25 março 2019

Quando o software faz tudo


Uma das primeiras coisas que aprendi nos primórdios dos meus tempos de programação foi que num sistema complexo há duas classes de erros. Os conhecidos que se manifestaram e os escondidos que por lá estão e continuarão até um dia se mostrarem. Nunca há certeza absoluta da ausência de “bugs”, por mais testes que se realizem. Obviamente que quanto mais testes, menor a probabilidade. Muitas vezes, o problema nem residirá na implementação da lógica básica, que pode estar certíssima, mas sim na falta de previsão de situações de exceção e de proteção contra inputs incoerentes.

Se estiver em causa um programa que conduz vidas, seja, por exemplo, num automóvel autónomo ou num avião, este princípio assusta um pouco. Se pensarmos nas funções automáticas de proteção, que são supostas evitar estragos e atuar de forma bastante autoritária…

Num voo de teste do Airbus A320, o primeiro avião comercial pilotado “by-wire”, sem ligação mecânica entre os comandos e os lemes, ele despenhou-se tranquilamente numa floresta, naturalmente contra a vontade dos pilotos. O sistema de controlo entendeu que ganhar altitude naquelas circunstâncias seria estruturalmente perigoso para o aparelho e “protegeu-o”, mandando-o ceifar pinheiros. Felizmente na fase de testes.

A recente bronca com os Boeing 737 MAX é apenas mais um problema de um bug não detetado a tempo? Dira que não…

A otimização do consumo de combustível levou à utilização de motores de grande diâmetro, incompatíveis com a posição original dos mesmos na estrutura do velho modelo. O aparelho ficou potencialmente instável, com tendência a “empinar”, podendo entrar em perda. O problema foi corrigido/protegido por… software, que, detetando essa tendência, o aponta para baixo, a fim de não perder sustentação. Tão drástica atuação baseia-se na informação de um único sensor de ângulo. No avião existem dois, mas esta função só lia um, sendo a monitorização dos mesmos e a sinalização de eventuais incoerências uma opção de compra, não incluída na configuração básica do avião. Para ajudar um pouco mais, a Boeing não publicitou essa particularidade, desconhecida dos pilotos, que, ao verem o avião a apontar para baixo sem razão aparente, não tinham nenhuma ideia do que se estava a passar, nem do que fazer para corrigir…

Para lá da ligeireza evidente deste contexto, duas questões de princípio minhas, que pouco entendo, face a estes acidentes tão estúpidos. Como não é possível em circunstâncias tão dramáticas retirar os automatismos e deixar os pilotos pilotarem, se é que ainda o sabem? Entre o automatismo achar que o aparelho está em risco de entrar em perda e os pilotos o verem a picar para o solo, quem deve prevalecer?

Como é possível que, conhecendo o avião a altitude a que está, aceite o mergulho, mesmo supostamente protegendo-o da perda, atirando-o para o chão? Vais cair, ok, mas ao menos estatelas-te a voar como deve ser, não em perda!

Na minha ignorância, parece-me que houve por aqui uns enxertos mal-amanhados e que a culpa não é só nem principalmente do software.


Foto do site da Boeing

21 março 2019

Tipo avozinho simpático


Com aquele ar mais de avozinho ancião simpático do que de lobo mau, suposto comer criancinhas ao pequeno-almoço, Jerónimo de Sousa foi incapaz de dizer aquilo que qualquer marciano aterrado neste planeta facilmente concluiria em poucas horas. Que o regime Norte Coreano não é uma democracia, sendo que existem por aí ditaduras muito mais respeitáveis e decentes do que aquele perigoso e pouco saudável regime, para os seus e para o resto do mundo.

Segundo ele, antes de admitir se a Coreia do Norte é ou não uma democracia, coloca-se a questão: “O que é a democracia? Primeiro tínhamos de discutir o que é a democracia.” Ou seja, uma questão que não se coloca é se Jerónimo de Sousa terá a mínima ideia do que é uma democracia. Aparentemente não tem.

Também diz: “Em relação ao regime norte-coreano, nós caracterizamo-lo como um país com vontade de atingir o socialismo, mas assumimos que temos diferenças e até divergências.” Ou seja, o objetivo final de King Jong Un e o seu é o mesmo, o caminho eventualmente diferente, até porque existem diferenças culturais.

“Os caminhos para a transformação social e o socialismo na nossa pátria são de certeza diferentes”. Mas o destino é o mesmo, para o Sr Jerónimo de Sousa e para quem o apoiar? É mesmo assim!?? Chiça!!

Está bem que o ancião pode não comer criancinhas ao pequeno almoço, mas, desculpem lá, este senhor é perigoso.

20 março 2019

Anacronismos gritantes

Há quem mate brutalmente (será que existem assassinatos delicados?) em nome de uma guerra santa que começou há 14 séculos. Agora, na Nova Zelândia, alguém matou invocando o outro lado dessa guerra, situando-se uns séculos mais à frente. A guerra é a mesma, mas há um pormenor relevante, o não estarmos na Idade Média e ser claro e assumido pela larga maioria que o “não matarás” é um valor, mais do que religioso, inquestionável na cultura em que vivemos.

Estaremos às portas de uma guerra de civilizações, de um reeditar das conquistas e cruzadas, como alguns gostam de evocar e de com isso excitar espíritos, com motivações diversas? Penso que não. Uma guerra envolve duas partes que falam a mesma linguagem bélica.

O crescimento da xenofobia no mundo ocidental, seja enquadrada em organizações institucionais, seja a partir de movimentos espontâneos, irá desenvolver uma atitude bélica cristã/ocidental e proporcionar a tal guerra? Sinceramente, penso que não. Os espontâneos e os clandestinos, serão sempre e apenas isso, espontâneos e clandestinos, e, por mais execráveis que sejam os movimentos organizados públicos com discursos xenófobos e racistas, não os estou a ver a financiarem a compra de armas e a criarem essa dinâmica bélica em escala que se veja.

Significa isto que não há perigo de escalada e que podemos deixar essa gente à vontade, a odiar e a criar ódios, mesmo que mais do que um processo de endoutrinamento social esteja simplesmente em causa o acesso ao poder? Obviamente que não. Nem todos os crimes são de sangue. No entanto, ingénuo ou otimista, acredito que há partes da história que não se repetem e que a sociedade atual ocidental tem indelével nos seus valores que o sangue não faz parte da linguagem nem do caminho. Não acredito numa guerra de sangue, mas há outras batalhas a travar e muito particularmente para garantir o caráter indelével destes nossos valores.

06 março 2019

À moda do Porto


No último verão passei pela Lello pela primeira vez depois de ela estar no roteiro turístico, com entrada paga e tudo. O facto de fazer parte dos locais obrigatórios a visitar na baixa da Invicta, levanta algumas reflexões.

É uma evidencia de que a cidade não tem assim tantos pontos de chamada atração turística, como talvez seria de esperar numa cidade centenária e muito fortemente identificada com a personalidade do país (desculpem lá as outras). Citando Alexandre Herculano:

“Rudeza e virtude são muitas vezes companheiras; e entre nós, degenerados netos do velho Portugal, talvez seja elle [o Porto] quem guarde ainda maior porção da desbaratada herança do antigo caracter português no que tinha de bom, e no que tinha de máu, que não passava de algumas demasias de orgulho.”

“Um carácter de honra granítica, uma tonalidade sóbria e altiva de quem emergiu na afirmação do poder à custa do trabalho desenvolto, um tratamento (...) com sabor a maresia, uma alma patente, bom coração, generoso, leal”


Porque uma simples livraria se tornou numa etapa indispensável dos locais a visitar na cidade? Não é mau ser uma livraria e não será assim tão simples, mas… Talvez por o carater do Porto não residir em palácios, que quase não existem, nem se espalhar por salas de visitas.

Não faz mal os turistas visitarem a Lello, mas não procurem a cidade por aí. A sua assinatura está por outros lados, não necessariamente em locais onde se entra por uma porta.