30 outubro 2018

Khashoggi e o resto


Há um sítio argelino de “falsas notícias” muito interessante, o www.el-manchar.com, sendo que, naturalmente, para entender muitas delas é necessário conhecer o contexto do país. Sobre o desaparecimento do jornalista saudita no consulado do seu país em Istambul produziram uma série de provocações primorosamente oportunas e irónicas. Cito alguns exemplos.

“Daesh denúncia um crime bárbaro e acusa a Arábia Saudita de ser a vergonha do terrorismo internacional”

“Morte de Khashoggi: A Arábia Saudita apresenta as suas desculpas e promete a partir de agora apenas matar iemenitas”

“Said Bouteflika: Graças a Deus, Mohamed Tamalt não tinha amigalhaços no Washington Post” O primeiro citado é o todo-poderoso irmão do Presidente da República e o segundo um blogger que morreu na sequência de maltratos numa prisão argelina.

E certamente salutar esta indignação mundial com a sorte de Khashoggi e fazer chegar a quem de direito (torto) a mensagem que não vale tudo. A obstinação da Turquia em encostar o príncipe saudita às cordas não é, obviamente, motivada por questões de princípio. É aproveitar o acontecimento para marcar posição e procurar alterar a relação de forças no xadrez do poder regional.

A indignação, sendo positiva, não chega. É pouco se não for acrescentada a situação de tantos outros crimes por “delito de opinião” de quem não tem amigos nos jornais ocidentais ou nalguma confraria influente. É pouco para parar a desgraça que dura há mais de três anos no Iémen, já suficientemente pobre mesmo sem guerra. Como militarmente não está a ser um sucesso, apesar de todo os milhões gastos em equipamento comprado ao ocidente, a tática da coligação liderada pelos sauditas passou a ser atacar as infraestruturas, mercados, barcos de pesca, cortar a alimentação e vencer pela fome. De recordar que alguma vista grossa face ao crime de Istambul é pragmaticamente justificada pela manutenção dos contratos de fornecimento de armas em curso.

Estima-se existirem no Iémen 400 000 crianças sofrendo de subnutrição severa (como na foto acima da AFP), três em cada quatro pessoas necessitam de ajuda alimentar, mas tudo estará “relativamente” bem, desde que morram apenas iemenitas sem amigos influentes.

10 outubro 2018

Trumpalhou, né?


Parece mais do que certo que o grande país, nosso irmão, irá Trumpalhar. Obviamente que a culpa não é individualmente do personagem Bolsonaro, por muito detestável que possa ser a sua personalidade e os seus princípios. A culpa direta é claramente dos milhões de brasileiros que nele votaram e que muito provavelmente o confirmarão na segunda volta.

Se o crescimento dos populismos é geralmente o resultado de uma saturação e descrença relativamente às propostas mais tradicionais e consensuais, esta evolução no Brasil não deixa nenhuma dúvida a esse respeito. Como pôde o PT não se distanciar dos escândalos de corrupção e tentar posicionar-se em busca de uma limpeza, pelo menos no discurso? Talvez não pudesse mesmo visceralmente de todo fazê-lo, mas entre corruptos consagrados e condenados e um polémico autoritário não serão de estranhar os milhões de votos neste último e a sua provável eleição.

Resultou muito patético, além de obviamente ineficaz, ver gente que da parte da tarde apela ao repúdio de Bolsonaro, cheia de boas intenções, é certo, quando da parte da manhã defende Lula da Silva e o seu sistema, considerando-o um “preso político”.

Portanto, trumpalhou, sim, mas por mais detestável que ele seja, a culpa não é do Bolsonaro, obviamente.

08 outubro 2018

E se fosso pelo outro lado?


O Presidente da Camara de Lisboa lembrou-se de reduzir o preço dos passes sociais à custa dos impostos de todo o país. Como era descaramento a mais, acrescentou-se o Porto à ideia e parece que a coisa vai mesmo passar para o próximo orçamento de Estado. Estou a tentar imaginar o entusiasmo de um transmontano a pedir faturas oficiais com IVA, para assim financiar a mobilidade dos habitantes das grandes metrópoles do litoral.

Ficou por discutir o que poderia ser uma alternativa mais interessante e sustentável: reduzir o custo para os utilizadores a partir da redução e otimização dos custos operacionais. Como se consegue? Com uma gestão competente e séria. Os “gestores” nomeados pelos políticos têm essas qualidades? Pois… não sei.

Um contrato de concessão pode perfeitamente enquadrar as exigências de um serviço público como uma gestão profissional e eficiente… desde que seja bem feito. Para redigir e colocar em vigor um bom contrato é necessário competência e seriedade. Evidentemente que discutir estas questões nesta perspetiva não está na agenda. Os tempos são mais para “papas e bolos”.

03 outubro 2018

Os evangelhos, os sagrados e os satânicos

Cumpriram-se por estes dias trinta anos sobre a data da publicação de um dos livros mais polémicos das últimas décadas. Não, não estou a falar de “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” cá do burgo, um pouco mais recente e que apenas provocou a não atribuição de um prémio literário e o exílio voluntário do seu autor. Também não foi censurado nem, tanto quanto me recordo, queimado. O livro em causa, incomparavelmente menos provocador, li os dois, deu origem a sentenças de morte, algumas executadas.

Vamos deixar de lado o facto de a larga maioria dos que falam (ou agem) excitadamente contra livros, filmes e o que quer que seja declarado satânico, não os conhece, não os leram e nem sabem bem o que está mesmo em causa. Apenas alguém terá ditado sentença e o povo acata.

Hoje, a publicação de um livro “religiosamente provocador”, que provoque pela narrativa heterodoxa, sem apelo direto ou indireto ao ódio ou à violência, seria mais tolerada? Infelizmente, penso que não. Curiosa e infelizmente alguma dessa intolerância é justificada e defendida por insignes figuras de uma sociedade, a nossa, que deve o seu sucesso aos seus valores de tolerância, liberdade e respeito pelas diferenças. Há aqui um passo perigoso: quando a abertura é utilizada para fechar, quando o respeito pelos outros é utilizado e manipulado para proteger projetos hegemónicos e intolerantes.

Sem prejuízo do tal respeito, insignes e menos insignes deveriam firmemente refutar e intransigentemente condenar as intolerâncias e as violências contra simples heterodoxias, por mais escandalosas que possam parecer. Caso contrário, serão os alicerces da nossa sociedade que se questionam e abalam. E se ela não é perfeita, não conheço outra melhor. É importante não regredirmos.

02 outubro 2018

Um banco em segunda mão

Quando se vende um bem como, por exemplo, um automóvel usado, é habitual seguir-se o princípio de ele ser vendido no estado em que está, analisar-se previamente tudo o que houver para analisar, ficando fora de questão eventuais compensações, ajustes ou acertos futuros. Exceção, e legalmente suportada, poderá existir quando existe algo intencionalmente escondido. O princípio salutar é que a partir de altura em que já não sou eu quem o conduz e mantém, também não quero ser responsabilizado por eventuais avarias.

O processo de venda da Novobanco parece ser um caso pouco saudável do género: o banco agora é vosso, vocês passam a geri-lo, mas se alguma coisa correr mal, suposta herança do período anterior, mandem-nos a conta que nós pagamos. Este “nós” acaba por não ser bem o “nós” que assina. É o fundo de resolução e no fundo o contribuinte que evidentemente não tem mais opção do que pagar o que lhe mandam.

Leio que o NB anuncia precisar de mais 726 milhões, sendo que a conta ainda não está fechada. Parece-me ser uma história do tipo: olha, naquele automóvel que me vendeste há uns meses, a embraiagem foi à vida. Vou substitui-la por uma nova e mando-te a conta.

Não será tão simples avaliar o balanço de um banco como a saúde do motor de um automóvel, mas todos sabemos que a embraiagem pode ir à vida mais depressa ou mais devagar conforme o tipo de condução.