30 junho 2018

Ajudando o populismo

Quando se fala em migrantes e na crise associada é fundamental fazer a análise em distintos níveis. No imediato, se estão vidas em risco no mar, é desumano deixá-los morrer à fome ou naufragar. Sobre este ponto não há/não deveria haver dúvidas. Ponto final.

Uma outra dimensão é admitir estruturalmente que a Europa tem obrigação de acolher todos aqueles que para cá queiram vir. Ignorando considerações interesseiras sobre a “necessidade” de importar matéria humana, como quem importa petróleo ou óleo de soja, a resposta é não e por três razões simples.

1 – Não é justo esvaziar o terceiro mundo de uma parte significativa dos seus recursos humanos, sob pena de comprometer ainda mais o seu desenvolvimento.

2- Muitos desses migrantes terão dificuldade em se integrarem num meio diferente do seu e serão infelizes longe de “casa”. Prefeririam viver dignamente aí.

3. A Europa não tem capacidade de integração ilimitada.

A postura de querer recolher “todos”, como quem leva para casa um gatinho encontrado perdido na rua, é infantil! Estas e outras boas intenções servem para potenciar o tráfego, alimentar as máfias associadas e amplificar expetativas nos países de origem.

Uma boa parte da população europeia, que consegue ver para lá desse irrealismo ingénuo, a escolher entre os que dizem “venham todos” e os populistas que dizem “nem mais um”, face a essas duas únicas opções… escolhe o populismo.

A solução não passa por derrubar os muros, passa por não haver necessidade deles.

29 junho 2018

Jogos sem fronteiras


Cantava Peter Gabriel que os “Jogos sem Fronteiras” eram uma guerra sem lágrimas. De facto, nas competições onde há uma bandeira nacional à frente das equipas gera-se uma motivação especial, que se for sucedâneo de guerra, enfim, tanto melhor. Quantas pessoas não ligam nada ou muito pouco ao futebol e se tornam incondicionais e entusiastas adeptos da seleção, quando está em causa a bandeira?

Penso que este Mundial na Rússia, teve uma importância fundamental para o povo iraniano. Sem conhecer a fundo a contexto, mas … sinto que a campanha da sua equipa nacional marcou fundo.

Ao falar em Irão, é necessário separar a elite dirigente que vemos na televisão das outras pessoas que aí vivem, claramente do nosso mundo e a querer viver como no nosso tempo, no nosso mundo. Apesar do divórcio existente entre elas e os seus dirigentes, não existe, naturalmente, divórcio entre elas e o seu país, ainda por cima um país com a personalidade e a história da Pérsia.

Pela (re)pressão interna e pelas sanções externas, a vida não é fácil e existe um sentimento de fragilidade e uma busca de dignidade que podem atingir um nível dramático. Começou por a Nike se recusar a fornecer sapatilhas, estupidamente invocando um estúpido embargo. Uma campanha humilhante iria doer muito.

Assim não foi e terem estado até ao último segundo do último jogo a tentarem e a acreditarem na qualificação foi uma catarse coletiva, um exorcizar de complexos e medos, que certamente ficará na memória do país. Os jogadores deixaram tudo o que tinham e o que não tinham naquele relvado. Os(As) iranianos(as) sentiram-se parte de pleno direito da primeira divisão das nações do planeta. … e melhores tempos chegarão.

PS: Na imagem, a laranja é Portugal, como em muitas línguas do Médio Oriente, mas, ok, não nos vamos zangar … :)

26 junho 2018

Local de sabedoria


Quiseram a sorte e o azar de uma desprogramação de última hora que eu pudesse visitar longamente a basílica de Santa Sofia em Istambul. Na prática não foi bem visitar, foi tentar vivê-la.

Já lá tinha passado há uns anos, mas apenas entrando num pé e saindo no outro. Agora foi diferente. Atravessei-a lentamente, explorando todos os cantos e esquinas acessíveis, com a sensação e a emoção de estar a pisar um lugar histórico único. Em mais de quatorze séculos por ali passaram imperadores romanos, papas, patriarcas ortodoxos, sultões e califas. Num local ímpar da bacia deste mar nosso a quem batizaram de centro da Terra. Ali, no promontório do “Serralho”, condensam-se e cruzam-se tantos caminhos, guerras, impérios, riquezas, artes, saberes e desgraças, que é impossível não sentir um peso enorme nos ombros, por maior que seja a leveza com que se procura colocar os pés naquelas pedras desgastadas pelos séculos.

A basílica é maciça, maciça no aspeto exterior, maciça no espaço interior e na sua história de sobrevivência. Os quatro minaretes que em tempos a mesquitizaram, fazem uma espécie de cerco, circunscrevendo-lhe o espaço e, se é certo que ela não cresce para lá daquele perímetro, em nada perde de dimensão e pujança. Gostaria apenas que lhe retirassem os escudos verdes arabizantes descaracterizadores, da mesma forma como apreciaria que a antiga mesquita de Córdova fosse libertada dos adicionais cristãos lá colocados.

As figuras, temporariamente escondidas durante os séculos em que foi local de culto do Islão, resistiram mais ou menos e vamos vendo-as assim, enquanto pudermos, já que não faltam tentações e intenções de fazer o edifício retomar essas funções.

Sofia significa sabedoria, certo…? Oxalá!

21 junho 2018

Impreciso


Imagem imprecisa. Depois de voltas e reviravoltas, eis-me de novo visitante regular das margens do Marmara. Um momento preciso, num intervalo estreito. Entre o fim do Ramadão, celebração secular, cujo cumprimento estrito pode levantar algumas questões de interpretação no mundo atual, e as próximas eleições, dentro de dias, as primeiras num novo modelo, com desfecho inesperado.

Haverá continuação do modelo recente, bem-visto pragmaticamente por alguns, ao menos sabe-se o que é, insustentável para outros, pelos fundamentos do sistema social ou pela questionabilidade económica? Haverá mudança e sabe-se lá para quê? Seguir-se-á um impasse?

Mantenho a foto, imprecisa do mar de Marmara, ao fundo as suas ilhas, refúgio histórico das minorias. Destaco a imprecisa pequena chama, numa mesa de esplanada de um terraço, no lado asiático da cidade. Istambul asiático, cada vez mais pujante e cosmopolita e em oposição ao “outro lado”, o europeu, mais estático e conservador. Irónico?

Perto de concluir um século sobre a sua (re)fundação, o país está suspenso e inquieto. Uma coisa, no entanto, sente-se e marca: a enorme vitalidade e energia encerradas nas suas vontades. A ver vamos. Boa sorte turcos e turcas de boa vontade.

18 junho 2018

Essa coisa do árabe


Por um lado, a utilização da palavra “árabe” é frequentemente imprecisa e, por outro lado, a evocação da “presença árabe” na Ibéria é muito fantasiada.

Arábia é a península entre o mar vermelho e o golfo pérsico. Tendo o Islão e o seu profeta aí nascido e a religião daí se expandido, generalizou-se uma equivalência forçada entre muçulmano e árabe. Os povos conquistados e colonizados sofreram uma enorme influência, mas isso não significou assimilação completa com anulação de especificidades e culturas, havendo também, evidentemente, diferenciações nas evoluções posteriores. Por esse princípio nós, e muitos mais, seriamos hoje simplesmente “romanos”.

A generalização é ajudada pelo facto de que para um muçulmano ser “árabe” é partilhar a etnia do seu profeta principal. Esta tendência é reforçada ainda pelo conceito da nação global e única, seja a histórica Umma (comunidade de todos os crentes), sejam os mais recentes projetos pan-arabizantes como o de Nasser, a partir do Egito. Por falar neste país, como explicar que um egípcio se assuma principalmente como “árabe”, quando a cultura e a história do seu país dão vinte a zero à das tribos nómadas vizinhas? O mesmo se pode dizer dos naturais do Mashrek (Levante) berço da civilização e até da escrita e do Magreb (Poente) muito mais próximos culturalmente da Europa do Sul do que dos nómadas do Hejaz (interior da tal península).

Do lado de cá, até os mais preocupados com o “outro”, apelando ao respeito pela sua identidade e cultura, não hesitam em correr toda a gente com a etiqueta de “árabe”, desde Casablanca até Damasco. Errado, muito errado. Uma generalização pouco esclarecida e desrespeitadora da diversidade cultural existente.

Sobre a presença na Ibéria dos “árabes”, cruzam-se dois romantismos. Há o dos invasores, usurpadores, que entraram por aqui à má-fila, sem terem direito para tal, obrigando a malta séria a refugiar-se num sótão, lá nas Astúrias, para depois heroicamente repor a normalidade.

O outro romantismo é o da nostalgia da herança perdida. Como se com a conquista dos castelos, todo o conhecimento que chegou e se criou naquele tempo tivesse sido embalado e viajado para fora da península, perdendo-se irremediavelmente essa herança exótica. A sério…?!

Duas visões grosseiramente simplificadas. Não foi assim tão simples, nem tão compartimentado, nem tão rápido. Tarik atravessou o estreito em 711 e a reconquista definitiva das principais cidades ocorreu nos 1240s, excluindo Granada que aguentou mais dois séculos. Fazendo as contas, são cerca de 530 anos. Recuando esse intervalo de tempo a partir de hoje, Vasco da Gama ainda não teria chegado à Índia. Esses séculos não foram sequer um período homogéneo, mas uma sequência de vários distintos: dependência dos Omíadas de Damasco, califado autónomo, taifas, califado Almorávida, de novo taifas e, por fim, o califado Almóada.

E se se falasse e estudasse isto, colocando no devido lugar a Arábia e os seus camelos?

13 junho 2018

Sim e não


13 de novembro de 2015. Na sala de espetáculos parisiense “Bataclan”, 90 pessoas são covarde e brutalmente assassinadas.

Outubro de 2018. Para a mesma sala estão programados dois espetáculos do rapper Médine, que usa a palavra jihad e que não se poupa a usar símbolos associados à mesma. Numa das suas letras, explicitamente contra a laicidade, diz “crucifiquemos os laicos como no Calvário”.

Sim, que grande país de liberdade é este em que, aparentemente, é possível e legal isto acontecer.

Não, isto acontecer é imoral e escandaloso, especialmente naquela sala.

Pode ser que a coisa do “crucificar os laicos” seja um sentido figurado, como quando alguns excitados dizem “morte aos capitalistas”, não estando propriamente a pedir a morte física dos mesmos (pelo menos a maioria…).

Não, a laicidade não pode ser posta em causa ou relativizada no nosso mundo, que prezamos. A negação da mesma, a não separação das instituições é um Estado teocrático, inaceitável, independentemente do deus em funções e dos seus putativos delegados.

Já agora, aqueles anjinhos assumidos ou dissimulados que candidamente defendem o rapper, na perspetiva da “liberdade de expressão”, manterão coerentemente a mesma posição para o caso de um outro usar uma figura de estilo do tipo: “Decapitemos os muçulmanos em Meca” ?

NÃO.

12 junho 2018

Depois do Maio


Cinquenta anos depois do Maio 1968, vivemos o Maio de 2018. Eu já era nascido no tempo do primeiro, mas não o suficiente para ter uma memória e um sentimento direto. Fica-me a ideia de que ficou na história mais pelo simbolismo do que pelos factos e pelo fundo.

Desculpem-me a dissonância, mas não consigo ver a necessidade de fazer voar paralelepípedos pela cidade para, entre outros, reivindicar o direito de os rapazes poderem entrar nas residências universitárias femininas. Dos testemunhos da época, também me parece que o famoso “É proibido proibir” seria uma forma formalmente simplificada do “Nós proibimos que nos proíbam”, fazendo o “nós” e o “nos” aqui acrescentados uma diferença grande.

França tem uma grande tradição e especialidade em romantizar (perdoem-me os romancistas) as suas revoluções. Mesmo a outra, a grande, a de 1789, por trás de uns princípios genericamente bonitos e meritórios teve uma prática miserável, para não dizer criminosa, detalhe habitualmente ignorado no boca cheia da “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”.

50 anos depois do 68, voltaram a existir distúrbios nas universidades francesas. Ao que parece por o governo tentar impor curricula específicos para acesso aos cursos. Numa equivalência local, alguém que fez o 12º ano em humanísticas, pode exigir a liberdade de entrar num curso de engenharia, mas certamente que não lhe será fácil avançar se ignora toda a matemática do secundário. Havendo taxas de abandono elevadas e recursos cada vez mais limitados…

A fotografia acima (Gonzalo Fuentes, Reuters), um simples exemplo e há mais no mesmo registo, é do estado em que ficou uma das faculdades em Paris após a sua ocupação dos defensores da “liberdade” contra a “seletividade”. Pelos vistos já não há paralelos para retirar da calçada (talvez já não haja mesmo de todo calçadas) e não se pode romanticamente abrir a cabeça aos polícias, mas não consigo entender nem aceitar esta ligeireza e desrespeito pelos bens públicos de um local que eles pretendiam simbolicamente proteger. Apetece dizer que com defensores assim, dispensam-se atacantes. Sobre as razões para a ignição destes rastilhos em meio estudantil, isso é tema para outra conversa.

11 junho 2018

Mamã, sou ministro!!



Já vivi num país onde os veículos oficiais prioritários eram mato no meio da selva da circulação local.

Com maior ou menor escolta, não havia dia em que, e por várias vezes, não tivéssemos que ceder a passagem a pessoas importantes. Até proporcionava um desporto curioso: surfar na aspiração da onda gerada. Passados os prioritários, o pessoal atirava-se para o vazio deixado, tentando assim ultrapassar uma meia dúzia de carros ainda parados. Nunca iam muito longe na onda, porque o espaço era bastante concorrido e rapidamente se viam expulsos do túnel, obrigados a dar a vez a outros competidores.

Uma vez apanhei um grande susto. O meu percurso matinal habitual passava em frente a uma “Residência da Presidência”. Para quem possa conhecer, entre Sidi Fredj e Staoueli (La Bridja) a oeste de Argel. Aconteceu então que do portão da tal residência sai à minha frente um carro preto, seguido do mercedolas. Mantive-me no meu percurso e na minha velocidade quando descubro o segundo carro preto, que deveria fechar a escolta e se tinha atrasado, a fazer sinais de luz e uns senhores lá dentro em gestos frenéticos, pedindo-me (?) para eu sair da frente, coisa que prontamente fiz: “Por quem sois !!!”. Esses carros pretos levam senhores de óculos escuros pouco sorridentes e os dois de trás, por norma, sentados de lado, voltados para o exterior do veículo.

Bom, estas invocações vêm-me a propósito de um sentimento. Acho que cada vez há mais “veículos oficiais prioritários” a passarem por mim na A1. É um sentimento, apenas.

Para os escoltados, questiono quem será assim tão importante e potencialmente em perigo que necessite de batedores na A1? Excluo as equipas de futebol, facilmente identificáveis, que jogam num campeonato de outra desgraça. Para os simples apressados, que ligam o pirilampo e sai da frente, enfim… antes de ser gente importante, toda a gente é cidadão e deve, por norma, cumprir normas iguais para todos. Isso não deveria incluir usar a prerrogativa de “importante” para viajar sistematicamente em excesso de velocidade. Tudo isto é um sentimento.

09 junho 2018

O dia do dia


Tanto quanto sei, e não sabendo eu tudo, hoje não é dia da mãe, nem do pai, nem de filhos, irmãos, primos, independentemente do grau, nem de genros, sogras, nem do Espírito Santo.

Tão pouco de Buda, nem de Alá, Ganesha, Yemanjá, Jeová, Nossa Senhora, nem de Abrão, nem de Ali, nem de Páscoa, nem Natal, nem Achoura, nem de Aid, nem de uma batalha qualquer.

Também não será dia de independência, nem restauração, revolução, reversão, massacre, martirização, nem dos pastéis de nata.

Passamos ao lado do bacalhau à Gomes de Sá, do pudim abade de Priscos, da posta mirandesa, de migas ou açordas, da cerveja artesanal e da batata frita ou por fritar.

Ignorados os pinheiros, carvalhos, medronheiros, oliveiras, sobreiros e as palmeiras sobreviventes ao escaravelho vermelho.

Não contem com protagonismo em homenagens ou barragens a vespa asiática, o lince da serra da Malcata, os touros torturados nas touradas, as raposas esfoladas nem os peixes afogados em mares de plásticos.

Com esta aridez de causas ou motivações para enfrentar o dia, que fazer então, que se pode publicamente declarar? Pode não ser fácil e é de recordar que o não fácil é muitas vezes sinónimo de meritório.

Tentar que um simples dia do dia, seja melhor do que o dia de ontem?