29 maio 2022

Religião ópio ou ? (III)

Continuação de Os judeus não reconhecem a nação?

O credo e a prática religiosa não são limitativos da plena integração de um cidadão numa nação onde exista separação de poderes. Não são de forma nenhuma impeditivos de o individuo seguir as regras existentes e reconhecer as autoridades estabelecidas. Mas… a manipulação política da religião, assumida ou dissimulada é uma tentação forte. Como se sem a componente religiosa a tutela não fosse completa.  

Em meados do século XVI, após um período conturbado desencadeado pela difusão e aceitação das teses de Lutero, a paz de Ausburgo proporcionou uma pacificação da Europa por algum tempo. Definia ela que a religião do povo seria automaticamente a religião do seu príncipe, impondo assim uma paz pela homogeneidade da fé. Pode ser prático e eficaz, mas a relação de cada um com a transcendência deveria ser uma opção, até mesmo uma descoberta, individual e não uma imposição da tutela.

Ainda hoje, as perseguições terríveis de que o pacífico Fan Gong é objeto na China não se explicam senão pela necessidade de as autoridades musculadas controlarem também a dimensão espiritual dos seus “súbditos”.

Pode a religião ser o ópio do povo, quando por algum poder administrada, e pode ser também a sua libertação do mesmo quando é o cidadão livre que a escolhe e assume.

Em resumo e em espécie de conclusão, o antissemitismo é, em boa parte, uma componente e consequência do autoritarismo, que decreta que “os judeus não são dos nossos”. As massas, por insegurança, inveja e/ou ignorância alinham com alguma facilidade.

27 maio 2022

Os judeus não reconhecem a nação? (II)


Continuação de Acusar

Quando se fala em antissemitismo e perseguição aos judeus na Europa é impossível não referir a Alemanha nazi. Este “nazi” vem de nacional + socialista. Sendo óbvio que de socialista o partido de Hitler teve pouco, a associação das duas palavras é algo incoerente. Apesar do aspeto comum da prevalência do poder do Estado, o socialismo é internacionalista e Hitler nunca pretendeu ser um pai de todos os povos; a ideia era mais “Alemanha acima de tudo e todos”. 

Penso que o caráter “menos nacionalista” e até um pouco “supra nacionalista” dos judeus é uma das razões que os tornam inimigos de estimação, especialmente para poderes autoritários que buscam uma homogeneidade cultural e religiosa entre os seus súbditos. Uma das acusações recorrentes contra os judeus é precisamente a de fazerem parte de uma conspiração internacional... estando implícita a insinuação de não reconhecerem completamente as autoridades nacionais.

Há alguns séculos os judeus foram expulsos de Espanha quase em simultâneo com o processo de unificação de Castela e Aragão, pelos oportunamente designados Reis católicos. Curiosamente em Portugal, nação mais consolidada, o processo equivalente surgiu como uma imposição dos vizinhos ibéricos e não por uma necessidade sentida internamente.

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26 maio 2022

Acusar… (I)


Em setembro de 1894 é encontrado um documento revelador de uma ação de espionagem militar em França a favor da Alemanha. A sua caligrafia é semelhante à de um oficial, até aí de carreira exemplar, de seu nome Alfred Defruys. Isso é suficiente para o julgar sumariamente, condenar grosseiramente, ser publica e humilhantemente destituído e deportado para a “Ilha do Diabo”.

Na prática havia mais do que a semelhança da caligrafia. Defruys era judeu e o antissemitismo básico foi suficiente suportar a “convicção” quanto à sua culpa. Posteriormente o verdadeiro culpado Estherhasy é identificado, julgado e… ilibado.

Para lá do absurdo de as instituições militares terem ignorado a busca da verdadeira origem de um grave problema, transmitir informações sensíveis ao inimigo, o caso vai  provocar uma polémica enorme, entre aqueles absolutamente “convencidos” da culpa do judeu e os defensores do direito à justiça. Entre estes últimos, Émile Zola, faz publicar um texto de acusação, uma carta aberta ao presidente do país, acima reproduzido, o que lhe vale um processo e respetiva condenação por difamação.   

Com toda a pressão na opinião pública, Defruys é repatriado do seu degredo na Guiana e julgado de novo… e de novo condenado.

O objetivo aqui não é relatar todo o caso, apenas evidenciar como é possível tanta cegueira e injustiça popular e institucional contra os judeus. Por serem responsáveis pela morte de Cristo…? Por inveja pelo seu elitismo e relativo sucesso económico?

Pela prática religiosa e os fundamentos do seu credo em si não o será certamente.

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24 maio 2022

Crimes de Guerra


Um jovem soldado russo confessou o seu crime de guerra na Ucrânia, ter morto um civil deliberada e intencionalmente. Certo que a vítima e a sociedade em geral, pedem que justiça seja feita, o momento é simbólico, mas face ao que vemos diariamente, só podemos esperar que o jogo não fique pelos peões. Não terá havido um superior que o incentivou a disparar? E aquele que lançou um míssil contra um hospital? E quem deu ordem para lançar misseis com esses alvos?

Apesar de os civis sofrerem regularmente com as guerras foi, depois do ensaio em Guernica, que na II Grande Guerra o massacre deliberado de civis passou a ser utilizado assumidamente como arma de guerra. Face à resistência apresentada pelos Países Baixos às forças nazis, que pretendiam entrar rapidamente em França, contornando a fronteira comum bem defendida, a cidade de Roterdão foi arrasada, com sucesso, forçando a capitulação imediata do país. A seguir foi a vez de Londres, mas aí o resultado foi diferente.

Bombardear deliberadamente civis para desmoralizar a população foi adotado no conflito por todos os lados, acabando a série com “sucesso” após Hiroshima e Nagasaki. Se disparar contra um civil é um crime de guerra, arrasar uma cidade também o será, certamente.

Não sei se se pode assumir razoável ter havido julgamento em Nuremberga e não sobre os massacres em Hamburgo, Colónia, Dusseldorf ou Dresden, só como exemplos. Seria impossível na altura, mas hoje? Grozni, Alepo e Mariupol são exemplos de crimes de guerra inquestionáveis. Há justiça para os julgar?

19 maio 2022

Quem não vai à guerra

Parece ser uma especialidade deste jardim à beira-mar plantado. Não ir à guerra, não dar nem levar, ou antes não perder, mas ganhar. Já na II Grande Guerra muito ganhamos, até mesmo a transacionar com os dois lados.

As guerras e demais disrupções trazem muita desgraça e também muitas oportunidades, sobretudo para quem tiver um sentido apurado e ético q.b. da oportunidade.

Agora, regozijarmo-nos com vantagens obtidas a partir dessas oportunidades é imoral. Certamente que o mundo não para e nas reviravoltas onde tanto que se perde, algo algures se pode ganhar, mas deveria ser um ganho envergonhado e, dentro do possível, partilhado com os que tanto perderam.

Não é líquido o que podemos efetivamente ganhar com a guerra na Ucrânia. No mínimo, convinha não perder a oportunidade de ficar calado e procurar outros motivos de regozijo, fruto do nosso mérito e iniciativa, não de os misseis caírem bem longe do nosso jardim. 

15 maio 2022

Logo se vê…


Dois dos principais temas na primeira linha da atualidade mediática nacional, a receção aos refugiados ucranianos em Setúbal e a inconstitucionalidade da lei dos metadados, aparentemente muito distintos, revelam algumas semelhanças na atitude de como somos governados. Colocando de lado segundas intenções dissimuladas e assumindo que tudo não passa de simples distração e inação, é demasiado.

Assumir responsabilidades, gerir e governar não passa apenas por cumprir normas e carimbar despachos; inclui muito de “e se, e se, e se…?”: prever, avaliar, analisar possíveis consequências e antecipar soluções.

Ninguém se ter preocupado, nem se sentir responsável por ter russos pro-kremlin a receber e a registar refugiados ucranianos é dormir na forma e, já agora, para que precisamos de serviços de informação? Quando já em 2014 o tribunal de justiça da União Europeia tinha colocado em causa a validade da recolha dos metadados, ninguém responsável se ter preocupado e termos continuado 8 anos a instruir e a julgar processos, que agora se esvaziam … 8 anos… é incompetência ou irresponsabilidade, muitas.  

Como se nos lembrássemos de pensar nos travões apenas depois de bater no muro…

12 maio 2022

Metadados e vídeovigilância


Na polémica atual sobre a (in)constitucionalidade do registo indiscriminado de meta dados encontro algum paralelo com a questão da gravação de imagens vídeo na via pública. Obviamente que não faz sentido que tudo e todos sejam objeto de gravação sistemática e indiscriminada do destino das suas chamadas telefónicas ou dos seus passeios higiénicos.

Mas, considerando a importância fundamental que tais registos possam ter na investigação e prova de atividades criminosas, será que a opção tem que ser mesmo entre o tudo ou nada? Não será possível que tais registos sejam realizados e mantidos em caixa negra, apenas para serem abertos caso necessário por ordem judicial?

Não gostaria, eu e imagino que os cidadãos em geral, que o que se possa passa em frente à nossa casa fosse permanentemente registado e acessível a qualquer um, mas, caso aí ocorresse um assalto ou uma agressão, seria muito útil ter uma caixa negra que pudesse ser aberta. Não me parece muito complicado…

06 maio 2022

Republicano e laico, hoje?… e daí?


Confesso que até há pouco tempo me interrogava sobre o real significado e intenção do uso por alguns dos nossos políticos da expressão “republicano e laico”, como um “santo e senha”, distintivo da sua identidade. Parece-me pouco específico. Dentro dos políticos atuais, quem não é republicano? Está bem que existe o PPM monárquico, mas pouco significa. E quem não se assume como laico? Está bem que há/havia um partido com democracia-cristã na identidade original, mas na prática não me recordo de o ver pedir revisão favorável da Concordata.

Acho que recentemente encontrei a chave ao olhar para a chamada Primeira República, da qual no ano passado comemoramos o centenário da tenebrosa noite sangrenta de outubro de 1921. Uma noite em que foram barbaramente assassinados dois históricos do 5 de outubro, Machado Santos e Carlos da Maia e o primeiro-ministro de então António Granjo (para detalhes, google.com). Tinham cometido o erro fatal de, sendo republicanos e laicos, não serem “republicanos e laicos” exatamente como a cartilha única exigia.

Nesse período com 45 governos em 16 anos, “republicano e laico” tinha um significado muito claro e concreto, distintivo, exclusivo… e abusivo. Sim, esses tempos tiveram aspetos positivos, mas a instabilidade, sectarismo e violência foram demasiados para se poder sentir nostalgia e alguma simpatia romântica por um período revolucionário, incompetente e brutal, muito especialmente se se acrescentar a palavra “ética” à invocação.

Mais importante do que o mal feito até 1926, incluindo a impreparada, irresponsável e dramática participação na Grande Guerra, o mais trágico é o 28 de maio ser filho direto destes comportamentos “republicanos e laicos”, para os quais já não havia pachorra. Daí que, hoje, o balanço objetivo da Primeira República deveria ser, didaticamente, muito pouco nostálgico. Foi dela e dos seus erros que saiu o Estado Novo. Como confirmação, podem visitar o Museu do Aljube… um bom exemplo onde se vê como há ainda quem se recuse a ver e aprender.

05 maio 2022

Os limites da Europa


De Lisboa a Vladivostok parece-me um pouco exagerado. Havendo poucas dúvidas quanto ao limite Atlântico a oeste, o Pacifico do outro lado é talvez um pouco exagerado.

Na definição da Europa e seus limites, mais importante do que os meridianos geográficos estão os valores sociais e culturais e, citando a chamada Constituição Europeia, “humanismo, igualdade de todos os seres, liberdade, respeito pela razão”. A história da Europa teve fases brilhantes e períodos sinistros, por vezes escassamente separados, como, em França, com a Declaração universal dos direitos do homem e do cidadão em 1789 e o terror de Robespierre quatro anos depois. Mais recentemente vimos barbaridades como a guerra civil espanhola, aqui ao lado, o Nazismo na Alemanha e o Stalinismo na Rússia.

No entanto, nos últimos 70 anos, após o final da II Guerra Mundial, a Europa parece ter-se estabilizado, reencontrado esses valores e citando de novo: “respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito”. O que se está a passar na Ucrânia é uma clara negação dos valores europeus. Para aqueles que se recusam a vê-lo, como não viram o Gulag, cegueira ideológica é uma explicação algo benigna.

Trata-se antes de uma opção ideológica, veladamente assumida. É não se reconhecer nos valores humanísticos europeus, promover a tal “revolução” purificadora e a reversão deste regime que, sem ser ideal, é o melhor que existe. Não é passivamente ignorar, é ativamente lutar por uma causa perigosa.

03 maio 2022

História, Estado e Religião


O Islão é uma religião com génese relativamente recente. 14 séculos constituem uma distância temporal que já permite alguma precisão histórica. Esta religião, também de Abrão e Moisés, com raízes comuns ao judaísmo e ao cristianismo, originou um edifício muito diferente. Ao contrário do Cristianismo que se desenvolve dentro de um organizado e estruturado império Romano e a César o que é de César, o Islão vai-se desenvolver numa Arábia tribal, sem estruturas de Estado.  De certa forma, Maomé será também César, o primeiro, e o crescimento e implantação do Islão vão coincidir com a criação de um Estado.

A morte de Maomé e respetiva sucessão constituíram um momento delicado, até porque ele não deixou definida a forma de transição do poder após a sua morte. Estas obras de Hela Ouardi são uma fascinante viagem por esse tempo, as convulsões no islão pós-Maomé e os sistemas de valores que se disputam. Se a primazia deve ser dada aos companheiros do profeta, independentemente das suas origens sociais, à sua tribo, os quraish, que já antes dele constituam uma elite na paisagem social árabe, ou à sua família próxima, incarnada pelo seu primo e genro, Ali.  

Esta época dos primeiros califas passou por várias fases e com alternância das diferentes correntes. Se pensarmos que desses 4 califas, 3 morreram assassinados, dá para imaginar um pouco as convulsões vividas. Depois de Maomé, a Arábia não voltou a ser a mesma e uma boa parte do mundo também. As razões desta evolução são importantes para entendermos o que se passa hoje.

Para lá da mensagem e das ações em vida do profeta, a sua sucessão é determinante para a expansão e consolidação do novo Estado. A coincidência entre a liderança politica/militar e religiosa, a criação e a expansão do império árabe com a religião como aglutinadora e legitimadora, os pergaminhos e a antiguidade na fé como avalizadoras da autoridade terão sido fundamentais para a federação das tribos e a eficácia militar, mas...

A dificuldade e impossibilidade de separar as duas lideranças são talvez a razão de algum anacronismo e dificuldade de consolidação dos “Estados Nação” nos dias de hoje.