24 dezembro 2021

Natal Torga


Apesar de poder não o parecer à primeira vista, eu acho que Natal rima muito com Torga:

Natal.

E, só pelo facto de o ser, o mundo parece outro. Auroreal e mágico. O homem necessita cada vez mais destas datas sagradas. Para reencontrar a santidade da vida, deixar vir à tona impulsos religiosos profundos, comer e beber ritualmente, dar e receber presentes, sentir que tem família e amigos, e se ver transfigurado nas ruas por onde habitualmente caminha rasteiro. São dias em que estamos em graça, contentes de corpo e lavados de alma, ricos de todos os dons que podem advir de uma comunhão íntima e simultânea com as forças benéficas da terra e do céu. Dons capazes de fazer nascer num estábulo, miraculosamente, sem pai carnal, um Deus de amor e perdão, contra os mais pertinentes argumentos da razão.

Miguel Torga, in Diário (1985)

Natividade 

Nascer e renascer...
Ser homem quantas vezes for preciso.
E em todas colher,
No paraíso,
A maça proibida.
E comê-la a saber
Que o castigo é perder
A inocência da vida.
Nascer e renascer...
Renovar sem descanso a condição.
Mas sem deixar de ser
O mesmo Adão
Impenitentemente natural,
Possuído da íntima certeza
De que não há pecado original
Que não seja o sinal doutra pureza.

Miguel Torga in Diário XIII




 

23 dezembro 2021

Uma prenda de Natal

 

Anteontem todos os portugueses de Norte a Sul, desde os de berço aos mais séniores, com rendimentos de milhões ou pensão mínima, foram todos chamados a dar uma prenda de Natal de cerca de 310 euros a uma empresa estatizada chamada TAP.

De todos os argumentos apresentados sobre a importância estratégica da empresa para o país não há um único que os fatos e os números não desmontem. Será importante para quem quer voar de Lisboa em voos diretos e não se importa de pagar algo mais. Face aos 10,3 milhões de que contribuem, são muito poucos. 

Há empregos em causa, sim, mas mal estaríamos se fossemos estatizar e financiar com dinheiros públicos todas as empresas e setores em dificuldades.

Acrescente-se que os prejuízos da TAP não nascerem com o Covid. A empresa tem uma relação crónica com os apertos financeiros e só mesmo uma enorme fé no Pai Natal pode fazer alguns acreditar que este “investimento” terá retorno e que desta vez é que vai ser.

Dispensava-se esta prenda forçada, sobretudo pensando em tudo o que se poderia fazer em alternativa com estes 3,2 mil milhões de euros.

17 dezembro 2021

Cores de fogo

Ali, pela estrada entre Barcelos e o Prado, fazem-se alguns milagres com a terra e o fogo. De várias formas, cores e temáticas.

Dentro dos vários artistas oleiros que por aqueles lados abundam, apetece-me realçar Carlos Dias. Este não pinta, ou quase não pinta. As cores são dadas pelas diferentes terras cozidas a uma temperatura mais alta do que a do barro tradicional. Associado ao talento indiscutível das suas mãos, o resultado é surpreendente e dá vontade de trazer para casa tudo.  A sua coleção de mochos já vale a visita.

Há uns tempos tive o prazer de descobrir uma nova criação, a das mulheres minhotas, que vão à feira, que trabalham, que transportam o mais variado tipo de produtos da terra…. Terá sido a primeira compra de figuras dessa coleção. E certamente a primeira de muitas.




16 dezembro 2021

Ministros ao largo


Não sei se Manuel Pinho cometeu crimes ou não, não sei se a sua detenção é abusiva ou justificada. Nesta dimensão, e para essas respostas, não sei se a justiça está a ser justa ou se chegará a sê-lo, se por excesso ou por defeito.

Agora, há uma coisa que para mim é indiscutível e independente de acórdãos e recursos. Mesmo sem eventual crime existente ou provado, é inaceitável que um responsável pela coisa pública, especialmente ao nível de ministro, possua bens “ao largo”, em offshores. Com que fim, qual a necessidade?

A possível inocência penal de Manuel Pinho e atual presunção de inocência não branqueiam algo que é inadmissível num Estado que queremos sério e dirigido por gente insuspeita. O processo nos tribunais é um assunto em curso; a condenação clara e inequívoca da conduta política é uma exigência, indiscutível para este caso e outros análogos.

10 dezembro 2021

O gato


Chega sempre muito calmamente, como quem não quer a coisa, sendo óbvio que alguma coisa quer. Instala-se sem um ruído, apenas lhe sai por vezes uma respiração ruidosa dos anos que lhe pesam. E fica à espera, de uns restos que haja, ou que se arranjem.

Havendo ou arranjando-se, lá come tranquilamente no seu canto, sem nada nos dizer. Passado o tempo de efetivamente comer ou apenas esperar em vão, reparte tranquilamente, sem um som, sem um movimento mais brusco do que outro. Dignamente vai à sua vida até regressar na próxima refeição ou na próxima manhã, em busca de novas.

E regressará e esperará, às vezes exposto, outras vezes escondido. Ao detetar algo a cair na tijela, aproxima-se desconfiado, com os olhos controlando quem a enche e o nariz sondando o que lá estará. Cumprida a distância de segurança, avançará então resolutamente para trinchar e trincar o que se arranjou.

E repartirá e regressará, sem nada nos dizer. É um gato!

07 dezembro 2021

A liderança e a covardia

Pode o cidadão Eduardo Cabrita ser criminalmente inocente no famoso caso do atropelamento mortal do trabalhador na A6. Mas a um líder, e um ministro deve ser um líder exemplar, exige-se muito mais do que o básico cumprimento da lei. Entre outras coisas exige-se integridade e coragem. Obviamente que um simples passageiro de um táxi não é responsável por um atropelamento que o condutor provoque; agora se este for sistematicamente a infringir o código da estrada, já qualquer cidadão que o aperceba, mesmo sem ser o ministro que tutela a segurança rodoviária, tem obrigação de reagir.

Sabendo que é prática corrente as comitivas ministeriais viajarem a velocidades largamente acima dos limites legais, custa a crer que o mesmo não seja feito a solicitação ou, pelo menos, concordância tácita dos senhores ministros. Se for assim é uma enorme covardia Eduardo Cabrita resguardar-se no “não tenho nada a ver com isso”. A outra hipótese de serem os motoristas que por sua livre e espontânea vontade decidem conduzir à velocidade que lhes dá na gana e os senhores ministros não se apercebem/não reagem, há aqui gente a dormir na forma e dormir tanto e tantas vezes não é credível.

Obviamente que com lideranças a darem estes exemplos a viagem do país não segue por bons caminhos.

PS: Demorarmos quase 6 meses para conhecer a velocidade do veículo; quantos tempo mais será necessário para saber quantas pessoas iam no veículo? Vergonhoso e indigno.


29 novembro 2021

A Grande Guerra


Por um destes dias de novembro celebrou-se mais um aniversário do armistício da Grande Guerra de 1914-18. Para muitos tem como particularidade ter sido uma enorme barbaridade começada por um simples episódio nos Balcãs, em Sarajevo, o assassinato do arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do Império Austro-Húngaro, e a guerra das trincheiras, da lama e dos gases.

Não tem/teve a projeção hollywoodesca da seguinte, com a barbárie do monstro nazi, do holocausto, nem dos bombardeamentos massivos de alvos civis, mas a I Guerra Mundial tem algo que arrepia.

O assassinato de Francisco Fernando acendeu o rastilho do barril de pólvora e que, se não fosse por aí, certamente por outro lado teria sido ateado, mas é arrepiante a desumanização do ser humano, a banalidade das baixas, que os seus incompetentes condutores demonstraram. Verdun, Somme, Ypres e outros são apenas nomes de locais em que uma tentativa de avançar algumas centenas de metros, significava milhares de mortos, por vezes num único dia e tantas vezes para nada.

Certo que a seguinte também teve movimentos desesperados muito pesados, com muitas baixas, mas penso que com bastante menos barbaridade em causa própria. A facilidade com que os estrategas da Grande Guerra repetiam sempre as mesmas manobras infrutíferas de tentar furar a linha da frente, tantas vezes com milhares de baixas diárias do próprio lado é arrepiante. Aliás o próprio conceito de “baixa” tem algo de curioso. É um número que deixou de estar disponível. Se morto, ferido por uns tempos ou estropiado para sempre, é irrelevante e equivalente, do ponto de vista da “estratégia”.

Os tanques e os aviões mudaram muito e mais do que isso mudou o mundo. Acho que hoje, pelo menos na Europa, não se aceitariam 4 anos deste tipo de ofensivas e chacinas. Evoluímos… ainda bem!

20 outubro 2021

Prioridades e critérios no SNS


Os hospitais públicos do SNS têm previsto um enquadramento e uma classificação em função de vários critérios como os serviços médico-cirúrgicos disponibilizados e, particularmente, a população que servem. O CHVNGE - Centro Hospitalar Vila Nova Gaia Espinho serve uma população direta de 350.000, indireta de 700.000 e em áreas específicas de 1,2 milhões habitantes, cumprindo todos os critérios do nível III há 20 anos.

A consequência da reclassificação é naturalmente dotar a unidade de meios materiais e humanos suficientes para atender às necessidades. Porque não foi ainda reclassificado não se sabe.

O mais curioso é que após uma visita ao CHVNGE do primeiro-ministro, ministra da Saúde e presidente da Câmara de Gaia á Instituição em junho deste ano, estes terão prometido a respetiva reclassificação para breve. A mesma acabou por ser concretizada a 1 julho, mas não integralmente. Abrangeu apenas os vencimentos dos gestores, que passaram a ser remunerados em função da importância efetiva do hospital.

Quanto aos 1,2 milhões de cidadãos que necessitem de acudir ao CHVNGE, podem ter o consolo de saber que a gestão do mesmo é reconhecida de topo. Quantos aos meios necessários, paciência…

21 setembro 2021

Sobre Homens e Humanidade


É relativamente fácil elogiar os mortos. São previsíveis e não há ricochete possível. Sobre os elogios póstumos a Jorge Sampaio, julgo, no entanto, que muitos não teriam tido dificuldade em o ter dito em vida do mesmo, sem receio de surpresas ou de golpes baixos. O Presidente da República, dentro dos seus defeitos e qualidades, incluía elevação e respeito por todos.

Jorge Sampaio não teria sido provavelmente um bom Primeiro-Ministro. Àquela do “Há vida para além do déficit” faltava “Sim, há, e chama-se falência e troika”. Como qualquer humilde contabilista doméstico sabe, gastar mais do que se ganha, acaba mal.

Apesar disso, há um nível de respeito por todos e de todos para ele, que não encontramos na geração seguinte dos, chamemos-lhe, líderes partidários, que nem dentro do mesmo partido se respeitam. Será que um ambiente de repressão, censura e de luta pela liberdade gera personalidades mais ricas e humanas do que a luta pela liderança na juventude partidária? Pois… E a solução passará por um novo período de ausência de liberdade?

Apesar de todos os sinais em contrário e de toda a pobreza intelectual e humana, carência de dignidade e princípios que vemos nas estrelas (?) ascendentes que nos anunciam, quero acreditar que não. Quero acreditar que o respeito por todas as opiniões e posições é e deverá continuar a ser um alicerce e pilar deste edifício em que vivemos. Falta sempre juntar a capacidade de gerar riqueza e de sustentabilidade económica, social e ambiental. Ter que passar por novo período de trevas para tal (re)afirmação seria triste.

20 agosto 2021

Tinha que ser assim?


 A imagem das centenas de afegãos partindo no avião militar americano vai certamente ficar para a história. Este retrato tem dois tempos. Um é o da transição catastrófica que obviamente não tinha que ser assim e que demonstrou uma enorme impreparação e capacidade de previsão por parte de quem por lá andava há 20 anos, aparentemente com visão exclusiva de drone.

O outro tempo é o que agora começa e todo o sofrimento e humilhação que sofrerão daqui para a frente afegãos e afegãs, elas muito mais do que eles. Para os meninos e meninas excitados com as desventuras do imperialismo ianque, consultem a história e respeitem quem sofre.

Para a história ficará também o discurso de J. Biden de que aquela guerra não era a deles, que só lá tinham ido neutralizar uma base terrorista e, quanto a isso, missão cumprida. Todas as promessas e expetativas legitimas criadas aos afegãos e afegãs… “não é o nosso problema”. De um cinismo revoltante. Pode ser a mais pura verdade, mas a imagem dos EUA como, apesar de tudo, patrocinadores e garantes de um mundo livre e justo morreu e não foi Trump que o matou, quem diria…

Tinha que ser assim? 20 anos de banho de mundo livre, ao menos muito melhor do que o anterior, não podiam ter deixado uma marca um pouco mais perene?

O que faltou/falta para consolidar o respeito básico pelos direitos humanos neste país e noutros? Quando se vê a enorme quantidade de gente que desses países quer migrar para o “Ocidente”, o que falta para nas suas pátrias se conseguir implementar e consolidar um regime “Ocidental”. Certamente algo mais do USDs (e rublos) e drones (e tanques). A questão é toda … evolução cultural, sem preconceitos, remorsos, ignorância nem arrogância. Demora tempo, sim. Mais de 20 anos, não sei. Desistir é que não serve.



11 agosto 2021

Fim (do desenvolvimento?) dos motores de combustão


Há cerca de 4 anos, Carlos Tavares, na altura com as rédeas da PSA, Opel e Vauxhall, surpreendia meio mundo no salão de Frankfurt ao afirmar que evoluir para exclusivamente veículos elétricos, era um sinal de que “o mundo está louco” e que os políticos estavam a tomar decisões sem pensar em todas as consequências e sem equacionar toda a preparação que tal mudança exige.

Recentemente, agora acrescentadas a Fiat e a Chrysler na Stellantis (estes novis grupis têm sempre nomis assim sonantis), veio dizer que o grupo vai mergulhar a fundo nos eletrões, a DS sem motores de combustão em 2024, a Alfa em 2027, a Opel em 2028 e a Fiat a 2030. É certo que a “Europa” decretou o fim dos motores de combustão para 2035 e nestas coisas é inglório tentar ser salmão e nadar contra a corrente.

É também certo que à velocidade a que estas tecnologias evoluem, muito pode acontecer até deixarmos de ver pistões nestas marcas, mas isto parece-me um pouco pôr o carro à frente dos bois. Se na bela Europa ainda não se consegue garantir toda a mobilidade de forma elétrica, que dizer do resto do mundo onde muitas vezes o fornecimento de energia elétrica para necessidades básicas não está assegurado, nem ninguém pode prever se/quando ficará resolvido.

E é ainda certo que, para os pequenos citadinos, o elétrico carregado à noite faz todo o sentido. Mas, por curiosidade, ao consultar a página da Fiat, um grande especialista de pequenos carros dentro do grupo Stellantis, encontrei um Fiat Panda (até com um toquezinho de hibridação), desde 11 470 Eur e o mais barato do outro lado que vi foi o novo 500 Berlina Action… desde 23 800 Eur. Uma certa diferença. Quando não houver mais pistões, o Panda elétrico ou o seu sucessor vai andar porque preço? Em termos de custo total de utilização, pode-se acrescentar que o Panda atual tem um tempo de vida, custo de manutenção e desvalorização bem balizados, enquanto do outro lado, a bateria… traz algumas incógnitas…

Daqui para a frente só dá para especular, mas palpita-me que poderão eventualmente aliviar os apertos progressivos às emissões dos motores de combustão. - Se são para acabar, não nos peçam para continuar a investir em novas gerações de motores Euro X+1 !

E ainda, a Alemanha negocia com a Rússia a construção de uma novíssima conduta de gaz natural… será para “descarbonizar” a mobilidade… ou isso!

E ainda, como reagirá o nosso orçamento de Estado ao fim dos impostos sobre combustíveis? Se já na aflição atual eles não largam nem um cêntimo e preferem legislar sobre as margens … dos outros. Logo se verá, não é?

07 agosto 2021

A maldição da bazuca?


Fala-se em “maldição do petróleo” para descrever situações concretas de países que, supostamente abençoados por largos e fastos recursos naturais, acabam por comprometer o seu desenvolvimento a prazo e a criação de riqueza e conhecimento de forma sustentada, soçobrando no fácil vem/fácil vai (a ausência de dificuldades não aguça o engenho) e com todo um rol de más práticas e de irresponsabilidade, eventualmente criminais, na gestão da riqueza que chega sem esforço.

Felizmente Portugal não tem recursos naturais próprios, mas talvez desde a pimenta da India e do ouro do Brasil que criamos um pouco o hábito de gastar sem ter que nos esforçar muito em criar. A questão neste momento não é, no entanto, atirar as culpas a D. João II. A questão é que a famosa bazuca europeia, que se já pode começar a ir buscar ao banco, mesmo sem kalachnikov, é mais um dinheiro fácil que corre sérios riscos de partir de forma fácil.

Independentemente de alguma utilização racional, séria e geradora de riqueza sustentável, quase apetece dizer… deixemo-nos de viver de donativos e passemos a fazer pela vida com as nossas próprias mãos e cabeça. O histórico da procurada e falhada convergência europeia sugere que a receita não funcionou como se esperava. Fazer o mesmo, esperando resultado diferente, não é inteligente.

06 agosto 2021

Talibans e o resto


 Em 2001, os EUA entraram no Afeganistão para controlar o país que albergava os terroristas do 11/9. Hoje, 20 anos depois, deitam a toalha ao chão e retiram. Os ditos talibans, que já antes tinham dado água pelas longas barbas à URSS, avançam rapidamente, retomando o controlo de grandes partes do país, deixando em maus lençóis todos os que de uma forma ou de outra colaboram com os EUA e acreditaram numa sociedade mais aberta. Muito especial e dramaticamente as mulheres.

Por muito profundas que sejam as raízes tribais desse movimento, a sua eficácia e subsistência não depende apenas dos calhaus da montanha. Ao que parece é/foi o Paquistão, ali ao lado, que de uma forma mais ou menos assumida lhes serviu de apoio. Um bocadinho acima do mesmo lado, está a zona problemática da China, dos uigures, onde existem movimentos terroristas, ETIM e outros, que parecem gozar de algumas facilidades no Paquistão e nas zonas controladas pelos Talibans.

A China tem interesse no Paquistão, o corredor até ao Índico da sua BRI atravessa todo o país. Os terroristas uigures atacam aqui interesses chineses e estes puxam as orelhas aos paquistaneses.

Um destes dias uma comitiva taliban foi recebida oficialmente em Tianjin (foto) e um dos objetivos, teoricamente alcançado, foi de obter um compromisso da parte dos novos futuros líderes afegãos em como deixariam de apoiar os separatistas uigures. Quem conhece o terreno, o histórico e as culturas tem dúvidas de que a prática corresponda.

Entretanto, há gente no Afeganistão a voltar às trevas.

Sem querer particularizar excessivamente nos atores concretos desta realpolitik, é uma vergonha para a humanidade assistirmos a estes retrocessos brutais nos direitos humanos, caucionados por países e regimes representados nas instituições internacionais e supostamente comprometidos com os princípios básicos de respeito por esses direitos humanos. Seria mais útil e mais interessante que a opinião pública se interessasse por isto e deixasse o Vasco da Gama em paz.

17 julho 2021

Mau ambiente


Escassas semanas após o atropelamento mortal de um trabalhador numa autoestrada pela viatura de um ministro, em circunstâncias ainda objeto de inquérito (que demora a ver se esquece?), mas onde a velocidade parece ter sido tudo menos razoável…

Escassas semanas depois, outro ministro é apanhado a circular alegremente a 160 km/h em estrada nacional e a 200 km/h em autoestrada.

Inquirido sobre o fato, o ministro afirma não ter “qualquer memória de os factos relatados terem sucedido”. É preciso ter muita insensibilidade/amnésia para não se aperceber/recordar de circular a 160 km/h numa estrada nacional. E, se isso aconteceu, não lhe ocorreu ir inquirir o motorista? Não lhe ocorreu esclarecer se havia motivos válidos para a pressa? Não lhe ocorreu que em termos de impacto ambiental, o seu pelouro, não é bom exemplo?  Apenas lhe ocorreu dizer que vai “estar mais atento”. Nós continuamos calmos e serenos e eles continuam a queixarem-se do crescimento dos populismos.

14 julho 2021

A Cresap, escolher ou não escolher


No que seria digno da mais bananeira das repúblicas, leio que numa enorme maioria dos processos de seleção para cargos superiores na função pública é escolhido o previamente escolhido, que ocupava já o lugar provisoriamente, em regime de substituição, sem concurso, sendo que a experiência acumulada nesse período é determinante para ficar em primeiro lugar na avaliação. A sério, não há um mínimo de vergonha nem de decência?

Tenho uma sugestão. Porque não impedir a candidatura a quem ocupou o cargo interinamente, por nomeação, sem escrutínio nem avaliação aberta? Parece-me uma eficaz forma de cortar o mal pela raiz. Haja vontade! Há vontade? O crescimento dos populismos é um problema?

13 julho 2021

Florentino Ariza


Quis o azar ou a sorte que um destes dias me tenha passado à frente dos olhos uma versão cinematográfica do “Amor nos tempos de cólera” do imortal Garcia Marquez, um dos destaques da minha biblioteca, um daqueles autores que cabe nos dedos de uma mão do topo das minhas preferências.

O filme, entendo que bem feito e agradável de ver, não transmite a intensidade, a exuberância e o génio narrativo de Gabo, mas isso seria provavelmente missão impossível. O enredo está lá e no final reencontramos algo de único e de todos na figura de Florentino Ariza, que espera determinado mais de 50 anos para atingir o seu sonho, neste caso o amor de Fermina.

Acho que um bom livro se pode ler de trás para a frente e também, por vezes, para o lado. E esta determinação em atingir algo, custe o que custar, demore o que tive que demorar é um desígnio que pode não ser exclusivo do amor. Recordo-me, por exemplo, do Quixotesco “sonhar o sonho impossível” de Jacques Brel, não desconsiderando obviamente o original cavaleiro da triste figura.

Será patético e absurdo passar a vida na esperança de um improvável que apenas parece viável ao próprio? Será um desperdício? Talvez sim, talvez não. A ânsia e a busca da beleza, da verdade, da perfeição são uma excelente melodia para o despertador matinal.

Se para a persistência resultar e se atingir o supremo desígnio, é necessário declarar uma situação de cólera e colocar um pequeno mundo em quarentena é outra questão. Há doenças e doenças.

11 julho 2021

Que grande surpresa, quem diria!?


O futebol profissional, tendo como base uma modalidade desportiva, é hoje um espetáculo que faz mover muitos milhões de fundos de forma pouco transparente, para lá do deprimente nível dos debates que proporciona. Para quem estiver minimamente atento, não faltam indícios de falta de higiene no meio, em diversas latitudes e várias cores de camisola.

Dificilmente os problemas de Luis Filipe Vieira com a justiça podem ser uma grande surpresa, atendendo ao meio em geral e ao personagem em particular. Até um marciano com escassas semanas de permanência no planeta não se espantaria. Infelizmente a tentação de aparecer na tribuna deste circo, qual imperador romano, parece levar o discernimento de alguns políticos abaixo do de um marciano recém-chegado.

Algo de novo neste processo é confirmar-se que o Novo Banco não foi assim tão novo de espírito, herdando muitos defeitos do seu progenitor, para mal da nossa saúde económica.

Para quem sabe quando a vida custa, estes milhões tresmalhados escandalizam e revoltam. Não se sai daqui com um “bola para a frente”, será necessário antes um “bola fora”. Fiscalizem eficazmente as origens e os circuitos desses milhões e depois talvez volte a haver desporto.

08 julho 2021

Essa coisa da transição energética e da energia limpa


A chamada transição energética está eleita como um grande desígnio estratégico para a sustentabilidade do planeta, entrou em inúmeras agendas e ganhou foro de título de ministério. De forma indiscutível, do lado errado da imagem está a produção de energia elétrica a partir de combustíveis fosseis, geradores de CO2, não renováveis e do lado correto estão as energias renováveis: hídricas, eólicas, solares e algo mais…

Na transposição deste contexto para Portugal, produzimos cerca de 2/3 do lado bom e 1/3 do lado mau. Será necessário reduzir de 1/3 o consumo total ou aumentar em 50% o lado bom.

Para a Europa, há uma diferença importante. Em grandes números, o lado bom é 1/3; o lado mau outro 1/3 e o 1/3 que falta … é a energia nuclear. Sendo certo que o nuclear não produz CO2, não é certamente renovável e é preciso bastante boa vontade para a considerar uma energia limpa. Haverá um cenário em que o nuclear é bom, equivalente ao português 2/3 bom – 1/3 mau e outro em que o nuclear é mau e deve sair. Neste caso a Europa está a muitas milhas (KWh) de fazer uma transição energética para energias limpas, mesmo limpas.

Curiosamente não vejo claramente assumido qual o cenário oficial em vigor, mas se pensarmos que, por exemplo, em França, o nuclear representa 70% da produção de eletricidade, está bom de ver de que lado ele vai cair…

Entretanto, conta-se ao pessoal que para salvar os ursos polares, basta comprar um SUV de potencia, peso e consumo acima do “necessário para as necessidades”, independentemente da fonte de energia que o faz mover e da forma como é utilizado. Obviamente que a sustentabilidade do planeta passa por outra atitude. 

06 julho 2021

Entre peão, cavalo e rei


Os problemas que Joe Berardo está a encontrar com a justiça, fazem suspirar um “mais vale tarde do que nunca”. Poucos terão simpatia pelo senhor, especialmente depois da arrogância que ele demonstrou.

Ele está a ser questionado, se bem entendo, pelas formas “ardilosas” com que se esquivou a responder pelos empréstimos recebidos. Aqui estará a questão penal. No entanto, esta história, desde a sua génese, é uma crónica de uns calotes anunciados, dentro de um jogo de xadrez onde ele não foi simples peão, também não foi o rei, eventualmente cavalo.

Não vale a pena reenumerar a falta de razoabilidade económica e o risco inaceitável destes empréstimos da CGD, feitos a ele e a outros cavalos, para controlo do BCP. Um empréstimo normal assenta em garantias sólidas e tem subjacente uma rentabilidade que permita o reembolso com juros. É absurdo imaginar as ações do BCP na altura a cumprirem as duas condições.

O que é certo é que este jogo de xadrez custou milhares de milhões de euros ao contribuinte, estupidamente assim queimados, em vez de terem contribuído para financiar criação de riqueza.

Este jogo de xadrez teve um rei, José Sócrates, que não resistiu politicamente ao descalabro; penalmente ainda estamos para ver. De resto, os seus bispos e torres ainda por cá andam em funções e sobre estes desmandos e desastres nada fizeram, nada viram.

Se hoje já podemos ir ao banco, seria bom que o resultado fosse diferente.

04 julho 2021

Diferenças culturais


Em março de 2017 esta imagem corria mundo, onde um deputado inglês tenta com as suas próprias mãos salvar a vida de um polícia apunhalado num atentado, num cenário não isento de perigo. Toda a gente achou muito bem.

Em junho de 2021, noutro país, noutra cultura, um ministro está envolvido num acidente mortal, com eventual responsabilidade indireta mesma, caso a velocidade tenha sido determinante e tenha sido ele a solicitá-la. Esconde-se, pede ao staff para enviar as suas condolências à família e atira a culpa para a vítima. Duas semanas depois recusa-se a precisar a velocidade a que circulava. Toda a gente achou mal?... Alto! Antes demais depende da coincidência da cor política do senhor com a de quem avalia. 

Diferenças culturais, que naturalmente se refletem noutras diferenças de desenvolvimento

02 julho 2021

Uma certa (falta de) cultura


A forma como quem nos governa está a tratar a questão do atropelamento mortal de um trabalhador na A6 pelo veículo onde seguia o ministro da Administração Interna é sintomático da falta de cultura de responsabilização que por aqui grassa.

Trata-se de uma viatura do Estado e em deslocação oficial. O mais elementar respeito pelos cidadãos em geral e pela vítima em particular obrigaria a uma imediata e completa clarificação. A que velocidade circulava, porquê eventualmente acima dos limites legais, havia ou não sinalização. Nunca deveríamos estar ainda hoje a especular sobre o que se passou, a partir de uma primeira reação telegráfica e desresponsabilizadora de que não havia sinalização de trabalhos e a culpa seria do trabalhador que se colocou à frente do carro.

Não é coisa rara ver passar uns veículos importantes, de pirilampo excitado. Os senhores VIP não conseguem organizar as suas agendas e deslocarem-se dentro dos limites legais e de segurança, como um normal cidadão é obrigado a fazer?  Precisam de circular como se fossem socorrer uma vítima urgente … ou provocá-la?

E enquanto acharmos que a avaliação de uma situação destas entra dentro de uma lógica tribal, dependendo da cor do ministro e não de Responsabilidade Cívica e Política… continuaremos subdesenvolvidos e eles continuarão a rir, independentemente da cor em causa.

24 junho 2021

O camarada Vasco


Com o centenário do nascimento de Vasco Gonçalves, vejo algo surpreso o branquear da cor do Primeiro-Ministro do Verão quente, colocando em evidência os avanços sociais ocorridos nesse período, tais como o estabelecimento do salário mínimo, dos subsídios de férias e desemprego e da licença de parto.

Sendo isso verdade, pode-se questionar se ocorreu graças a ele em particular ou se teria acontecido dentro da dinâmica da época, independentemente do PM em funções. Pode-se também olhar para outras coisas que se passaram nessa altura, como as suas posições quanto à não liberdade sindical a as pressões sobre a comunicação social desalinhada.

Um bom exemplo, foi o jornal República fundado em 1911 por um distinto republicano, António José de Almeida. Foi oposição e sobreviveu ao Estado Novo, mas soçobrou naquele Verão quente de 1975. Não vou desenvolver aqui os detalhes do que se passou, eles estão facilmente acessíveis a quem quiser saber, apenas o significado.

O PCP, através dos seus ativistas, com a cobertura do governo Gonçalvista, calou um órgão de comunicação social incómodo. Não foi um ato isolado, a Renascença sofreu as mesmas pressões, o DN teve uma série de jornalistas saneados pelo futuro Nobel e muitos outros periódicos viram areia cair nas suas engrenagens.

O caso República levou à saída do PS do governo e teve repercussões internacionais, forçando mesmo outros PCs europeus a demarcarem-se do seu homólogo português. Tudo isto no tempo do camarada Vasco, que não era democrata, nem defendia os valores de Abril partilhados pela larga maioria do povo português.

10 junho 2021

Verdes são os campos


Verdes são os campos,
De cor de limão:
Assim são os olhos
Do meu coração.

Campo, que te estendes
Com verdura bela;
Ovelhas, que nela
Vosso pasto tendes,

De ervas vos mantendes
Que traz o Verão,
E eu das lembranças
Do meu coração.

Gado que pasceis
Com contentamento,
Vosso mantimento
Não no entendereis,

Isso que comeis
Não são ervas, não:
São graças dos olhos
Do meu coração.

 

Para sempre grande Luiz Vaz, de quem pouco se sabe do acessório, mas que excelsas no fundamental.

09 junho 2021

Bolhas e pegadas


Ainda não sabemos ao certo todas as consequências da famosa final da “Champions” no Porto em termos diretos Covid e de imagem do país. Obviamente que se o objetivo era mesmo que os adeptos viessem em bolha, alguma proatividade teria sido necessária e não simplesmente esperar que eles se encapsulassem todos voluntariamente.

Para lá desta questão do âmbito da má gestão sanitária, vamos supor que era para ser e teria sido mesmo assim. 14000 espetadores, principalmente adeptos ingleses, em bolha, vindos para ver o jogo e a regressarem a casa no próprio dia. Nestes tempos em que, por razão ou religião, o ambiente é um tema quente, se mede a pegada de carbono de tudo e mais alguma coisa, quando até um tribunal nos Países Baixos condena a Shell a reduzir as suas emissões, qual o sentido de termos uns 100 aviões a virem da Inglaterra a Portugal para os passageiros simplesmente assistirem a uma partida de futebol e nada mais?

Obviamente que é um disparate completo. Quantos daqueles adeptos até defenderão a utilização de veículos elétricos, supostamente para proteção do ambiente, independentemente da origem da energia que lhes carrega as baterias? Um tema desta relevância deveria ser mais bom-senso, razão e coerência e menos radicalismo, religião e oportunismo.

Adicional em 13/06/2021 com a versão impressa (parcial).



06 junho 2021

Essa coisa da guerra


Num 6 de junho de há 77 anos atrás, as forças aliadas desembarcavam na Normandia, um pouco mais de 4 anos após a evacuação dramática de Dunquerque e 2 anos após a tentativa falhada de Dieppe. Desta vez foi a boa e apesar do muito sangue e tripas que se seguiram, marcou irreversivelmente a evolução da guerra na Europa Ocidental.

Vimos este dia mais longo em inúmeros olhares Hollywoodescos. Ainda em 1988 alguém como Spielberg narrava a odisseia de salvar o soldado Ryan, último de uma fraternidade ainda em vida. Quase 80 anos é, felizmente, muito tempo e cada vez mais a visão e a memória que fica é a dos dramas e das ações heroicas… encenadas.

Passar nos locais, em corpo ou em espírito, é um exercício necessário. Se pensarmos que esta chacina, com a particularidade de ter sido especialmente violenta contra as populações civis, muito pela novidade do papel da aviação, ocorreu 20 apenas após a chacina anterior, 80 anos já é bastante bom tempo. O suficiente para nos convencermos que não será possível voltarmos a viver tempos assim (a Ucrânia não fica assim tão longe), pelo menos de forma tão generalizada.

Os cemitérios militares são um local onde devemos passar e parar. Não são coisa de filmes. Onde devemos homenagear a memória de vítimas, algumas que nem se sabe quem foram, mas que foram.

Imagem do cemitério militar americano de Omaha Beach.

03 junho 2021

Do paternalismo ao autoritarismo


A definição de Direitos Humanos abarca questões fundamentais pouco sujeitas a revisões ou atualizações de contexto. Novos contextos podem obrigar a novas regulamentações, apenas. Daí que a recentemente publicada famosa “Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital”, me pareça logo excessiva em termos de título.

Quanto ao conteúdo há algumas curiosidades. Uma é o tom paternalista como o Estado promete tratar de tudo e proteger os cidadãos “vulneráveis”. Nesse sentido vem o famoso artigo 6 –“Direito à proteção conta a desinformação”, definindo-se esta como “toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada […] para enganar deliberadamente o público, e que seja suscetível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, […]”. Os “spins doctors” tanto do agrado dos políticos, chamados para criar e gerir narrativas simpáticas, evitando que o público se aperceba da verdadeira dimensão dos erros cometidos, estão tramados. Se isso não é uma ameaça aos processos políticos democráticos…

Há apenas duas dimensões limitadoras da liberdade de expressão e não específicas da chamada era digital. Uma é a penal, para a qual existem leis e tribunais; outra, especialmente importante para quem tem responsabilidades públicas, é a ética – é feio mentir, mesmo não sendo crime.

O Estado vigiar a desinformação e apoiar a criação de estruturas de verificação de fatos, será talvez uma forma de controlar o estrume, sendo este o resultado de um processo de decomposição e um excelente fertilizante, fazendo medrar verdades a partir de podridões.

A fronteira entre o paternalismo e o autoritarismo pode ser atravessada com muito facilidade e o nome correspondente é muito feio.

25 maio 2021

O banco, quando é mau, é para todos?


A resolução do BES em 2014 foi uma decisão brutal, sem precedentes. Para quem estava minimamente atento, parecia claro existirem por lá buracos e crateras que nunca seriam tapados no âmbito de uma atividade normal, ou seja, um calote era inevitável e alguém ficaria a arder, ou “investidores” e outros credores, ou o contribuinte. Algo inédito, também, foi a decisão de que para aquele peditório a CGD não dava e o banco acabar por cair.

O Novobanco foi criado, como o banco bom, ou seja, apenas com ativos saudáveis, supostamente tendo as crateras ficado todas no BES original. No entanto, quando vemos os milhares de milhões que para lá são chamados, parece claro que ele não era estaria assim tão bom à nascença, ou foi depois estragado. Quando ouvimos o desplante de alguns dos seus credores/caloteiros e o perfume de ligeireza, bastante malcheiroso, em torno destes milhões tresmalhados, ficamos na dúvida se a triagem entre o bom e o mau foi mesma objetiva e independente da casta dos afetados.

O banco mau nasceu mesmo igual para todos, ou a nega dada quanto à entrada do contribuinte no peditório de Ricardo Salgado e companhia, foi contornada e resolvida de outra forma, apenas para alguns? Não sei, mas parece.


30 abril 2021

País de brandos costumes

Em abril de 1995, regressava eu a Bruxelas, após passar a Páscoa em Portugal, e boa parte da viagem fi-la em conversa com um senhor sentado ao meu lado, que viajava em circunstâncias idênticas. Trabalhava numa instituição europeia, estudando e acompanhando questões de segurança. Comentava ser um tema muito interessante e que a larga maioria das pessoas não imaginava o que se passava e podia passar nesse campo. Acrescentava que, por exemplo, no verão não ia querer estar em Paris.

Em julho desse ano rebentaram as bombas no RER em Paris e fiquei abismado com a antevisão. Se soubesse o que sei hoje, sobre as disputas em curso na altura entre a França e a Argélia a propósito da extradição de refugiados do FIS, a minha surpresa teria sido menor.

O senhor chamava-se Martinho da Cruz e informaram-me depois estar destacado em Bruxelas, por proteção, já que tinha sido um dos principais magistrados do processo das FP-25 – “O homem que prendeu Otelo”.

Nunca tinha ouvido falar dele antes. Revi o seu nome no livro acima representado, que me surpreendeu (o prefácio podem dispensar). A minha memória da dimensão das ações (e crimes) das FP 25 era bastante inferior à realidade. As bombas, os assaltos e os assassinatos teriam sido umas coisas avulsas, cada uma apenas mais uma e não prenúncio de outras seguintes. Não me recordo de as ver noticiadas como um verdadeiro, sério e estruturado ataque ao estado de Direito. Eram coisas lamentáveis, que lamentavelmente não deveriam acontecer e que, enfim, acabariam em breve, mais dia menos dia.

O envolvimento de Otelo começou a ser ouvido com descrédito e seguiu-se a estupefação. A população em geral via alguma incompatibilidade entre o homem que tinha arquitetado a nossa liberdade e a liderança de um movimento criminoso, desrespeitador das liberdades fundamentais em pleno regime democrático consolidado. Será por isso que o poder político muito polemicamente os amnistiou quando havia evidencias que até um cego podia ver?

Este livro tem a virtude de documentar esta história de vários milhões roubados, de uma dúzia de inocentes assassinados e de um processo que foi politicamente encerrado, num país de brandos costumes. Um processo em que quem mais perdeu, para lá das vítimas diretas, foi quem investigou e quem confessou, colaborando com a investigação.

Na última página fica um amargo na boca. Pela forma como o assassinato do Diretor Geral das Prisões foi desconsiderado pelas altas instâncias da altura; pela facilidade, antes como hoje, com que se criam imbróglios processuais, quando fatos e provas não faltam; pelo branqueamento político covarde quando a justiça devia ser cega e o poder político corajoso e pelo olvido com que a história foi embrulhada.

Quanto às motivações para na década de 80 se desatar a matar “fascistas”, é tema para outra estória.

 

24 abril 2021

25 de Abril sempre


De há uns anos para cá, temos tido mais um “sempre” associado ao 25 de Abril. Sempre se arranja uma polémica com as comemorações e, se a deste ano é particularmente original e caricata, a IL não poder participar por respeito às indicações da DGS, o fundo é o sempre o mesmo. Há quem queira reescrever a história, apropriar-se da data e isso é triste.

Para lá das razões imediatas que colocaram os militares na rua e da diversidade de motivações e de projetos que poderia haver, o 25 de Abril foi o que foi devido a uma enorme adesão popular. E esse povo todo, que votou livremente um ano depois, não estava todo de todo alinhado com o que alguns agora chamam o (seu) espírito de abril. A larga maioria não estava alinhada com os que cercaram e tentaram condicionar a Constituinte, boicotar a democracia, e que agora se arvoram em defensores da mesma e fiéis testamentários do tal (seu) espírito de abril.

Mas o que devia estar na primeira linha nesta data, não deveriam ser quezílias. A data é grande demais para isso. O fundamental deveria ser a preservação da tal democracia e respetiva qualidade. Não faltam exemplos, todos os dias, de podridões e corrosões na mesma. Corrupção, incompetência, compadrios, arrogância. Se estes problemas não forem endereçados a sério, e não a fazer de conta como têm sido, vale de pouco fazer de conta e vir à rua com o cravo vermelho uma vez por ano.

22 abril 2021

Vacinação e opção


Penso que se fossem suspensos todos os fármacos que apresentem riscos de efeitos secundários ao nível dos das vacinas da Astrazeneca e da Janssen, as farmácias ficariam mais de metade vazias e a saúde pública iria ressentir-se fortemente.

Podemos entender que o governo não deva ter a arrogância de impor “Ou aceitas esta, apesar dos riscos, ou vais para o fim da fila”. O que é mais difícil de aceitar é que não se dê a opção a cidadãos adultos, conscientes e não vacinados de decidirem: entre correr esse risco ínfimo ou esperar vários meses pela minha vez, prefiro e aceito correr o risco.

Não faz sentido rejeitar vacinas disponíveis, até baratas (coincidência) e de logística facilitada, quando, eventualmente, há interessados nas mesmas. Não somos todos criancinhas, sob a tutela de um Governo paternalista e autoritário, que nem sequer se dá ao trabalho de ouvir os interessados.

 

18 abril 2021

Lições de boas práticas corruptivas


Aprendemos todos muito com a famosa comunicação de Ivo Rosa de 9/4. Por exemplo, os corruptos aprenderam uma forma infalível de ficarem impunes. Basta apresentarem um contrato de corrupção assinado com data 5 ou 15 anos anterior (verificar a data de aplicação da alteração com um bom advogado) à data dos pagamentos. Sim, esse documento poderá ser falso, mas quem o vai provar?

Ao mesmo tempo será também “tax free”; é só vantagens! Para lá das voltas e reviravoltas que os especialistas fiscais possam dar, acho muito curiosa a interpretação de que se não for descoberto, nada se sabe, nada a assinalar; se for descoberto (e provado…) a integralidade reverte para o Estado e não faz sentido pagar imposto por algo de que não se usufruiu. O cidadão lambda que por uns dias de atraso nas suas obrigações fiscais tem logo direito a multas e juros, deve achar muito particular esta visão de que o corrupto, sendo apanhado, devolve o produto ao Estado e fica tudo quite.

Sim, o combate à corrupção é complexo e exige meios e ferramentas que podem faltar, mas será que, especialmente na deliberação do Tribunal Constituição sobre o início da contagem do prazo de prescrição, não faltará também vontade e seriedade?

 

16 abril 2021

Mobilidade elétrica

Está feita voz corrente que o futuro dos automóveis passa pela eletricidade, com alguns construtores a anunciarem mesmo o fim dos motores de combustão. Para já, vamos pôr de lado a questão da origem dessa energia elétrica. Em Portugal, atualmente, cerca de 60% é de origem renovável e veremos até que ponto o aumento do consumo será superado pelo crescimento da produção renovável, de forma a a mobilidade elétrica ser efetiva e globalmente zero emissões (e nuclear free).

A questão aqui é do ponto de vista do utilizador “normal”, não aquele que se interessa por monstros “amigos” do ambiente com algumas centenas de cavalos. Vamos imaginar um automóvel elétrico simples com autonomia de 200 a 300 km. Carregar em casa numa tomada standard, poderão ser cerca de 6 km de autonomia por hora de carga; numa noite de 8 horas, ficará pelos 50 km… utilizando uma tomada especifica reforçada (Wall box), depende da potência contratada e do carregador no veículo. Para 7 a 8 KW, serão 20 a 30 km por hora de carga e atingirá os tais 200 km de autonomia no dia seguinte pela manhã.

Se a rotina de utilização for compatível com a carga diária noturna, perfeito. Se pontualmente ultrapassar, mas em contexto conhecido, onde se possa identificar com alguma segurança onde recarregar durante o dia, eventualmente num carregador rápido, também passa. O problema é pensar em aventuras:  “Vou passar um fim de semana ao Alentejo”; “Vou até Madrid”. Aí, será necessário planear muito bem por onde passar, onde dormir e esperar que os carregadores com que se conta estejam operacionais e disponíveis. E não se poderá mudar facilmente de ideias ou de itinerário sem reavaliar a viabilidade.

Pode o futuro mudar com a evolução das baterias. Veja-se o caso dos camiões que para longas distâncias transportariam quase tanto peso de carga útil como de baterias. Pessoalmente tenho dúvidas quanto a assistirmos a um desenvolvimento espetacular na área tecnológica, neste campo. Talvez fosse mais interessante atingir alguma estandardização e, por exemplo, trocar de bateria de vazia para carregada, como se troca uma botija de gás. Talvez mais promissor possa ser o hidrogénio, mas ainda é cedo.

Neste contexto tecnológico e com o balanço do consumo de energia elétrica/produção de renováveis longe de estar garantido, parece-me pouco fundamentada esta vaga radical de decretar a morte dos motores de combustão.


14 abril 2021

O Marquês o os ausentes


Uma das verdades proferidas por Ivo Rosa na famosa comunicação de 9/4, foi de que José Sócrates estava a ser acusado de atos, que, mesmo primeiro-ministro, não poderia ter praticado sozinho, por não estarem na sua competência direta. Ou seja, a ter ocorrido, haveria mais gente envolvida. Daí, ter inquirido os próximos do arguido e tomado boa nota das respostas negativas obtidas. Ilibar um presumível criminoso a partir do simples testemunho de potenciais cúmplices é ingenuidade ou outra coisa. Ter valorizado o testemunho de Paulo Campos e desvalorizado o de Luis Campos e Cunha é uma coisa estranha.

Pode a justiça ficar, pelo menos para já, apenas com o branqueamento de capitais, já não é mau de todo. Mas a sobrevivência do regime precisa de mais. Precisa de saber porque e para quê circularem aqueles milhões de euros a montante das entregas de Santos Silva, que tão mal cheiram, e quem direta ou indiretamente esteve envolvido nesse processo. É difícil, mas a alternativa é a podridão.

 Entende-se que os diretamente visados tudo neguem e os restantes envolvidos, por agora não incomodados, façam de mortos, à espera que passe. O que não se entende é que comuns cidadãos, coletivamente lesados, rejubilem por não se conseguir averiguar o que se passou com o seu/nosso dinheiro.

13 abril 2021

O perigo e a perceção

Quando há cerca de 15 anos me instalei na Argélia, ainda por lá corria alguma atividade terrorista, embora em escala muito inferior à da década anterior. Ao tentar avaliar objetivamente o perigo em causa, podiam-se fazer as contas seguintes. Os terroristas matavam 2 a 3 pessoas por mês, principalmente militares ou policias e em zonas remotas; na estrada morriam em média 10 a 12  por dia e por todo o lado. Um risco realmente muito mais elevado.

Na mesma altura em Portugal, em 2006, morreram 850 pessoas em acidentes de viação (Pordata) durante o ano. Ou seja, o número de mortos na estrada em Portugal era mais ou menos equivalente ao das vítimas de terrorismo na Argélia, sendo que lá até era mais fácil evitar os locais de risco. A grande diferença, não quantitativa, estava na natureza do risco. O da estrada era-nos conhecido e familiar; o outro era novo e isso desestabiliza.

Isto vem a propósito do folhetim com os riscos da vacina da AstraZeneca. Talvez um dia venhamos a saber até que ponto o Brexit e a empresa ser um novo jogador no mercado das vacinas contou para tanto ruído. A questão é que ninguém olha (ou pouco) para as contraindicações e possíveis efeitos secundários de uma medicação, quando a tem que tomar. Entende-se frequentemente que há um risco, mas pode/deve ser corrido.

O Covid-19 assusta, é novidade e tudo o que a ele diz respeito desestabiliza-nos. Mas, das duas uma, ou corremos o risco da doença ou o da vacina. Não é possível esperar risco nulo e a razoabilidade é validada por procedimentos que não foram feitos ontem e por entidades supostamente informadas e competentes. As decisões políticas de põe e tira, tira e põe, quando objetivamente não há novos elementos relevantes, são uma fonte de desestabilização muito dispensável.


10 abril 2021

Marquês a quente…

 

Ivo Rosa entende que C. Santos Silva corrompeu J. Sócrates com 1,7 milhões de Euros, mas o processo não avança apenas porque prescreveu. Apesar disto, este declara-se mais puro do que a Branca de Neve.

Supostas intervenções imputadas a J. Sócrates, não são tomadas em consideração porque estariam foram do âmbito e da competência individual do Primeiro-Ministro; a acontecer não poderia ter sido ele, apenas… e o testemunho dos seus colaboradores próximos é validado.

 J. Sócrates não terá passado recado a Lula da Silva sobre a PT, já que as datas das cimeiras e os encontros oficiais agendados entre os dois líderes não o teriam permitido. Já ouviram falar em telefones e outros canais e intermediários?

Certamente é e será difícil julgar a corrupção, pelo menos na nossa máquina judicial, mas, apesar de tudo o que foi para já anulado, ficou claro e evidente que foram apanhados!


09 abril 2021

Jorge Coelho, uma reflexão

Para mim e certamente para muitos a memória de Jorge Coelho ficará marcada principalmente por dois episódios. A demissão imediata após a tragédia de Entre-os-Rios e o recado do “Quem se mete com o PS, leva!”. Por trás destas duas atitudes, aparentemente díspares de virtude, existiria uma coerência, a frontalidade. Com Jorge Coelho, sabia-se ao que ele vinha, com o positivo e o negativo, mas de forma assumida.

Ouvimos hoje os elogios fúnebres fraternos daqueles para quem um ministro não é responsável por nada (de negativo; para positivo já é mérito), daqueles para quem “no limite …” a coisa pode nem sequer ter acontecido, ou pelo menos numa forma que lhes seja imputável, para quem a hipocrisia é tão natural como a respiração. Esta diferença faz evidenciar a degradação da qualidade humana dos atuais, digamos, responsáveis.


08 abril 2021

Vamos imaginar



Vamos imaginar que estava em funções um governo de Passos Coelho ou parecido e um Presidente da República Jorge Sampaio ou parecido. Vamos imaginar que nestes tempos de pandemia sanitária e social o Parlamento aprovava uma lei alargando apoios sociais temporários, aumentando a despesa pública, numa escala aparentemente gerível, e correspondendo a uma necessidade social efetiva e justa. O PR aprovava a lei e o Governo contestava, invocando a não constitucionalidade formal do processo. O mesmo governo que está a enterrar milhares de milhões numa TAP.

Vamos supor que o Governo era de direita e o PR de esquerda. Vai uma aposta em que os mesmos que hoje rasgam as vestes pelo cumprimento rigoroso da Constituição, estariam a rasgar as vestes contra a insensibilidade social dos “neo-liberais”? Vai uma aposta? Como, em vez de se julgar pelo fundamento, razoabilidade e justiça num sentido lato, tomam-se posições simplesmente pelo alinhamento tribal? Depois, estranhem que deixe de haver pachorra para aturar “os do costume”.


16 março 2021

Um novo apartheid


Tempos e países houve onde se separavam as pessoas pela raça, por exemplo, escolas para uns e outras escolas para os outros. Houve quem tivesse sonhado e lutado por um mundo onde direitos e oportunidades não dependeriam da cor da pele; onde essa ideia de dividir seres humanos por uma coisa chamada cor ou raça seria um anacronismo a eliminar.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades e vemos hoje polémicas quanto a quem pode ou não traduzir o poema de Amanda Gorman, pronunciado na tomada de posse de Joe Biden. A tradução de um texto literário e especialmente de um (bom) poema, onde há duplos sentidos, imagens evocadas e uma elegância de frases a cumprir, não é como ser um figurante porta-estandarte. Requer um bom conhecimento da língua origem e um excelente domínio da língua destino. A escolha de um tradutor deve ser determinada pela capacidade e mérito e não pela cor da pele ou o género.

Depois do tempo em que se aplaudia quem tinha belos sonhos, passamos a um tempo em que nos querem fazer mergulhar num pesadelo triste e sombrio: o de um apartheid cultural.

09 março 2021

Não falha! E as sobras

Pode o Governo não conseguir comprar a tempo os computadores prometidos para os alunos necessitados aprenderem em casa durante o confinamento; pode não conseguir reforçar a capacidade de resposta do SNS a partir de dentro ou de fora; pode a execução orçamental de 2020 ter ficado abaixo do previsto antes de Covid-19… mas há coisas que não falham.

Relativamente à Presidência Europeia, contratar comes e bebes para festas que não haverá, automóveis e fardas para motoristas que não verão passageiros, prendas para visitas que não nos visitarão e montar um centro de imprensa quando a ordem geral é trabalhar isolado, essas coisas não podem falhar! Acrescentando os casos que passaram por ajustes diretos a empresas recém-nascidas, aparentemente as únicas “capazes”… venham depois chorar e lamentar que o populismo constitui um grave problema.

E palpita-me que no fim tudo isto ainda vai gerar uma sobras simpáticas

08 março 2021

Foi você que pediu uma freguesia?


Leio atónito que alterações legislativas permitirão criar cerca de 600 novas freguesias, um aumento de cerca de 20% face ao número atual. Vejo anunciado que, em termos de população, será necessário um mínimo de 900 habitantes, 300 no interior, quando a média global do país está acima de 3000. Realmente, depois da racionalização dos tempos da troika, parece confirmar-se que, por cá, reformas a sério apenas sob severa tutela e que à primeira oportunidade os velhos reflexos regressam, mais teimosos do que um boneco “sempre-em-pé”, que, não importa o que lhe façam, retoma sempre à posição inicial. Eventualmente, será mais apropriado falar de “sempre-em-crise”.

Com uma população que não aumenta, com o desaparecimento da necessidade da presença física nas instituições públicas para cada vez mais interações, parece-me até que se deveria pensar e avançar ao nível dos concelhos e não recuar nas freguesias.

Quem pede uma freguesia? Queixas de foro afetivo pelo desaparecimento da individualidade da “sua” freguesia histórica e… “Prasidentes desempragados” de uma Santo António de Matraquilhos ou Santa Maria dos Escofados, que perderam o seu pequenino poder. Nenhuma destas motivações deveria ser racionalmente atendida. Nunca cresceremos assim, brincando aos pequeninos.

E em versão reduzida no Público de hoje.



26 fevereiro 2021

Empresas, nascem e morrem


O livro acima representado, que li recentemente, é uma vista sobre a génese, desenvolvimento e desaparecimento da indústria de papel no estado do Maine, nos EUA, ao longo de mais de um século.

Com o devido respeito pelas distâncias, diferenças e diversidades, apetece-me desenhar um ciclo típico, que poderá não ser assim tão específico daquele contexto.          

Fase I – Os fundadores. A empresa é criada por alguém e segue dentro da família, com dono próximo, personalizado e extraordinariamente ligada à comunidade. Mais do que um emprego para a vida, a empresa é o sustento de famílias inteiras, em sucessivas gerações. Sem muitas obrigações legais que a forcem a tal, oferece um conjunto enorme de infraestruturas e serviços sociais à comunidade. Os trabalhadores, apesar de tudo o que falta, sentem-se orgulhosos em participar no projeto e no sucesso do seu trabalho.

Fase II – Os seguidores - Esgotada a participação da linhagem original, a empresa passa a ser dirigida por quadros aí nascidos. Se bem que a propriedade possa estar já dispersa e parcialmente longe da “terra”, não têm exigências apertadas sobre o retorno do seu investimento. Assim, mantem-se na gestão local uma visão de longo prazo e uma pressão moderada sobre os resultados. Para os trabalhadores o espírito não muda muito e sindicalização não é sentida como necessária.

Fase III – A degradação – Por falta de enquadramento e/ou de caráter o ambiente é envenenado por nepotismo, pequenos reis em cada esquina e iniquidades insuportáveis. Entram os sindicatos.

Fase IV – Gente de fora – A empresa é comprada, vamos supor neste cenário, para já, por outra do mesmo setor. É submetida a concorrência interna, os processos são comparados e questionados, produtos são deslocados e os que agora mandam ainda falam a mesma língua, mas com outro sotaque. A guerra com quem lá está, já sindicalizada, e quem chega e quer mudar é total. A empresa pode ser fechada, por excedentária na nova carteira, redimensionada ou mesmo melhorada. Não remam já com todos na mesma direção, mas antes se confrontam internamente, uns de um lado e outros de outro. As decisões de investimento são algo travadas pela incerteza do clima de litigância.

Fase V – Gente mesmo de fora – Diretamente ou indiretamente os donos são investidores financeiros, que colocam como objetivo prioritário absoluto a sua retribuição e a curto prazo. Nomeiam diretamente equipas de gestão, com esse objetivo, vindas sabe-se lá de onde, que não são minimamente consideradas nem reconhecidas pela antiga organização de cima a baixo. Aqui, tudo pode acontecer e o ambiente não é nem nunca virá a ser o da família. A empresa pode acabar por fechar, como uma grande maioria neste caso, ou não.

Algo que na minha opinião falha no livro em questão é a ligação e a influencia do meio externo e do mercado. Num cenário protegido a fase II, onde as pessoas são certamente mais felizes, pode ser viável, mas tornar-se inviável se o ambiente concorrencial apertar. As empresas necessitam de capitais para investir e sobreviver; quem os disponibiliza espera naturalmente resultados, dentro das melhores expetativas. Dificilmente apenas com legislação se conseguirá proporcionar e forçar um justo equilíbrio entre resultados, sustentabilidade, respeito pelas comunidades e manutenção de valores sociais básicos. Depende das pessoas, valores e … cultura. Entre irredutíveis sindicatos fechados em direitos adquiridos e predadores financeiros que não se preocupam em matar a empresa desde que o seu retorno a curto prazo seja o pretendido… há empresa que morrem e pessoas que sofrem. Depende da … cultura.