30 agosto 2017

Para ninguém morrer mártir


O filme de Nabyl Ayouch, “Os Cavaleiros de Deus”, com o subtítulo “Ninguém nasce mártir”, de que já falei aqui atrás, ficciona a radicalização de um grupo de adolescentes, em Sidi Moumen, um subúrbio pobre de Casablanca, situando-os, no final, nos atentados suicida ocorridos nessa cidade em 2003. É um contexto facilmente “justificável”: um meio muito desfavorecido, sem perspetivas, e onde este desfecho pode ser apresentado como um efeito colateral e inevitável (?) da miséria.

Nos recentes atentados da Catalunha identifico algum paralelismo no processo de radicalização de um grupo de jovens, mas há uma diferença fundamental. Os jovens de Barcelona não viviam num bairro da lata; estavam suficientemente integrados, a ponto de as suas ações muito surpreenderam quem os conheceu. Lança-se o argumento de que não estariam suficientemente integrados, que sofreriam alguma frustração, do não ser dali nem da origem e receita-se mais esforço de integração. Com o devido respeito, discordo.

Todos os adolescentes, e não só, passam por fases de frustração e de ansiedade, não sendo necessariamente a radicalização violenta uma consequência inevitável. Um imigrado/deslocado tem sempre problemas de não ser completamente de um sítio, nem do outro. Podem confirmá-lo os nossos emigrantes, que, no entanto, não desatam a matar cidadãos do país anfitrião por esse motivo. A propósito, este efeito do desenraizamento cultural e da crise de identidade, talvez seja um ponto a não ignorar por aqueles que acham que a solução para os problemas no terceiro mundo é trazer toda a gente para a Europa.

Se as fases de frustração são inevitáveis, com mais ou menos desenraizamento a ajudar, onde está o caminho para evitar o problema? Estará na criminalização dos promotores, daqueles que exploram essas frustrações em proveito de um projeto de poder obscuro, ou consequência de um simples ressentimento mal resolvido. Todos os ímanes e afins que pregam um islão hegemónico e a islamização da sociedade devem ser criminalizados. A eficácia do policiamento desse crime pode ter as suas brechas, naturalmente, mas, para mim, não restam dúvidas de que essa gente promove o ódio e o crime. A tolerância deveria ser zero.

28 agosto 2017

O limite leste da Europa?


Dizem que Portugal é o limite ocidental da Europa (continental), no cabo da Roca até se recebe um certificado, e há quem defenda uma Europa do Atlântico aos Urais. Segundo os antigos, o meridiano de Alexandria dividiria o nosso continente da Ásia e também há quem ache que a Europa, mesmo Europa, só começa para lá dos Pirinéus.

Por estes dias, fiquei com a ideia de que a Hungria é o limite oriental de uma certa Europa. Em tempos associada ao Reino do Leste (Oesterreich = Áustria), a Hungria foi o leste do leste. Vindos dos Urais, os húngaros aqui instalados foram durante algum tempo um tampão às investidas contra o ocidente (ainda hoje…?). Foi também terra de fronteira, não entre o cristão e o mouro, mas entre o cristão e o turco.

A monumentalidade de Budapeste transmite sensações diversas. Por um lado, parece uma subsidiária da imperial Viena, algo feito num dia ou numa noite, muito demasiado neo qualquer coisa e com pouca patine do tempo para os parâmetros europeus. Por outro lado, há no ar algo de único que desafia e atrai… e aquele idioma...

Em geral, os húngaros não parecem imediatamente simpáticos nem acolhedores. Inolvidável a zanga e a agressividade gestual de um funcionário a quem interrompemos o saborear de umas batatas fritas para comprar um bilhete de entrada num monumento.

Na estação de comboios de Budapeste há comboios catitas a saírem para Viena e Munique e também decrépitos para Belgrado. Há o metro “Millenium”, o primeiro construído na Europa continental, ainda no século XIX, e onde descendo um simples lanço de escadas a partir do passeio, já se está no caís; há os novos modernos e janotas e os do tempo soviéticos, que ameaçam qualquer falange que se ouse interpor entre as portas a fechar.

Entre a Áustria e a Hungria, historicamente ligadas, passou a cortina de ferro. Também foi aqui que abriu a primeira brecha da mesma em agosto de 1989. Também foi na Hungria, em 1956, que ocorreu um dos primeiros desafios públicos à dominação soviética e o sair para a rua e morrer, exigindo liberdade. Albert Camus fez uma vibrante e sentida homenagem a esses heróis, que pode ser vista integralmente aqui e cito uma passagem.

“Não sou daqueles que pensam poder haver um conformar, mesmo resignado, mesmo provisório com um regime de terror que tem tanto direito de se chamar socialista como os verdugos da inquisição tinham em se chamarem cristãos.” (politicamente incorreto e ignorado pelos seus companheiros de estrada, que em 1957 ainda acreditavam em amanhãs cantantes).

Há uma certa Europa que termina aqui na Hungria e há qualquer coisa de mágico no estar num limite e numa encruzilhada.

21 agosto 2017

Je suis Altice

Não sou cliente da PT, nem pretendo ser, e não tenho nenhuma simpatia ou admiração especial pela Altice. No entanto, como cidadão, sinto vergonha pela triste figura que o nosso governo está a fazer, no assédio à empresa francesa, protagonizado pelo próprio Primeiro-Ministro.

A PT enquanto pública, ou “para pública”, foi um rio de dinheiro, aproveitado e abusado por muitos famosos da praça. No meio desse saque, o negócio ruinoso com o Brasil destruiu o valor da empresa, sempre sob o alto patrocínio, interesse e influência de quem governava. Sobre as responsabilidades neste saque aparentemente não se interessam os políticos, apenas os juízes.

Subitamente, a Altice e a PT, passaram a ser coisa pestilenta. Nos dias seguintes à tragédia de Pedrogão, o PM assume e repete cegamente o comunicado desresponsabilizador do SIRESP, que, supostamente, não tinha falhado; agora decretou que o colapso do sistema foi devido aos cabos aéreos da PT, pelos vistos subcontratado do consórcio (e gostava de saber se nesta cadeia alguém exigiu contratualmente cabos enterrados). Amanhã, se a Altice desistir de comprar a TVI, voltamos à primeira forma? É claro como água que foi esta aquisição que irritou o PS, a ponto de vermos um PM fazer figuras terceiro-mundistas. Em que continente vivemos?

Sobre o Siresp, só fica bem quem não esteve perto. Hoje temos um sistema caro, obsoleto e frágil. Já que o PM tem um amigo bom a renegociar coisas, e até conhecedor deste dossier, a solução é resiliar e contratar uma prestação de serviços a profissionais, deixando de brincar a infraestruturas de comunicações dedicadas que falham ao primeiro aperto (não apenas quando os cabos aéreos ardem).

16 agosto 2017

Maniqueísmo e Jardins da Luz



Quando hoje falamos em “maniqueísmo”, como uma visão redutora e simplicista, não sabemos (eu, pelo menos são sabia) a origem da palavra, de Mani, um Parta que viveu no século III, ali pela Mesopotâmia, na altura sob influência persa, a quem os chineses chamaram “o Buda da luz” e os egípcios “o apóstolo de Jesus”.

O seu “maniqueísmo” era entre as luzes e as trevas, mas, mais do que forçar uma opção, ao que a palavra atualmente se associa, ele defendia uma universalidade da espiritualidade, tolerante e humanista, e uma laicidade do poder temporal, a todos os títulos muito moderna. Acabou perseguido, odiado e condenado, naturalmente…


- Se dizes o mesmo que o Messias ou Buda, porque procuras construir uma nova religião?
- Àquele que nasceu no Ocidente, a sua esperança nunca floriu no Oriente, daquele que nasceu no Oriente, a sua voz nunca atingiu o Ocidente. É necessário que cada verdade carregue os trajes o a pronúncia dos que a receberam?
- Mestre, admito que certas crenças merecem ser respeitadas. Mas os idolatras, os adoradores do Sol?
- Acreditas que um rei terá inveja se alguém beijar a orla da sua capa? O Sol não é mais do que uma lantejoula da capa do Altíssimo, mas é através dessa lantejoula cintilante que os homens podem melhor contemplar a Sua Luz.
“Os homens acreditam adorar a divindade, quando apenas conheceram as suas representações, representações em madeira, em ouro, em alabastro, em pinturas, em palavras, em ideias”.
-E aqueles que não reconhecem nenhum Deus?
- Aquele que recusa ver Deus nas imagens que se lhes apresentam, estará por vezes, mais próximo do que qualquer outro da verdadeira imagem de Deus.

Excerto recolhido do romance sobre a vida de Mani – Les Jardins de Lumière – de Amin Maalouf.

14 agosto 2017

PCP – prova de vida?


Já sabemos que nos tempos que correm ser comunista puro e duro é uma coisa meia religiosa, de fé e de dogmas. Após cem anos de ensaios não faltam evidências da falência do modelo e a realidade sócio-económico atual é também excessivamente diferente da do tempo de Karl Marx. Num contexto religioso é normal, e fundamental, existirem coisas do domínio do misterioso…

Um dos mistérios destes dias, para mim, é o apoio do PCP aos “déspotas boliverianos”. Se no passado, quando não havia internet nem satélites, ainda se podiam imaginar coisas bonitas sobre Cuba e ignorar, querendo ou não querendo, a ausência de liberdade, sem entrarmos noutras carências, sobre a Venezuela de hoje, não há desculpa.

É-me extraordinariamente difícil entender como alguém com o mínimo discernimento ainda consegue ser solidário com esta “tragédia boliveriana”. Para ajudar, ainda vejo posições de apoio à Coreia do Norte, contra o imperialismo americano. Não, não tenho grande simpatia pelos EUA, muito menos pelo Sr. Trump. Apesar de tudo, admiro um país onde as instituições funcionam e a separação de poderes é robusta, como o próprio sr Bush está a constatar. Mas, criticar os EUA, fazendo vista grossa das deficiências, para não entrar em pormenores, do regime norte coreano, é muito caricato.

Tenho uma teoria especulativa para desvendar estes mistérios. O PCP encontra-se apertado dentro da geringonça. Depois das reversões efusivamente saudadas, já ninguém sabe bem o que fazer para a ceia e, na prática, aquelas bandeiras históricas do sair da Nato, sair do Euro, desrespeitar o tratado orçamental da UE e etc, começam a ganhar bolor.

Gritar o apoio aos revolucionários do mundo, acaba por ser uma forma de marcar diferença, de apego às raízes, uma prova de vida. Perigosa, no entanto, por ser intelectualmente muito desonesta.


10 agosto 2017

Laicidade e laicofobia


Voltando à questão dos abusos, que começou aqui e depois divergiu para um “podemos não estar de acordo” aqui, achei por bem, eventualmente sendo de novo abusivo, transcrever um texto, algo provocador, de Amine Zaoui, jornalista argelino e muçulmano, publicado recentemente no jornal argelino “Liberté”. Certamente não faltará quem o insulte de várias formas e feitios. Não vou dizer que estou de acordo e tudo subscrevo, mas é assunto que vale a pena questionar e um ponto de vista que merece ser analisado/discutido.

O muçulmano, todo o muçulmano em qualquer parte do mundo, é alérgico ao conceito de "laicidade". A palavra "laicidade" assusta-os! Magoa. Angustia. Aos seus olhos, "laico" é equivalente a comunista. Semelhante a "ateu". Igual a "irreligioso". Sinónimo de imoral. Ou ainda, um laico é um judeu. Um judeu é um laico. Um laico é um cristão. Um cristão é um laico. Qualquer laico é um não-muçulmano. E todo muçulmano é um não-laico, um laicofóbico. Um muçulmano não pode imaginar outro muçulmano laico. Na ausência da laicidade como um estilo de vida social, como uma forma de pensar, como cultura política, o mundo muçulmano tornou-se um mundo islâmico. Consumido pelo fundamentalismo. Mesma a laicidade na Turquia é ameaçada pelo islamismo fanático apoiado pelo projeto político da Irmandade Muçulmana. A "laicidade" assusta os muçulmanos desde Meca até Nouakchott, assusta o político muçulmano tanto de direita como de esquerda, assusta os "doutores" das universidades e assusta o cidadão normal.

A laicidade é um monstro! Mas porquê essa "laicofobia" no muçulmano? A escola é a fonte fundamental dessa doença chamada laicofobia. A escola, qualquer escola no Magrebe e no mundo árabe-muçulmano, do jardim de infância à faculdade, ensina aos seus alunos que a laicidade é um perigo para a religião islâmica. Que "laicidade" é o inimigo número um do Islão. Ela é uma armadilha armada pelos judeus aos muçulmanos! Ela é o isco do anzol colonial. Depois, porque o cidadão se afoga num grande vazio intelectual, onde a história das ideias filosóficas universais é banida. Os muçulmanos vivem fora, sem História e fora da História. Ou fazem a História à sua maneira, para se vangloriarem! Porque não existe nenhum pensamento crítico. Porque o fanatismo se impõe nas escolas e nas universidades, o muçulmano é apanhado pela laicofobia. Porque o religioso é um destino comunitário imposto. Porque não há nenhum debate intelectual livre e racional, o muçulmano tem medo de laicidade. Porque não existem partidos políticos reais com programas da sociedade, todos eles são de criados ou alimentados por correntes nacionalistas de tempero islâmico ou pelas ideias da Irmandade Muçulmana.

A fobia islâmica face à laicidade criou uma cultura de ódio em toda a sociedade muçulmana. Esta fobia islâmica generalizada em direção à laicidade reforçou a mentalidade de rebanho, impediu o muçulmano de poder cultivar uma liberdade individual. Esta laicofobia criou um sentimento de medo do outro, de recusa de viver com os outros. Esta laicofobia ergueu barreiras face àquele que não é semelhante, na religião ou na forma de pensar. Esta doença que é a laicofoboa é a consequência de tudo o que o povo do Magrebe e do mundo árabe-muçulmano viveram em deceção política, social e cultural, e isto dura desde as independências desses países. Se um muçulmano não se liberta desta doença psico-intelectual que é laicofobia, ele permanecerá condenado a viver no medo, ódio e violência, contra si mesmo e contra o outro.

Nunca se explicou ao crente muçulmano simples, com clareza e coragem intelectual e política, o significado da laicidade. Nunca se ensinou às crianças das escolas muçulmanas que a laicidade é o único caminho que garante o respeito pelas religiões, por todas as religiões. Que só a laicidade garante o respeito do ser humano, com as suas convicções religiosas, filosóficas e políticas. Que o caminho da laicidade é o garante da possibilidade de convivência, entre o muçulmano e outras pessoas pertencentes a outras religiões ou outras não-religiões. Que a laicidade permitirá o florescimento em todo o respeito das diferentes culturas e línguas que vivem no Magreb ou neste mundo árabe-muçulmano. Todas as guerras declaradas no mundo muçulmano, ou noutro lugar, em nome do Islão contra outras religiões, contra outras culturas, outras línguas são resultado desta laicofobia, desta doença que corrói o muçulmano, onde quer que ele se encontre.

Sem respeito pela laicidade como cultura, pensamento e como modo de vida social e político, a própria existência do Islão permanecerá ameaçada no mundo. E a laicofobia gera a islamofobia.

08 agosto 2017

O Qatar é fixe?


Antes da polémica com a atribuição do Mundial de futebol de 2022 e com as condições desumanas nos estaleiros, muita gente teria dificuldade em distinguir o Qatar do Bharein ou até poderia presumir tratar-se de mais um emirato dos associados/reunidos.

Quem acompanhou o processo das primaveras árabes pela rama, terá ficado surpreendido por esse país ter participado ativamente e militarmente no derrube de Khadafi. Parecia estranho, num contexto supostamente meio fraterno. Quem viu de mais perto, identificou que o Qatar e o seu braço mediático, a Al-jazira, simplesmente cavalgaram a onda de contestação inicial, para ajudarem a derrubar os regimes “laicos” da região. Aqueles onde o Islão político, fundamentalmente inspirado e patrocinado pela Irmandade Muçulmana, estava severamente condicionado. Não foram os únicos, mas tomaram bastante protagonismo, muito graças à “compreensão” e aos “favores” de França, na altura liderada pelo Sr Sarkosy. As bombas caíam na Líbia e os petrodólares em França.

A influência do Qatar foi crescendo e isso, naturalmente, incomodou os Sauditas, guardiões dos lugares santos de Meca e Medina e putativos e pretensos líderes da comunidade muçulmana mundial. O boicote recentemente decretado por estes e pelos seus acólitos é inesperado e brutal. A propósito de brutalidade, podemos referir que a destruição inconsequente em curso no Iémen é também brutal e, neste caso, sobre a vida e a condição humana, bastante mais grave do que a diplomática e económica.

Neste mundo, onde tantos gostam de se posicionar entre amigos e inimigos, o facto de os Sauditas estarem nas boas graças do Mr Trump, traz alguma simpatia ao Qatar… e um certo crédito de modernidade, para já não falar do glamour de dar 200 milhões de euros por um miúdo famoso, para o pôr nuns retratos.

A acusação de suporte ao terrorismo, ou mais suavemente, de proximidade e apoio a fundamentalistas, cheira um pouco a de roto para rasgado. Incluir o fecho da Al-jazira no pacote das exigências, tem uma leitura clara: é um foco de influencia do Qatar no mundo, muçulmano e não só, que faz uma sombra incómoda para os Sauditas.

Desenganem-se os românticos, anti-trumps ou fans de qualquer coisa glamorosa. O Qatar faz sombra, sim, mas, no fundo e na copa, as árvores são muito parecidas, para não dizer iguais …


Foto da Reuters

06 agosto 2017

Podemos não estar de acordo…

Na sequência do texto anterior sobre abusos, não será certamente abusivo copiar para aqui um excerto da parte final do livro “Pourquoi j’ai cessé d’être islamiste”, de Farid Abdelkrim, muçulmano e ex-islamista francês.

Debater tem um sentido. Significa ouvir. Ouvir e entender que alguns dos meus concidadãos possam estar angustiados. Que eles possam sentir medo, por causa da visibilidade islâmica incarnada, defendida e/ou revindicada por alguns muçulmanos. Neste mundo, aprendi que Deus não se esconde sob um hidjab. Que a grandeza do Islão não se resume ao tamanho de uma barba ou à escuridão de um niaqb. Neste mundo, não dou o mínimo crédito à existência e à pertinência da “islamofobia”. Neste mundo, os muçulmanos – que eu acompanhei durante cerca de 30 anos e continuo a acompanhar – são todos diferentes. Há pessoas boas. Muito boas. E há igualmente malfeitores. Há de tudo. Há vitimas. Mas há também culpados. E inocentes. E idiotas. E santos. Verdadeiros. Há homens. E mulheres. E cidadãos. E mentirosos. E ladrões. E gulosos. E obcecados. E marialvas. E virtuosos. E integristas. E psicopatas. E doentes.

Neste meu mundo, eu não estou só. Há muçulmanos. E há todos os outros… neste mundo. Que contam igualmente.

Neste mundo, alguns creem em Deus… outros não…e há mesmo alguns que se tomam por Deus.

Neste mundo, enfim, debater é vital. Tem sentido. Isso significa alimentar. Mas significa também alimentar-se. As duas coisas ao mesmo tempo, falar e ouvir. É o direito de discordar, sem esquecer o direito de respeitar o desacordo daquele que me fala. É admitir a possibilidade que eu possa estar errado e que ele possa estar certo.

Este é, portanto, o mundo onde estou e onde vivo. Esta é a minha França. A minha concepção do debate também. A minha concepção do homem. E do muçulmano… Mas podemos não estar de acordo.

04 agosto 2017

Incidentes, relatórios e instituições


Entre o sábado 29/7 e a terça-feira 1/8, a estação de comboios de Montparnasse em Paris, viveu dias caóticos, ainda por cima num fim de semana especialmente movimentado. Tudo por causa de uma avaria difícil de encontrar, mas, para lá do problema original, a gestão da contingência agravou o caos. Descoordenação, informação incoerente entre os vários canais da empresa de caminhos de ferro, etc. Não morreu ninguém, mas houve um serviço público que falhou para lá do razoável (não esquecendo que somente nunca falha aquilo que nunca trabalha).

No dia 3/8, dois dias depois de resolvido o problema, o relatório da incidência é publicado pelo Ministério dos Transportes, evidenciando alguma desorganização estrutural com tomadas de decisão tardias, ausência de base de dados única e centralizada para a gestão da informação e tecnologias existentes obsoletas. Segue-se a definição de um conjunto de ações concretas para endereçar os problemas encontrados.

Já chega de detalhes, porque o que se passa nos caminhos de ferro franceses não é assim tão relevante para nós. De realçar apenas a rapidez com que o Estado diagnostica, informa, assume e reage. Lembrei-me dos nossos tempos recentes e, só a título de exemplo, do Siresp. Inicialmente falhava apenas um pouquechinho; depois do desplante de a Altice comprar a TVI, sem pedir licença, passou a estar debaixo de fogo. Muito do que se sabe é devido à investigação jornalística (maldita para alguns) e não à livre iniciativa (e obrigação) dos organismos oficiais. Resultados claros e objetivos do(s) inquérito(s) aparecerão, eventualmente, um dia, sabe-se lá...

Subdesenvolvimento é/nasce disto, por muito que os vendedores da banha da cobra argumentem e convençam algum povo de que a culpa é de Berlim, Bruxelas ou do diabo a sete.


Imagem do "Le Parisien"

02 agosto 2017

Um gosto

Já contei aí para trás como conheci a escrita de Amin Maalouf e o prazer que ela me dá. Desta vez foi o “Rochedo de Tanios”, que estava numa lista de espera com mais dois do mesmo autor.

De novo no Levante (Mashrek), apenas com um pequeno desvio por Chipre, não é um livro de grandes viagens como “O Leão Africano” e muitos outros do escritor. Situado na primeira metade do século XIX, está focado na terra de Maalouf, nas montanhas do Líbano, disputado entre Otomanos e Egípcios, com as potencias europeias numa “espreita” ativa. E com homens e mulheres, ricos de fraquezas, perdidos nas suas grandezas e suficientemente imprevisíveis para serem humanos.

Uma terra, ontem e sempre, charneira entre o Norte e o Sul do Médio Oriente, demasiado fraca para se impor e demasiado forte para sucumbir.

Por estes lados, ao olhar por binóculos para lá, é comum generalizar aqueles outros como árabes e muçulmanos, mas a realidade é muito mais rica. Os livros de Amin Mallouf ajudam bastante a entender essa riqueza, para lá da religião e dessa suposta monto-etnia derivada da pretensa superioridade e obrigatoriedade de se ser descendente do profeta.

Cá para mim, acho que um dia tenho que ir ao Líbano. Não que por lá exista um rochedo de Tanios, de onde se possa ver uma apelativa nesga de mar, mas porque ir conhecendo uma nesga da cultura daquele Levante, é apelo que chegue e:

“O destino passa e repassa por nós, como a agulha do sapateiro passa através do couro que ele trabalha”.

Derivando um pouco: há sempre (temos que ter sempre) lugares especiais onde se “decanta a alma”. Os rochedos (penedos) prestam-se bem a essa função. Por acaso, há umas dúzias anos que “tenho” um, nas montanhas, o da Lapa.