26 outubro 2016

TPI e Gâmbia

Nas imagens recorrentes dos migrantes africanos mortos e resgatados já se entendeu que nem todos são refugiados sírios, há alguns de cor escura (será politicamente correto dizer assim?). Uma parte significativa desses vêm da Gâmbia, um pequeno país de 2 milhões de habitantes, situado na costa ocidental de África, encaixado no Senegal.

República tornada islâmica, governado desde 1994 por Yahya Jammeh, após golpe de estado, é um país onde é muito perigoso ser jornalista. Ser oposição e manifestar dá direito a ser preso e estar preso não é nada saudável, dado que a detenção provoca frequentemente a morte. Jammeh é um ditador perigosamente ridículo e, evidentemente, os indicadores de desenvolvimento não são brilhantes. Será de estranhar que muitos dos seus habitantes queiram fugir dali?

Recentemente o país anunciou a sua saída do TPI (Tribunal Penal Internacional), por entender que este apenas persegue dirigentes africanos. Por exemplo, Jammeh pediu que o TPI abrisse um processo à União Europeia por causa dos migrantes mortos no Mediterrâneo e essa pretensão não foi satisfeita!

Tornar a Gâmbia um país “decente”, de onde as pessoas não queiram fugir a todo o custo, correndo riscos enormes não é uma opção para o senhor. A culpa é e há-de ser sempre dos colonizadores. Atendendo a que os portugueses foram os primeiros europeus a pôr os pés por ali, ainda nos vai chegar também fatura.


Foto extraída do site do "The Telegraph"

24 outubro 2016

O deserto é monoteísta?


Há frases que, quando chegam, entram com estrondo, sem pedir licença e se nos instalam imponentes e inamovíveis. Numa nota de rodapé de um livro que estou a ler, o Al-Muqaddima de Ibn Khaldun, uma espécie de história universal escrita no século XIV e que me dará temas para mais algumas reflexões, o tradutor chamava a seguinte frase de Ernest Renan, filósofo, historiador e escritor francês do séc XX.

“O deserto é monoteísta”. É uma frase fantástica de reflexão e provocação. Se realmente as religiões monoteístas nascem no deserto, podemos ver aí um dedo do infinito, a opressão e angústia dos grandes espaços, a necessidade do rigor e disciplina para a sobrevivência, o valor da frugalidade e, já agora, a plenitude da felicidade não ser atingida nesta vida árida terrena, mas sim transferida para uma outra existência futura?

Ao passear em torno da expressão, encontrei uma frase resposta, complementar, ser arriscada por alguns: “a floresta é politeísta”. A fertilidade, a alegria das cores, a diversidade da natureza farta não cabem num deus único e precisam de uma paleta de deuses que esteja à altura de tanta exuberância?

A citação inicial enquadra-se numa perspetiva desenvolvida por Ibn Khaldoun, defendendo a superioridade moral, maior coragem e empenho dos homens nómadas, fruto da necessidade de sobreviverem num deserto agreste, face aos citadinos amolecidos nas carnes e nos espíritos pelos confortos e facilidades do seu modo de vida. Acrescenta que os nómadas vencem os segundos com alguma facilidade, devido à sua têmpera mais rija, mas depois sedentarizam-se e degeneram.

Fazendo um salto perigosíssimo para a teologia. As religiões monoteístas do deserto, em confronto, com as da floresta levam/levaram a melhor, mas depois têm dificuldade em manterem-se com a mesma forma depois da vitória? Exemplos não faltam. Por acaso estou até a ver uma série sobre os Bórgias, mas nem é preciso ir tão longe.

Mesmo sem chegar às divergências da prática, permanecendo sob os princípios e as suas evoluções. Que relação têm as fecundas “Nossas Senhoras“ com o ascético deserto dos profetas? Não haverá aqui já uma espécie de florestação do deserto?

Há aqui pano para muitas mangas…!
Imagem: Entre o deserto argelino e uma araucaria brasileira...

20 outubro 2016

O contentamento do Manuel

Dizia o Manuel que para ele o preço da gasolina nunca mudava.

Ele metia sempre no depósito 20 Eur de combustível, não gastava nem mais nem menos um cêntimo. Parece que este governo é aconselhado por quem conhece bem os Maneis deste país. De facto a reposição dos rendimentos e outras benesses, para alguns, tem contrapartidas que todos irão pagar, a menos do Manuel que gasta sempre 20 Eur no posto de abastecimento.

Como o crescimento não apareceu, uma não surpresa para quem pensasse um bocadinho, fica o dar com uma mão para tirar com a outra. O pessoal (algum) recebe algo mais no início do mês, mas depois entrega-o com acréscimo nas taxas e taxinhas. O Manuel anda contente.

Quem pensa em investir é que precisa de pensar três vezes, que é quase tanto quanto subiu a base para a taxa sobre o arrendamento local, por exemplo. É que os investidores não fazem as contas como o Manuel.

17 outubro 2016

À espera da “slim tax”


Vamos supor que eu tenho um aumento em Janeiro e decido comprar um carro novo. Como o valor do aumento não chega para a prestação, resolvo fazer a compra apenas em Julho. Assim o ano “safa-se”, dado ter um aumento de receita durante 12 meses e de despesa em apenas 6.

O grande problema virá, está bom de ver, no ano seguinte, considerando que não tenho novo aumento e vou precisar de pagar as prestações do carro novo logo a partir de Janeiro. Aí concluo ter feito uma opção irresponsável.

Os orçamentos de Estado do atual Governo, com as suas “reposições” e aumentos de despesa/redução de receitas faseadas ao longo do ano, fazem-me lembrar um cenário deste tipo. Se no ano passado ainda podia haver alguma justificação, dentro da teoria de que a reposição dos “rendimentos” geraria crescimento, justificando uma evolução faseada, hoje já sabemos que, por este andar, o crescimento chegará apenas numa manhã de nevoeiro.

Insistir em arrancar com novos impostos em janeiro e atirar compromissos quanto à despesa lá para a frente vai colocar um sério problema para o orçamento de 2018. Isso pode nem ser problema se houver eleições antes; senão, lá terá que surgir uma “slim tax” ou outra coisa qualquer que torne o orçamento “bom”, dentro daquele sábio princípio “Um bom orçamento é aquele que vai buscar dinheiro onde os orçamentos anteriores não descobriram que ainda havia para tirar.” Por outras palavras, a política fiscal não é um contrato minimamente estável entre o Estado e o contribuinte, mas antes uma espécie de exercício de “geocaching” em busca das receitas escondidas.

14 outubro 2016

O que é a literatura?

Dizem os dicionários que a literatura é a arte da palavra, de compor obras em que a linguagem é usada esteticamente. Não me parece que obrigue à produção de tijolos de 500 páginas. Também não penso que as palavras deixam de ser arte quando manifestadas conjuntamente com a música. Aliás, há quem defenda que a poesia deve ser cantada.

O Prémio Nobel da literatura para Bob Dylan não premeia a música, premeia as palavras de um trovador e só por snobismo se pode pretender que essas e outras trovas não são arte de palavras. Dentro do género, é difícil dizer que Dylan será o mais merecedor. Eu, pessoalmente, veria com muito apreço e justiça um reconhecimento literário de Jacques Brel.

Descendo aqui ao nosso burgo. Alguém dúvida ou questiona a excelência literária de Sérgio Godinho ou Carlos Tê?

12 outubro 2016

May you stay…


Dos tempos em que o cinema não tinha pipocas, do tempo que as pessoas iam mesmo ver um filme e ficavam caladas do princípio ao fim, sem desatarem em conversas de autocarro, especialmente nos momentos mais densos, quando o silêncio da tela deve inundar a sala, nesse tempo havia um cinema no Porto chamado “Batalha”. O “Batalha” tinha anexa uma pequena sala, justamente denominada “Sala Bebé”, com uma programação muito interessante e onde vi uma grande parte dos filmes “bons” de que me recordo.

A propósito dessas recordações e desses filmes, ressurgiu-me recentemente a memória de uma coisa especial chamada “The Last Waltz”, de Martin Scorcese. Uma banda fundamentalmente de suporte, que assumiu simplesmente o nome de “The Band”, fez um concerto de despedida, convidando uma grande parte daqueles com quem partilharam o palco durante a sua carreira e esse concerto deu um filme. No fecho, uma interpretação de “I Shall Be Released”, que talvez não fique para a história pela performance em si, juntou no palco alguns dos convidados. Incluindo apenas Bod Dylan, Dr. John, Neil Young, Van Morrison, Ringo Starr, Joni Mitchell, Eric Clapton, Neil Diamond, Ron Wood. Estes são os mais sonantes para mim, mas a lista não é exaustiva.

Recentemente comprei o CD duplo do registo, sim, sou daqueles que ainda compra CD’s, e é muito bom, mesmo. Sem grandes precisões ou justificações, destaco um tema muito forte, próprio do grupo, “The Nigth They Drove Old Dixie Down”, cantado pelo fantástico Richard Manuel, e impõe-se-me um “Forever Young” com o Bob Dylan, o mais assíduo e continuado utilizador dos serviços da banda.

May you stay….forever…

11 outubro 2016

Quem deve, paga?

O governo anunciou um perdão fiscal, mas oficialmente não é designado perdão, dado que “quem deve vai ter que pagar aquilo que deve”. Se não pagará juros nem custas, presumo que estes não eram, então, devidos. Deduzo também que os prazos para pagamento das obrigações fiscais são algo de não vinculativo.

Há cerca de 5 anos atrás cobraram-me uma multa por um IUC pago fora do prazo. Dois anos antes tinha-me atrasado escandalosamente um mês e meio! Comigo foi fácil e tive que acrescentar uns módicos 46% adicionais ao valor total do imposto (já integralmente pago 2 anos antes, insisto).

Devo reconhecer que até dá algum jeito haver contribuintes com dívidas ao Estado. É uma reserva de “liquidez” que pode ser usada num momento de aflição como parece ser o atual.

Obviamente que de justo não tem nada, mas o que mais me irrita, sinceramente, são estas argumentações de atirar areia para os olhos: “quem deve vai ter que pagar aquilo que deve”. Tenho muita alergia a areia nos olhos. Chateia-me…!

06 outubro 2016

Felizmente má marioneta

Há uns largos anos vi um cartoon em que o SG da ONU era uma espécie de marioneta comandada por 3 ou 4 senhores do mundo. A particularidade era cada qual ter os seus fios e seu próprio comando. Assim, o desgraçado, penso que na altura seria Boutros-Ghali, estava todo torcido, uma perna para cada lado e de braços cruzados, para grande desespero dos tais senhores que exclamavam: “Este tipo não faz nada de jeito”.

É uma imagem bastante representativa e, de certa forma, feliz. Por um lado o SG tem um poder limitado e sofre enormes pressões; por outro lado é positivo não haver um senhor que o possa controlar. Isso seria o fim da organização. Melhor todos dizerem “este tipo não faz nada de jeito” do que um deles dizer “este tipo faz tudo o que eu quero”.

Neste contexto, a manobra de última hora, pouco cristalina, revela uma atitude extraordinariamente perniciosa e sectária. Não se excitem os “esquerdas” com este falhanço infeliz da direita. Se o favorito fosse de direita e a esquerda tentasse algo de idêntico, ouviríamos o mesmo, apenas em espelho. Posso estar a especular excessivamente e gratuitamente, mas a última coisa de que precisamos são politiquices sectárias de “connosco” ou “contra nós”, relativamente ao SG da ONU. Infelizmente vivemos um tempo em que a luta pelo poder num contexto em mudança está a radicalizar posições.

Há e terão que existir sempre valores de nível superior a politiquices, muito especialmente quando recheadas com tiques populistas. Acredito que António Guterres consiga voar mais alto do que esses mal crescidos.

04 outubro 2016

O encanto da segunda linha


O que têm em comum Mértola no Guadiana, Silves no Arade, Alcácer do Sal no Sado, Montemor-o-Velho no Mondego e até mesmo Santarém no Tejo? São as cidades de segunda linha nos respetivos rios e todas elas, mais tarde ou mais cedo, foram perdendo importância, ou por alteração dos circuitos comerciais, ou por consolidação e garantia de segurança contra a pirataria nas suas correspondentes, mais expostas na costa.

As cidades de segunda linha têm o encanto do que já foi. De uma certa forma pararam no tempo ou o tempo principal passou a correr desviado delas. Nas suas ruas, hoje menos do que já foram, correm cheiros de outros tempos. As ruas antigas fluem e cruzam-se sem pressas, irremediavelmente ultrapassadas. Os cais já não se vêm, ou se se existir algo mais do que a sua memória não terão barcos ou, se os houver, não estarão atarefados a carregar e a descarregar mercadorias.

Eu gosto de cidades de segunda linha, desamparadas. A sua despromoção ensina-nos. A evolução é complexa e muitas vezes imprevisível; a riqueza é construída e também tributária de circunstâncias não dominadas; o decair pode não significa acabar, mas recomeçar de outra forma.

Curiosamente, para o Douro não existe nenhuma cidade de segunda linha nas suas margens agrestes. Foi o rio que não deixou ou o Porto que não precisou? A primeira urbe interior intrinsecamente ligada ao rio surge apenas no Peso da Régua, mas o seu desenvolvimento é relativamente recente e num contexto muito específico. As cidades da bacia do Douro, Penafiel, Amarante, Lamego e Vila Real, não estão nele mas nos afluentes e não puseram (julgo eu) barcos na água. Um rio diferente.

03 outubro 2016

Posso revelar?


Nem todos possuem fontes que permitam um espaço semanal de revelações em horário nobre, mas, desta vez, eu trago uma boa. O meu amigo Hans, funcionário numa chancelaria de Além Reno, contou-me a razão das reviravoltas de última hora no processo de escolha do próximo secretário-geral da ONU. E passo a ficcionar:

Diz ele que há umas semanas a Frau Angie apareceu extremamente nervosa depois de um sonho, pior, de um pesadelo que teve. Viu ela a Fraulein Todwasser numa conferência de imprensa a apresentar em primeira mão as linhas orientadoras futuras da ONU. Considerando a proximidade entre o partido do candidato favorito e as Todwasser, ela achou aquilo uma espécie de aviso e de premonição.

Bem lhe tentaram explicar que o candidato favorito não era daqueles socialistas neo-marxistas, era dos antigos, melhor, dos intermédios, parece que até ia à missa, não sendo e forma nenhuma previsível que ele precisasse ou utilizasse o apoio das Todwasser. A Frau Angie continuava desconfiada. Depois de o líder deles ter andado tão excitado a tsiprar, ela já não confiava muito naquela gente e pediu a opinião a uns amigos, que conheciam um pouco o país. Estes conheciam basicamente as praias do sul, mas lá lhe contaram que o geringoncismo pós-eleitoral do partido tinha surpreendido muita gente, mesmo uma parte do seu eleitorado.

É certo e sabido que se há coisas que os alemães não suportam são imprevistos. A Frau Angie disse então: Não pode ser. Que avance a Cristalina, se não conseguir passamos à Depuralina. Não podemos, de forma nenhuma, correr o risco de ver a ONU geringonçar.

02 outubro 2016

A exceção OPEP

Se um conjunto de produtores de um dado setor de atividade se reunir secretamente para acordar quotas de produção, distribuições de mercado e tentar manipular ou condicionar preços está sujeito a pesadíssimas penalidades, que várias entidades reguladoras da concorrência não hesitam em aplicar.

A Opep reuniu-se esta semana e decidiu reduzir a produção, para procurar fazer subir o preço do petróleo. Veremos o que dá na prática, dado que a confiança mútua não é particularmente elevada entre os seus membros.

Custa-me a entender como esta cartelização de mercado funciona assim, publica e impunemente. É certo que se eles se zangarem e boicotarem fornecimentos, lá teremos que cozinhar a lenha, jantar à luz da vela e deslocarmo-nos de burro ou bicicleta… ou não.

Acredito que não seja possível, na prática, tratar o petróleo como uma indústria qualquer, até por questões geoestratégicas sensíveis associadas, mas gostava de saber o que as autoridades de regulação da concorrência pensam sobre isto, quanto ao princípio.