24 junho 2021

O camarada Vasco


Com o centenário do nascimento de Vasco Gonçalves, vejo algo surpreso o branquear da cor do Primeiro-Ministro do Verão quente, colocando em evidência os avanços sociais ocorridos nesse período, tais como o estabelecimento do salário mínimo, dos subsídios de férias e desemprego e da licença de parto.

Sendo isso verdade, pode-se questionar se ocorreu graças a ele em particular ou se teria acontecido dentro da dinâmica da época, independentemente do PM em funções. Pode-se também olhar para outras coisas que se passaram nessa altura, como as suas posições quanto à não liberdade sindical a as pressões sobre a comunicação social desalinhada.

Um bom exemplo, foi o jornal República fundado em 1911 por um distinto republicano, António José de Almeida. Foi oposição e sobreviveu ao Estado Novo, mas soçobrou naquele Verão quente de 1975. Não vou desenvolver aqui os detalhes do que se passou, eles estão facilmente acessíveis a quem quiser saber, apenas o significado.

O PCP, através dos seus ativistas, com a cobertura do governo Gonçalvista, calou um órgão de comunicação social incómodo. Não foi um ato isolado, a Renascença sofreu as mesmas pressões, o DN teve uma série de jornalistas saneados pelo futuro Nobel e muitos outros periódicos viram areia cair nas suas engrenagens.

O caso República levou à saída do PS do governo e teve repercussões internacionais, forçando mesmo outros PCs europeus a demarcarem-se do seu homólogo português. Tudo isto no tempo do camarada Vasco, que não era democrata, nem defendia os valores de Abril partilhados pela larga maioria do povo português.

10 junho 2021

Verdes são os campos


Verdes são os campos,
De cor de limão:
Assim são os olhos
Do meu coração.

Campo, que te estendes
Com verdura bela;
Ovelhas, que nela
Vosso pasto tendes,

De ervas vos mantendes
Que traz o Verão,
E eu das lembranças
Do meu coração.

Gado que pasceis
Com contentamento,
Vosso mantimento
Não no entendereis,

Isso que comeis
Não são ervas, não:
São graças dos olhos
Do meu coração.

 

Para sempre grande Luiz Vaz, de quem pouco se sabe do acessório, mas que excelsas no fundamental.

09 junho 2021

Bolhas e pegadas


Ainda não sabemos ao certo todas as consequências da famosa final da “Champions” no Porto em termos diretos Covid e de imagem do país. Obviamente que se o objetivo era mesmo que os adeptos viessem em bolha, alguma proatividade teria sido necessária e não simplesmente esperar que eles se encapsulassem todos voluntariamente.

Para lá desta questão do âmbito da má gestão sanitária, vamos supor que era para ser e teria sido mesmo assim. 14000 espetadores, principalmente adeptos ingleses, em bolha, vindos para ver o jogo e a regressarem a casa no próprio dia. Nestes tempos em que, por razão ou religião, o ambiente é um tema quente, se mede a pegada de carbono de tudo e mais alguma coisa, quando até um tribunal nos Países Baixos condena a Shell a reduzir as suas emissões, qual o sentido de termos uns 100 aviões a virem da Inglaterra a Portugal para os passageiros simplesmente assistirem a uma partida de futebol e nada mais?

Obviamente que é um disparate completo. Quantos daqueles adeptos até defenderão a utilização de veículos elétricos, supostamente para proteção do ambiente, independentemente da origem da energia que lhes carrega as baterias? Um tema desta relevância deveria ser mais bom-senso, razão e coerência e menos radicalismo, religião e oportunismo.

Adicional em 13/06/2021 com a versão impressa (parcial).



06 junho 2021

Essa coisa da guerra


Num 6 de junho de há 77 anos atrás, as forças aliadas desembarcavam na Normandia, um pouco mais de 4 anos após a evacuação dramática de Dunquerque e 2 anos após a tentativa falhada de Dieppe. Desta vez foi a boa e apesar do muito sangue e tripas que se seguiram, marcou irreversivelmente a evolução da guerra na Europa Ocidental.

Vimos este dia mais longo em inúmeros olhares Hollywoodescos. Ainda em 1988 alguém como Spielberg narrava a odisseia de salvar o soldado Ryan, último de uma fraternidade ainda em vida. Quase 80 anos é, felizmente, muito tempo e cada vez mais a visão e a memória que fica é a dos dramas e das ações heroicas… encenadas.

Passar nos locais, em corpo ou em espírito, é um exercício necessário. Se pensarmos que esta chacina, com a particularidade de ter sido especialmente violenta contra as populações civis, muito pela novidade do papel da aviação, ocorreu 20 apenas após a chacina anterior, 80 anos já é bastante bom tempo. O suficiente para nos convencermos que não será possível voltarmos a viver tempos assim (a Ucrânia não fica assim tão longe), pelo menos de forma tão generalizada.

Os cemitérios militares são um local onde devemos passar e parar. Não são coisa de filmes. Onde devemos homenagear a memória de vítimas, algumas que nem se sabe quem foram, mas que foram.

Imagem do cemitério militar americano de Omaha Beach.

03 junho 2021

Do paternalismo ao autoritarismo


A definição de Direitos Humanos abarca questões fundamentais pouco sujeitas a revisões ou atualizações de contexto. Novos contextos podem obrigar a novas regulamentações, apenas. Daí que a recentemente publicada famosa “Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital”, me pareça logo excessiva em termos de título.

Quanto ao conteúdo há algumas curiosidades. Uma é o tom paternalista como o Estado promete tratar de tudo e proteger os cidadãos “vulneráveis”. Nesse sentido vem o famoso artigo 6 –“Direito à proteção conta a desinformação”, definindo-se esta como “toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada […] para enganar deliberadamente o público, e que seja suscetível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, […]”. Os “spins doctors” tanto do agrado dos políticos, chamados para criar e gerir narrativas simpáticas, evitando que o público se aperceba da verdadeira dimensão dos erros cometidos, estão tramados. Se isso não é uma ameaça aos processos políticos democráticos…

Há apenas duas dimensões limitadoras da liberdade de expressão e não específicas da chamada era digital. Uma é a penal, para a qual existem leis e tribunais; outra, especialmente importante para quem tem responsabilidades públicas, é a ética – é feio mentir, mesmo não sendo crime.

O Estado vigiar a desinformação e apoiar a criação de estruturas de verificação de fatos, será talvez uma forma de controlar o estrume, sendo este o resultado de um processo de decomposição e um excelente fertilizante, fazendo medrar verdades a partir de podridões.

A fronteira entre o paternalismo e o autoritarismo pode ser atravessada com muito facilidade e o nome correspondente é muito feio.