28 fevereiro 2007

Ridicularias

Num daqueles varrimentos do espectro da FM a ver o que por lá há, aterrei numa rádio local de uma dessas terras de vinho verde.

Um locutor com voz meia de banda sonora de filmes dos anos cinquenta, meia de quem descansa de um relato de futebol ia lendo mensagens escritas. E lá vinham as declarações rimadas com procurar, achar, amar e enfim... Sorri com uma ironia a fugir para o desdém de tanta pobreza expressiva e pirosice.

Num segundo tempo, lembrei-me que alguém tinha tido o trabalho de procurar dizer uma coisa bonita ao/à amado/a. Tinha saído foleiro porque talvez não desse mais, mas, como dizia um dos portugueses dos 10 finalistas do concurso dos “Grandes Portugueses”, e este com pleno mérito: todas as cartas de amor são ridículas.

Os grandes poetas escrevem magníficas cartas de amor que são publicadas em livros bonitos e caros; outros escrevem sms foleiros rimados em “ar” que passam na rádio local. Mas, no fundo, no fundo, é a mesma coisa.
Ridículo não é rimar em "ar", mas sim nunca ter rimado...

25 fevereiro 2007

Rigores

Se é verdade que um contexto diferente dá matéria para histórias pitorescas, tenho, depois de vir para cá, procurado resistir a transformar o Glosa Crua em diário de viagem e, por isso, limitado a percentagem dos textos em estilo de crónicas de exótico. De vez em quando, no entanto, lá vem uma.

No âmbito dos preparativos da vinda li um interessante livro sobre o declínio da sociedade muçulmana, centrado principalmente no Império Otomano, chamado “What went wrong” de Bernard Lewis. Para lá da forte influência religiosa que condiciona a abertura à inovação (a Europa já viu disto também noutros tempos), referia outros aspectos curiosos como, por exemplo, a falta de rigor. À partida isto surpreendeu-me para uma cultura que inventou a numeração que utilizamos e que teve um contributo muito forte nos primórdios da geometria e da astronomia, só para referir estas duas.

Depois de cá chegado, já tinha detectado alguns sinais dessa falta de rigor. Um dos aspectos é o usar a “desculpa” dos ciclos lunares para só decidir da mudança de lua no próprio dia e por observação directa. Não seria nada difícil prever ao início do ano todo o calendário lunar porque a mesma não muda de velocidade a meio. Aqui, em parte, está a pressão dos “observadores da lua” que perderiam relevância se se passasse para um método científico.

Outro aspecto é na escrita. A mesma palavra aparece impressa de formas diversas. Ainda pode haver uma desculpa de a transcrição do árabe não ter adaptação directa. Mas não é isso, é mais um “desde que se entenda, tanto faz”.

Outro caso é o dinheiro. Convém saber sempre de antemão quantos zeros tem um preço porque o numero de zeros à direita é variável. Dois exemplos recentes:
As batatas custavam 80 dinares o kg e as maças 60. Ao ser inquirido, o vendedor disse respectivamente 8000 e 6000. Ainda podia ser somente a utilização antiga dos cêntimos mas, no final cobrou-me 14. Ao meu franzir do sobrolho, apontou para um saco e disse 6 e para o outro e disse 8.
Recentemente entregaram-me uma factura de 70 000 mais 17% de Iva e que tinha em 3 linhas alinhadas:

...70 000
+ 119 000
= 81 900!

Eu disse que estava mal mas ele encolheu os ombros e argumentou que não era importante, o total era mesmo 81 900. Quando apontei para a parcela do IVA que saltava à vista ter um zero a mais, ele encolheu os ombros e com uma esferográfica fez um grande zero de dois pequenos que lá estavam e pronto!
“Mania destes tipos de se preocuparem com detalhes!”

23 fevereiro 2007

A linha do Tua



Terão passado já cerca de 30 anos mas permanece-me na memória como uma das mais marcantes viagens de comboio que jamais realizei. Apanhamos o comboio normal da linha do Douro até ao Tua e daí até Mirandela mudamos para um com carruagens históricas de madeira. Os compartimentos da primeira classe, luxuosos no seu estilo, estavam forrados a veludo verde. Nos topos das carruagens havia plataformas abertas unicamente com uma pequena protecção baixa. Acredito que hoje essas plataformas seriam absolutamente interditas mas, atravessar aquela paisagem assombrosa com umas pequenas incursões à plataforma, ficou-me gravado para sempre.

O regresso foi feito muito mais rapidamente numa banal automotora em que o “troque-troque” das carruagens da véspera era substituído por uma balançar alucinante. Interrogavamo-nos mesmo se os túneis teriam largura suficiente para tolerar tamanha oscilação.

Confesso que estava erradamente convencido que a Linha do Tua tinha sofrido o mesmo destino de tantas outras linhas menores. Esta evocação vem a propósito do recente acidente. Espero que este trágico acontecimento não sirva de ponto final na utilização do troço mas que venha antes chamar a atenção para o potencial duma das zonas mais espectaculares do país e onde só uma agreste linha de comboio consegue penetrar por entre aqueles imponentes penhascos.

Foto extraída de www.transportes-xxi.net

21 fevereiro 2007

Ainda a conta corrente



Esta foto não é recente nem rara. Circula por aí isolada ou aos molhos com outras bonitas e/ou expressivas. Acho que foi tirada na faixa de Gaza após uma retaliação ter atingido alguém próximo da criança. Não tenho a certeza, mas também não é importante o detalhe. Há expressões que não pertencem a nenhum tempo nem a nenhum lugar específicos.

Na sequência do post anterior, que pode ter parecido de estranha lógica, este é um exemplo do efeito das famosas e intermináveis contas correntes entre os “fortes” deste planeta.

20 fevereiro 2007

Proporcionalidade e conta corrente

Eles já não eram de bons fígados e, distraído ou não, naquele dia, o Silva não cumprimentou o Sousa quando se cruzaram.
O Sousa não gostou e, para “paga”, comentou no café que o Silva era uma grandessíssimo mal criado.
O Silva não gostou e, para “paga”, deixou o seu cão urinar no pneu do automóvel do Sousa.
Para “paga”, o Sousa riscou o automóvel do Silva com um prego.
O Silva apanhou o Sousa distraído e, para “paga”, martelou-lhe o automóvel com um ferro.
O Sousa viu o filho do Silva e, para “paga”, com outro ferro, partiu-lhe uma perna
.

Vários anos após, o Silva e o Sousa continuam a ferro e fogo, apresentando continuamente ou ao outro facturas que nunca saldam a dívida. O último fica sempre credor e com “direito” a avançar com nova cobrança.

Esta história pode parecer ridícula e sem sentido, mas não é assim tão descabida. Cada vez que falta o sentido da proporcionalidade e a retaliação é percebida como desmesurada, o retaliado fica credor. E, por pequena que seja a dívida inicialmente criada, se os intervenientes não tiverem sentido de proporcionalidade e de razoabilidade, o resultado é triste:

Poderá haver um “fraco” que se submeta, tolerando melhor ou pior a “injustiça” (se o Sousa não ligasse à falta da saudação ou se o Silva tivesse ignorado o comentário no café, nada do seguinte teria ocorrido).

Ou, então, não há “fraco” e há guerra, estúpida como a maior parte delas, e maior ou menor conforme os meios ao alcance destes “fortes”.

Os grandes homens têm sentido da proporcionalidade e conseguem saldar as suas dívidas honradamente; os fracos não. E uma boa parte das atrocidades neste mundo nascem, precisamente, da falta de sentido de proporcionalidade destes “pseudo-fortes”.

18 fevereiro 2007

"Norte"




É verdade que poucos conseguem viver sem um Norte claro. Querem, ao acordar de qualquer coisa, ser capazes de olhar em volta e, como a bússola eficaz, poder rapidamente identificar a direcção de referência.

É verdade que vivemos uma espécie de crise de valores com muita gente perdida sem Norte (só hoje ou, mais ou menos dissimulado, terá sido sempre?).

É verdade que o Norte não tem que ser unidimensional nem redutor.

E é claramente verdade que, para o melhor e o pior, poucos terão um “Norte” tão claro, omnipresente e inequívoco. Para o melhor e para o pior, claro.


Na foto: Seta indicadora da direcção de Meca, num tampo de mesa de quarto de hotel.

13 fevereiro 2007

Ainda os Googles

Após o texto anterior sobre googleadas, resolvi fazer uma pequena colecção dalgumas aterragens curiosas que entranto cá chegaram.

- Texto de homenagem a deus
- Acidentes provocados por vulcões durante uma erupção
- Torcedores mortos
- Por que a filosofia é importante para a sociedade
- Chupou os dedos do pé
- Beijo virtual
- O verde come o resto do arco-iris
- Brincadeiras para jantares
- Tatuagens escritas em grego
- Como preparar uma aula diferente
- Fazer o auto-retrato
- Grupo motard acelera de Famalicão
- Relatório sobre o filme o código de davinci
- Preço de paineis fotovoltaicos em Espanha
- Botelhos odemira
- Maiores engenheiros
- Desvalorização da imagem feminina
- Qualidade do líder, analogia e organização do filme golpe baixo
- simbolos faraonicos tatuagens

Receio bem que estes visitantes não terão encontrado exactamente o que buscavam. Entretanto, ao escrever e ao publicar isto, estou a aumentar a probabilidade de ocorrerem novas aterragens pelos mesmos motivos!

Por curiosidade, fui espreitar se o “meu” Sid Barret ainda lá estava e descobri que tinha caído para 29º lugar... Mesmo assim, acho continua "alto" demais.

11 fevereiro 2007

Filosofia e terrorismo

Durante a Guerra de Independência da Argélia (1954-1962), o movimento de libertação FLN entendeu que provocar atentados e atingir civis nas cidades, por ter mais impacto e visibilidade, era muito mais eficaz de que afrontar militares algures numa frente obscura no interior do país. A França reagiu de forma pouca bonita usando de todos os meios incluindo tortura e execuções sumárias para travar o que entendiam ser um flagelo que “quase tudo” justificava. Esta situação foi próxima da actual no Iraque e consta que o Sr G. Bush anda a ler livros sobre o assunto. Infelizmente o epílogo da guerra na antiga colónia Francesa foi tudo menos pacífico e civilizado, apesar de um controlo militar muito mais efectivo do que o actual no Iraque.

Que pensar sobre o assunto? Duas grandes referências intelectuais da época, filosoficamente muito próximas, escreveram sobre o assunto de forma diversa:

Vivemos no terror porque a persuasão deixou de ser possível, porque o homem se entregou inteiramente à história e já não se pode voltar para a parte de si mesmo, tão verdadeira quanto a parte histórica, e reencontrar face a ele a beleza do mundo e dos rostos, porque vivemos no mundo da abstracção, o dos escritórios e das máquinas, das ideias absolutas e do messianismo sem nuances. Asfixiamos entre aqueles que acreditam terem absolutamente razão, seja na sua máquina, seja nas suas ideais. E para todos os que não podem viver que não seja no diálogo e na amizade dos homens, este silêncio é o fim do mundo.
Albert Camus in “Reflexões sobre o Terrorismo”

Nestes primeiros tempos de revolta, é necessário matar. Abater um Europeu é matar dois coelhos de uma só cajadada, suprimir ao mesmo tempo um opressor e um oprimido: ficam um homem morto e um homem livre. O sobrevivente, pela primeira vez, sente um solo nacional sob a planta dos seus pés.

Jean-Paul Sartre – Prefácio ao " Damnés de la Terre”.

Já sabia há muito que ia um mundo de diferença em termos de grandeza humana entre estes dois vultos. Estes dois extractos citados num livro que acabei de ler sobre o assunto em questão, “Les souffrances secretes des français d’Algérie” de Raphael Delpard, somente o confirmam.

Dá para entender e sorrir ironicamente ao recordar que Camus foi acusado pelos canónicos existencialistas de ser demasiado humanista.

Quanto à profunda leitura que Sartre faz do significado dos atentados, ele que nunca tendo sequer posto os pés na Argélia não correu o risco de cair aos pedaços sob uma bomba libertadora, fica-me a questão: se a bomba explodisse numa esplanada de Montparnasse entre duas baforadas do seu belo cachimbo, lhe amputasse as pernas e matasse alguns próximos, incluindo crianças e familiares, seria que manteria inalteradas estas suas “teorias teóricas”?

08 fevereiro 2007

Ainda o aborto: moderno ou retrógrado?

Tenho a sensação de que não acompanhei bem esta campanha. Parece-me, no entanto, que a principal novidade relativamente à última é uma certa falência na argumentação do “sim”.

Utilizar a argumentação sócio-económica para justificar a inevitabilidade do aborto e, por consequência, se tem que haver, que seja legal, é, na minha opinião, inaceitável. Os problemas de carências afectivas, maus tratos e más condições em geral na criação de uma criança resolvem-se não a deixando nascer? E para as que já nascerem e que sofrem desses problemas? Suprimem-se? É claro que não, porque se trata de um vida.

Está bom de ver que a questão toda está quando começa essa vida. Parece óbvio que uma semana antes de nascer, não faz sentido, a vida já existe. E 3 meses antes? Também não! E 6 meses? E 7 meses? Onde fica essa fronteira? Porque raio 10 semanas e não 5 ou 20 ou 12 ou .. zero ? Que se passa de especial para justificar essa fronteira dessas 10 semanas?

Evidentemente que uma gravidez indesejada pode transformar e transtornar profundamente uma vida ou uma família mas as soluções drásticas têm que ser justificadas num balanço global de prós e contras considerando todas as implicações e alternativas. Justifica-se restaurar a pena de morte para evitar que um assassino perigoso cometa mais crimes? Justifica-se acabar com as penas de prisão em geral dado que, muito frequentemente, elas propiciam um agravamento do perfil criminoso de quem lá passa uns anos?

Pondo de lado toda a questão religiosa, acho que, sabendo o que se sabe hoje, do ponto de vista puramente civilizacional, o aborto não é “moderno”. Julgo que virá um tempo em que o aborto será considerado uma prática bárbara do passado. A história o dirá.

07 fevereiro 2007

"Googleando"

No fundo deste página está um quadradinho tipo arco íris, símbolo do objecto que conta as visitas que por aqui passam. Este é do “Sitemeter”. No seu registo, também guarda a página de onde o “Glosa Crua” foi acedido. E, quando vem de um motor de busca, como o Google, por exemplo, encontram-se pesquisas bem curiosas. É frequente ser formulada completamente uma interrogativa do tipo: onde é que posso encontar x. Só falta mesmo colocar um Por favor no início e um muito obrigado/a no fim. Tudo sem aspas, claro.

Acho que a mais curiosa foi algo do género: como fazer paté com azeitonas do Douro. Garanto que nunca coloquei receitas aqui. Pela diversidade de temas e pela longas páginas de arquivos mensais, os blogues são fortes candidatos a serem apanhados nestes inquéritos a granel.

A maior surpresa destas googleadas foi há dois dias. Alguém veio cá ter em busca de Sid Barret. Efectivamente, em Julho passado, coloquei um pequeno apontamento, na sequência do seu desaparecimento . Por curiosidade fui ver a página de entrada e no google.pt e, em 959 000 resultados, o Glosa Crua aparece em 4º lugar (!!). Para lá de alguma satisfação (enfim, é humano...) custa-me entender como uma pequena nota de há 7 meses possa ter tamanho destaque.

Garanto que não paguei nada a ninguém nem tenho amigos no Google. Só me confirmou o que já pensava. Muito cuidado com o resultado das googleadas.

04 fevereiro 2007

Histórias estranhas

Entre 1954 e 1962 os Argelinos lutaram encarnecida e violentamente para que aquele território deixasse de ser parte integrante da França. O modelo de insurreição e de terrorismo associado foi quase um prenúncio do cenário actual do Iraque.

A França da altura, saída não há muito tempo de uma guerra feia em que o inimigo tinha usado de tudo, desde torturas a liquidações sumárias, apregoava a sua profissão de fé na liberdade, mas não hesitou em usar tácticas àquelas de que tinha sido vítima nessa guerra suja.

Os Argelinos de hoje, libertos do domínio Francês, não gostam dos Franceses mas gostam da “França”. Uma boa parte da nova geração não quer outra coisa que não o atravessar o Mediterrâneo e ir ter "à sua França”. Mais do que desenvolver o seu país “soberano”, pretendem apanhar boleia do modelo europeu.

Conclusões?

02 fevereiro 2007

Eufemismo

Se em vez de “pobreza”, se dissesse CMBS (Carência de Meios Básicos de Subsistência) ? Seria óptimo, porque acabaríamos com os pobres! E se em vez de se dizer “analfabetismo” se inventasse uma ILE (Insuficiência em Leitura e Escrita)? Deixaríamos de ter analfabetos no país!

Isto a propósito da sigla IVG. Porque não continuar a chamar-lhe mesmo o que é: “aborto”?! Porque é necessário criar e invocar este eufemismo? Para amaciar o carácter brutal da palavra? Será que, para discutir o aborto, o primeiro passo é chamar-lhe outra coisa?

Confesso que a minha posição sobre a aborto é clara quando aplicada numa perspectiva pessoal, mas pouco definida quanto a definir uma regra geral. No entanto, não posso aceitar nem entender muitos dos disparates que se dizem de ambas as partes. Por exemplo, não posso aceitar que a mulher tenha “direitos” plenos sobre a sua procriação nem que a actividade sexual só possa existir em contexto de “procriação”.

Quando os adeptos do sim dizem que é mais digno a criança não nascer do que nascer sem haver condições afectivas ou económicas para a criar, esquecem uma coisa: se uma família deixar de ter essas condições depois da criança nascer, também se aplica a mesma lógica? Claro que não! Como se define então o tempo limite para o aborto? Porquê “x” semanas e não “y” ?

Por tudo isto, nunca se poderá chamar digna a opção do aborto e a sua banalização jamais será aceitável