais destas datas sagradas. Para reencontrar a santidade da vida, deixar vir à tona impulsos religiosos profundos, comer e beber ritualmente, dar e receber presentes, sentir que tem família e amigos, e se ver transfigurado nas ruas por onde habitualmente caminha rasteiro. São dias em que estamos em graça, contentes de corpo e lavados de alma, ricos de todos os dons que podem advir de uma comunhão íntima e simultânea com as forças benéficas da terra e do céu. Dons capazes de fazer nascer num estábulo, miraculosamente, sem pai carnal, um Deus de amor e perdão, contra os mais pertinentes argumentos da razão.

Miguel Torga, in Diário (1985)

Natividade 

Nascer e renascer...
Ser homem quantas vezes for preciso.
E em todas colher,
No paraíso,
A maça proibida.
E comê-la a saber
Que o castigo é perder
A inocência da vida.
Nascer e renascer...
Renovar sem descanso a condição.
Mas sem deixar de ser
O mesmo Adão
Impenitentemente natural,
Possuído da íntima certeza
De que não há pecado original
Que não seja o sinal doutra pureza.

Miguel Torga in Diário XIII




 

23 dezembro 2021

Uma prenda de Natal

 

Anteontem todos os portugueses de Norte a Sul, desde os de berço aos mais séniores, com rendimentos de milhões ou pensão mínima, foram todos chamados a dar uma prenda de Natal de cerca de 310 euros a uma empresa estatizada chamada TAP.

De todos os argumentos apresentados sobre a importância estratégica da empresa para o país não há um único que os fatos e os números não desmontem. Será importante para quem quer voar de Lisboa em voos diretos e não se importa de pagar algo mais. Face aos 10,3 milhões de que contribuem, são muito poucos. 

Há empregos em causa, sim, mas mal estaríamos se fossemos estatizar e financiar com dinheiros públicos todas as empresas e setores em dificuldades.

Acrescente-se que os prejuízos da TAP não nascerem com o Covid. A empresa tem uma relação crónica com os apertos financeiros e só mesmo uma enorme fé no Pai Natal pode fazer alguns acreditar que este “investimento” terá retorno e que desta vez é que vai ser.

Dispensava-se esta prenda forçada, sobretudo pensando em tudo o que se poderia fazer em alternativa com estes 3,2 mil milhões de euros.

17 dezembro 2021

Cores de fogo

Ali, pela estrada entre Barcelos e o Prado, fazem-se alguns milagres com a terra e o fogo. De várias formas, cores e temáticas.

Dentro dos vários artistas oleiros que por aqueles lados abundam, apetece-me realçar Carlos Dias. Este não pinta, ou quase não pinta. As cores são dadas pelas diferentes terras cozidas a uma temperatura mais alta do que a do barro tradicional. Associado ao talento indiscutível das suas mãos, o resultado é surpreendente e dá vontade de trazer para casa tudo.  A sua coleção de mochos já vale a visita.

Há uns tempos tive o prazer de descobrir uma nova criação, a das mulheres minhotas, que vão à feira, que trabalham, que transportam o mais variado tipo de produtos da terra…. Terá sido a primeira compra de figuras dessa coleção. E certamente a primeira de muitas.




16 dezembro 2021

Ministros ao largo


Não sei se Manuel Pinho cometeu crimes ou não, não sei se a sua detenção é abusiva ou justificada. Nesta dimensão, e para essas respostas, não sei se a justiça está a ser justa ou se chegará a sê-lo, se por excesso ou por defeito.

Agora, há uma coisa que para mim é indiscutível e independente de acórdãos e recursos. Mesmo sem eventual crime existente ou provado, é inaceitável que um responsável pela coisa pública, especialmente ao nível de ministro, possua bens “ao largo”, em offshores. Com que fim, qual a necessidade?

A possível inocência penal de Manuel Pinho e atual presunção de inocência não branqueiam algo que é inadmissível num Estado que queremos sério e dirigido por gente insuspeita. O processo nos tribunais é um assunto em curso; a condenação clara e inequívoca da conduta política é uma exigência, indiscutível para este caso e outros análogos.

10 dezembro 2021

O gato


Chega sempre muito calmamente, como quem não quer a coisa, sendo óbvio que alguma coisa quer. Instala-se sem um ruído, apenas lhe sai por vezes uma respiração ruidosa dos anos que lhe pesam. E fica à espera, de uns restos que haja, ou que se arranjem.

Havendo ou arranjando-se, lá come tranquilamente no seu canto, sem nada nos dizer. Passado o tempo de efetivamente comer ou apenas esperar em vão, reparte tranquilamente, sem um som, sem um movimento mais brusco do que outro. Dignamente vai à sua vida até regressar na próxima refeição ou na próxima manhã, em busca de novas.

E regressará e esperará, às vezes exposto, outras vezes escondido. Ao detetar algo a cair na tijela, aproxima-se desconfiado, com os olhos controlando quem a enche e o nariz sondando o que lá estará. Cumprida a distância de segurança, avançará então resolutamente para trinchar e trincar o que se arranjou.

E repartirá e regressará, sem nada nos dizer. É um gato!

07 dezembro 2021

A liderança e a covardia

Pode o cidadão Eduardo Cabrita ser criminalmente inocente no famoso caso do atropelamento mortal do trabalhador na A6. Mas a um líder, e um ministro deve ser um líder exemplar, exige-se muito mais do que o básico cumprimento da lei. Entre outras coisas exige-se integridade e coragem. Obviamente que um simples passageiro de um táxi não é responsável por um atropelamento que o condutor provoque; agora se este for sistematicamente a infringir o código da estrada, já qualquer cidadão que o aperceba, mesmo sem ser o ministro que tutela a segurança rodoviária, tem obrigação de reagir.

Sabendo que é prática corrente as comitivas ministeriais viajarem a velocidades largamente acima dos limites legais, custa a crer que o mesmo não seja feito a solicitação ou, pelo menos, concordância tácita dos senhores ministros. Se for assim é uma enorme covardia Eduardo Cabrita resguardar-se no “não tenho nada a ver com isso”. A outra hipótese de serem os motoristas que por sua livre e espontânea vontade decidem conduzir à velocidade que lhes dá na gana e os senhores ministros não se apercebem/não reagem, há aqui gente a dormir na forma e dormir tanto e tantas vezes não é credível.

Obviamente que com lideranças a darem estes exemplos a viagem do país não segue por bons caminhos.

PS: Demorarmos quase 6 meses para conhecer a velocidade do veículo; quantos tempo mais será necessário para saber quantas pessoas iam no veículo? Vergonhoso e indigno.