31 julho 2016

A outra sanção

Andaram os cortesãos das várias famílias, tendências e obediências muito entretidos a discutir o cenário das sanções europeias. De quem foi a culpa de elas poderem chegar e de quem foi o mérito de elas não terem chegado. Não faltaram murros no peito do “A mim, ninguém sanciona” e por pouco não se foi ressuscitar D. Afonso Henriques para defender a nossa soberania.

Não houve sanções e a corte respirou de alívio. Podem todos ir de férias, aliviados, mas eu não. Vejamos. Para “voltar a página da austeridade”, que é como quem diz, abrir mais os cordões à bolsa, convém que esta esteja mais cheia. E pode estar mais cheia por a enchermos nós ou por pedirmos emprestado. Estando último cenário um pouco complicado, há até quem diga, com alguma razão, que a nossa dívida pública é insustentável e nunca a conseguiremos reembolsar, não será muito lógico estar a aumentá-la ainda mais.

Relativamente à alternativa sustentável de aumentarmos a nossa riqueza, e esquecendo os generosos 2,4% de crescimento para 2016 avançados pelos sábios do PS antes das eleições, o orçamento de Estado atual prevê 1,8%. Sendo certo que prognósticos apenas no final do jogo, e nunca se sabe bem o que pode acontecer nos prolongamentos, as previsões atuais apontam para valores claramente abaixo de 1%. Esta redução de riqueza criada, é só fazer as contas, de cerca de 2 mil milhões de euros a menos, é um detalhe?

Nota: Não adianta aumentarem os impostos e tirar de alguns para dar a outros. Enquanto não houver produção de riqueza, a cepa continuará torta…

28 julho 2016

Pior do que antes

Se não faltam no Médio Oriente, guerras com forte componente religiosa/comunitária, podemos questionar porque é que, por exemplo, a guerra no Líbano de 1975 a 1990, até com envolvimento direto do diabolizado Estado de Israel, não provocou uma mobilização da comunidade muçulmana europeia como agora com a Síria? Por não haver internet… nem “Al Jazira”? O facto é que hoje, na Europa, o nível de radicalização em abrangência e em intensidade é indiscutivelmente maior do que há 20-30 anos, quando as chamadas feridas da colonização estariam supostamente mais vivas. Quem é responsável por isto? Penso que muita gente no Islão e para lá dos marginais declarados ou encapotados.

Para não deixar a coisa no abstrato deixo um nome: Youssef Qaradawi. Não é único mas é significativo e suficiente. É fácil encontrar citações deste senhor carregadas de ódio e apelos à violência. Durante anos foi uma vedeta da rede de televisão Al Jazira e convidado para palestras em França, daquelas em que se debate o direito do homem bater na mulher, pela UOIF, uma importante e poderosa federação de associações muçulmanas, “próxima” da Irmandade Muçulmana. Hoje ele está proibido de entrar em França, para grande pesar do anfitrião, mas as suas ideias não. Segundo Ahmad Jabbalh, presidente da UOIF na altura da proibição, o “sábio Youssef Qaradawi” é « um homem de paz e de tolerância que trabalha para a abertura e a moderação e cujas posições foram sempre no sentido da justiça e da liberdade dos povos, exercendo uma influência positiva no mundo muçulmano” e “a proibição apenas fará aumentar o ressentimento e o sentimento de exclusão da comunidade muçulmana”.

Um ressentido e excluído querer partir para a Síria ou pegar numa grande faca e desatar a degolar inimigos da fé, não é uma consequência direta dos pregões dos Qaradawis e companhia e da brutal hipocrisia e manipulação destas organizações, mas que ajuda, ajuda…

26 julho 2016

FFIAM




Se fotografar a sério é com uma focal fixa, foi no Festival de Folclore Internacional do Alto Minho de 2011 que eu usei a minha primeira fixa, 50mm f/1.8, a sério.

O FFIAM é uma parte significativa do meu percurso de aprendizagem. Para este ano escolheram uma foto minha da edição do ano passado para o cartaz do evento.

25 julho 2016

Le petit bonhomme



Esta fotografia correu as redes sociais e, para lá do ridículo evidente, recorda-me uma cena de “O Grande Ditador” de Chaplin, dos dois ditadores disputando a primazia da altura nas cadeiras do barbeiro...

Antes de continuar, afirmo não ter nenhuma simpatia ou admiração por Durão Barroso. Quando ele foi presidir a Comissão, até pensei ter sido escolhido por pretenderem alguém de rasgo limitado e suficientemente maleável.

François Hollande veio dizer que achava mal Durão Barroso ir para o Lehman Brothers, pela responsabilidade deste banco na crise de 2008 e pelo mal que ela provocou na Europa. Um pouco caricato e incoerente, mas vamos por partes.

Dizer que o Lehman Brothers foi responsável pela crise é como o bêbado que aponta a culpa ao último copo… Pretender que se não tivesse havido essa crise, de origem externa, a Europa estaria muito melhor… é anedota. Acredito tratar-se de uma mensagem para amansar a esquerda francesa, mas algo atabalhoada…

Já agora, o sucessor do Sr Barroso, o Sr Juncker que enquanto governante do Luxemburgo ajudou multinacionais a não pagarem impostos “justos” na Europa e concretamente prejudicando a própria França, não tem direito a umas considerações moralistas? Não será mais grave esta nódoa direta de quem está em exercício do que a outra, de quem saiu há mais de um ano?

24 julho 2016

O que correu mal?


Há um século atrás o império Otomano estava em decadência irreversível e viria a cair menos de uma década depois. Muita tinta se gastou com “O que correu mal?” e muitas razões se apontaram e especularam, desde religião a menos a religião a religião a mais, das mais simples às mais rebuscadas. Se ninguém discute a influência da religião na queda do império romano, é forçoso reconhecer que o princípio de que tudo está escrito e encerrado, nada pode ser acrescentado ou alterado, não constitui certamente um bom fermento para o desenvolvimento do conhecimento.

Claramente as novas rotas comerciais com a Asia, estabelecidas após os descobrimentos portugueses, contribuíram, mas outras sugestões não faltaram. Será que a exclusão do contributo da mulher foi um handicap significativo? Ou a consanguinidade permitida naquelas sociedades levou a uma degradação genética? Certamente não terá existido uma causa única. Há ciclos que se encerram naturalmente e muitas vezes é a própria riqueza do sucesso que conduz à decadência.

Posteriormente, foi constituída a nova república turca, fortemente laica. Era um bom exemplo de ser possível um país de larga maioria muçulmana funcionar com a religião apenas nas mesquitas e fora de ministérios, tribunais e escolas. Mais tarde veio a democracia e um partido islâmico chegou ao poder. A Turquia era um bom exemplo de ser possível um país de maioria muçulmana ser efetivamente democrático e um partido islâmico jogar o jogo.

Gradualmente a Turquia foi ficando menos democrática, menos secular e o contragolpe de Julho 2016 tornou-a um Estado de não direito. É muito provável que daqui a uns anos se comece a gastar tinta com o “O que correu mal na Turquia?”, que, significativamente, até nunca foi colonizada.

Talvez nessa altura futura se escreva sobre um bom exemplo de um país qualquer na bacia mediterrânica, de maioria muçulmana, que vive em democracia plena, onde o partido no governo, confessional ou laico, entende o exercício do poder como um mandato com regras e limitações e não uma apropriação. Ou talvez não…


Foto pickada no Economist

21 julho 2016

Os conquistadores e os seguintes

O livro “Conquistadores – como Portugal criou o primeiro império global” de Roger Crowley é, na minha opinião, um livro de leitura obrigatória. Escrito por um inglês, consegue ter um distanciamento e uma objetividade que a nossa relação afetiva com o assunto dificulta.

Penso que os descobrimentos portugueses têm um reconhecimento histórico distorcido. De um lado talvez excessivo, por nós, nascidos e criados a ouvir Lusíadas e “Heróis do mar…”, do outro lado, menosprezado pelas potências históricas seguintes a quem custa reconhecer a genialidade e o pioneirismo destes pequeninos. Dentro da leitura global da época dá-se uma importância exagerada à simples viagem de Colombo, por a América se ter tornado no que se tornou, e pouco destaque à incrível empresa de Fernão de Magalhães, num meio natural e social adverso a forçar e a encontrar no fim do mundo uma passagem diabólica entre os dois mares.

O livro de Crowley parece estar bem fundamentado (quem sou eu…) e dá uma visão muito rica dos sucessos e insucessos, da brutalidade e da diplomacia (muitas vezes da falta desta) e, sobretudo, da importância da liderança.

Ficou-me uma reflexão principal. Não é fácil ter sucesso, exige saber, persistência, meios humanos e materiais. Mas, há algo mais difícil do que ter sucesso, que é mantê-lo. É, depois do sucesso inicial, continuar em busca do saber, manter a persistência e, muito especialmente, as lideranças não serem confiscadas pelos oportunistas.

19 julho 2016

Amin Maalouf

Descobri este escritor libanês por acaso há uns anos numa livraria de Argel, quando por lá vivia. Com ou sem acaso eram edições particulares e únicas: havia páginas fora do sítio e até algumas em branco. Os franceses reclamam-lhe parcialmente a nacionalidade, mas a tinta dele é do levante mediterrânico, o Mashrek, sem margem para dúvidas.

O título mais apelativo para os curiosos será provavelmente “As cruzadas vistas pelos árabes”, mas foi a viagem pela Pérsia antiga e recente da “Samarcanda” que me revelou o encanto da sua escrita.

É um escritor de viagens humanas na história. Os seus protagonistas atravessam e testemunham grandes acontecimentos da história, mas sempre com uma dimensão individual intelectual e emocional significativa. Assistimos ao desenrolar de choques culturais e religiosos, tanto à grande escala como no íntimo de cada um.

Pode ser no dobrar do século XV e início XVI, em “O Leão Africano”, onde um muçulmano vai de Granada a Roma, passando por Fez e Cairo; ou no século XVII, com “O Périplo de Baldassare”, do qual tive recentemente o prazer de virar a última página, onde um cristão do Oriente vai do Líbano a Génova, passando por Istambul, Izmir, Lisboa e Londres.

As religiões e as culturas cruzam-se, desafiam-se e dialogam. Não digo que isto seja especialmente necessário agora mais do que nunca, mas seguramente agora e sempre. Este nosso Mediterrâneo, entre o levante (Mashrek) e o poente (Magreb), pode estar a viver muitas desgraças, mas a pujança cultural do que nasceu nas suas margens não morre.

18 julho 2016

Onde parará o comboio?


Por algumas horas questionamo-nos se a Turquia estaria a seguir um caminho “egípcio”, com os militares a travarem um poder islâmico democraticamente eleito. Erdogan tem a legitimidade democrática das urnas, mas não é um democrata. Uma vez disse em público, desconheço o que poderá acrescentar em privado, que a democracia é um comboio de onde se sai quando se chega ao destino e um poder que ataca jornalistas e juízes não é certamente democrático.

Independentemente das especulações sobre a real natureza e a origem da iniciativa do golpe, Erdogan chamou-lhe uma dádiva divina que permitirá limpar o exército. A suspensão imediata de 2745 juízes, mostra que a limpeza não se limita ao exército e coloca muitas dúvidas sobre a real razão desses afastamentos.

Mas há fraquezas de Erdogan que permanecem. A gestão da questão síria, com prioridade na oposição ao regime de Al Assad, consequente falta de eficácia no controlo da fronteira e a hostilidade contra os curdos, trouxe-lhe uma instabilidade para dentro de portas, que talvez pudesse ter sido evitada. A fraqueza maior pode estar ainda na forma como Erdogan está a gerir o pós-golpe, em força e com recorrentes mensagens islâmicas “eles têm os tanques, nós temos a fé”. Poderá dar-lhe impunidade formal e um reforço de popularidade junto dos seus eleitores fiéis. No entanto, duvido que reforce a base eleitoral do seu partido que, recordamos, “apenas” conseguiu 50% dos votos e em eleições repetidas, na “primeira volta” ficara pelos 41%.

Se o comboio conseguir circular e aguentar até às próximas eleições, parece-me provável que os turcos consigam limpar democraticamente este ditador. Até lá, irão sofrer.


Foto de prisioneiros extraída da CNN

16 julho 2016

Porque não acaba

Os avanços militares contra o designado Estado Islâmico na Síria e no Iraque parecem sugerir que o apogeu desta organização ficou para trás e ser agora uma questão de relativamente pouco tempo até essa barbaridade passar a ser passado.

Poderá ser verdade, concretamente para este rebento do fundamentalismo islâmico, mas as sementes lá estando, é outra questão de tempo até vermos novo protagonista. Donde vêm essas sementes e quem as rega? Para lá de algumas particularidades na génese do Islão, a sua visão hegemónica e de superioridade face às outras religiões do livro, o registo bélico da fase de Medina e a concentração da liderança religiosa e temporal na mesma figura, particularidades que podiam ter sido resolvidas com o tempo, é necessário ir ver mais perto, a 100 anos atrás.

No final da Grande Guerra de 14-18, o império otomano, herdeiro dos califados históricos, está de rastos e cai. As razões da sua decadência são tema para muitos estudos, questionando-se nomeadamente qual a influência da religião nesse declínio. Kemal Ataturk irá fundar uma Turquia moderna, laica, entendendo que o futuro passa pela separação da religião da política.

No mundo muçulmano em geral este fim de ciclo e o desaparecimento do califa é sentido como uma perda e uma grande desilusão. O que é correu mal? Algumas vozes, principalmente no Egito, vão proclamar que se na “origem” foram poderosos e agora enfraqueceram, isso aconteceu por se terem afastado dos fundamentos religiosos. A solução é o regresso às origens: o salafismo. Tudo que é “influência ocidental” é mau. É necessário islamizar o individuo, a família, a sociedade, o país, o mundo; se for necessário lutar, lute-se; se essa luta tiver que ser violenta, seja; se for preciso morrer nessa luta, isso é uma obrigação e uma honra. Esta cartilha criada nos anos 20 está por trás de quase todo o ativismo político islâmico atual, interpretado de forma mais “hard” ou mais “soft”, conforme o contexto.

Estes salafistas vão estar inicialmente aliados aos independentistas “progressistas” face ao colonizador, inimigo comum. Após as independências o casamento de conveniência desfaz-se, porque as conceções de sociedade dos dois são incompatíveis.

O salafismo ativista vai encontrar terreno fértil nas desilusões do pós-independência, a partir da década de 80. De fato, os regimes no poder falham as expetativas de desenvolvimento e de bem-estar que a expulsão dos colonizadores prometia. As sementes no terreno fértil serão regadas pelas monarquias do golgo pérsico, substancialmente enriquecidas após o choque petrolífero da década de 70. Lideradas nessa fase pela Arábia Saudita, guardiã dos principais locais santos e seguidora de uma versão do islão fechada e intolerante, encontrarão assim uma forma de expandir e aumentar a sua influência no mundo muçulmano. As chamadas “Primaveras Árabes” e, principalmente, os seus desfechos devem ser lidos neste enquadramento.

Não afirmo que os petrodólares pagaram diretamente as kalashnikov que massacram em nome do Islão. É claro, no entanto, pelo menos no norte de África, que a radicalização dos jovens, muitos deles agora a lutar na Síria e amanhã sabe-se lá onde, tem a marca das escolas, mesquitas e associações patrocinadas pelo “golfo”. É muito importante realçar que não estão em causa movimentos pontuais que nascem e morrem isoladamente. Há um processo de base, estruturado e com um longo histórico.

Enquanto houver terreno fértil, sementes e irrigação, os rebentos continuarão a brotar.
 

Antevisão do próximo Natal?


Apanhei esta imagem no Le Soir no final do ano passado e apeteceu-me evocá-la hoje, sem mais comentários.

14 julho 2016

A má reputação no 14 juillet


Hoje é o dia da festa nacional francesa, da tomada da Bastilha, que iniciou uma revolução com tanto de liberdade e igualdade nos princípios como de tirania e injustiça na prática. Ao ver umas imagens dos desfiles nos Campos Elísios dei-me por mim a trautear a “Mauvaise Reputation”. Deu-me vontade de a traduzir e deixar aqui. Recordando aquela voz quase monocórdica com aquela viola quase monotónica… de um grande trovador.

Na aldeia, sem pretensão,
Eu tenho má reputação;
Que me mexa ou que fique quedo
Passo sempre por um sabe-se lá o quê.
Portanto, não faço mal a ninguém,
Seguindo o meu caminho de homenzito
Mas as bravas gentes não gostam que
Se siga um caminho diferente do deles
Todos me maldizem,
Exceto os mudos, está claro.

No catorze de julho,
Eu fico na minha cama quentinha;
A música marcial,
Não me diz respeito.
Portanto, não faço mal a ninguém,
Por não ouvir os sons do clarim;
Mas as bravas gentes não gostam que
Se siga um caminho diferente do deles
Todo mundo me aponta a dedo,
Exceto os manetas, está claro.

Quando eu encontro um ladrão azarado
Perseguido por um labrego;
Estico a perna e reconheço,
O labrego estatela-se
Portanto, não faço mal a ninguém,
Por deixar fugir os ladrões de maçãs;
Mas as bravas gentes não gostam que
Se siga um caminho diferente do deles
Todos correm atrás de mim,
Exceto os pernetas, está claro.

Não é preciso ser um Jeremias
Para adivinhar o destino que me está prometido:
Se eles encontram uma corda a seu gosto,
Passá-la-ão no meu pescoço.
Portanto, não faço mal a ninguém,
Por seguir caminhos que não vão dar a Roma;
Mas as bravas gentes não gostam que
Se siga um caminho diferente do deles
Todos virão ver-me enforcado,
Exceto os cegos, está claro.

Foto Googleada

Nota: Após o acontecimento de Nice, fiquei a pensar se este apontamento sobre o 14//7 não seria de oportunidade infeliz. Mantenho-no, no entanto, para não misturar coisas. Estes acontecimentos não devem mudar a nossa agenda.

13 julho 2016

Contra Mersault

Mersault é o protagonista de “O Estrangeiro” de Albert Camus, talvez a obra mais famosa de um dois maiores escritores de língua francesa do século XX e uma referência fundamental na literatura do existencialismo. O enredo desenrola-se na Argélia Francesa onde Mersault mata um árabe numa praia, sem razão e sem saber bem porquê, dentro do tom do “absurdo da existência”, característico daquela corrente filosófica e literária. Na história, Mersault é julgado e condenado. Do árabe, morto gratuitamente nada se sabe, nem sequer o seu nome. Para uns isto é uma forma de racismo, para outros, eu modestamente incluído, faz parte de uma certa perspetiva niilista da história.

Kamel Douad, escritor argelino, publicou recentemente um romance que teve algum sucesso: “Mersault – Contra inquérito”. O seu personagem é o irmão do árabe desaparecido da vida, dos registos e mesmo ausente do cemitério, por supostamente o cadáver se ter volatilizado. Viaja entre a denúncia da indiferença do colonizador e a desgraça e angústia da família indígena. A injustiça é ainda mais gritante porque o tipo que lhe matou o irmão, publicou um livro sobre o assunto e ficou famoso, numa fusão de autor (Camus) e Mersault (personagem). Nos calores dos dias da independência, o novo protagonista mata um francês, também por nada, mas o autor de agora tem o cuidado de lhe dar um nome completo (o próprio e o de família). O protagonista é preso brevemente, não pelo crime, mas apenas por não ter participado na luta independentista. A trama é relatada numa mesa de café, que cheira muito a outro grande romance de Camus, “A Queda”.

O livro incomodou-me um pouco por estar apoiado numa correspondência algo grosseira e nalguns aspetos forçada. Só não sei se Kamel Doaud é mesmo fino a ponto de o paralelo abusivo, ser propositadamente assim. No mínimo, o livro tem duas perspetivas de leitura. Num ponto de vista simples e direto, prima a solidariedade terceiro-mundista com o “outro” ignorado e menosprezado. Em alternativa, podemos ver friamente encenada e destacada uma ironia triste sobre a falta de objetividade e de rigor, e consequente amálgama de razões e suposições, que muitas vezes por ali se vive.

Da desgraça de um mal inicial, um crime gratuito e brutal, partimos para uma cobrança desajeitada, com uma argumentação baralhada e fantasiada, não menos brutal e completamente injustiçada. Este défice de discernimento, acaba por constituir uma desgraça maior do que aquela que pretendia corrigir. Será esta uma mensagem sub-reptícia de Kamel Daoud ou serei eu a fantasiar em excesso? Gostaria de saber como o júri que premiou o romance o leu, sendo certo que um bom livro é aquele que pode ser lido de várias formas.

08 julho 2016

Os Lesados


Não tenho nenhuma simpatia nem admiração especial por Pedro Passos Coelho, antes pelo contrário. Quando ele assumiu a liderança do governo até o achei algo “curto” de preparação para a função. A forma como ele governou e a aplicação do memorando da troika não foi substancialmente diferente da que seria feita por outro primeiro-ministro ou outro partido. O mal principal vinha de trás, por muito que o PS o queira esquecer.

Há, no entanto, um momento fundamental em que Passos Coelho agiu de forma diferente ao expetável. Foi quando disse ao Sr. Ricardo Salgado, Dono Disto Tudo ou, mais precisamente, Patrão Deles (quase) Todos, que a CGD não ia oferecer ao grupo Espírito Santo os empréstimos que este exigia. E, na minha opinião, fez muitíssimo bem.

Quando vejo ainda hoje tanta animosidade contra PPC, mesmo dentro do seu próprio partido, não consigo deixar de a relacionar com essa nega de Junho de 2014, que não lhe é perdoada por todos os Lesados (com maiúscula) do BES/GES e demais assalariados do Patrão Deles (quase) Todos.

Este movimento nacional “consensual” que não perdoa a PPC parece-me ser mais o protesto de uma confraria do que uma contestação politica. A realçar que o Patrão Deles (quase) Todos não tinha cor política, viajava habilmente pelo “arco-íris” do poder.

07 julho 2016

O depois da mentira


O relatório Chilcot, divulgado esta semana na Inglaterra (ou Grã-Bretanha ou Reino Unido...) veio comprovar aquilo de que já se suspeitava há muito tempo. Que a invasão do Iraque de 2003 foi uma birra, ou outra coisa, dispensável. Que não havia nenhuma ameaça séria naquele momento e que a via negocial não estava esgotada. Publicado em 2011, o livro “A Era da Mentira” de Mohamed Elbaradei, antigo Diretor da Agencia Internacional de Energia Atómica e Nobel da Paz em 2005, é também bastante elucidativo sobre esse embuste e outros assuntos contemporâneos da mesma temática.

Ficou também agora evidenciada a ausência de uma preparação séria para o “dia seguinte”. De recordar que o que se passa hoje no Iraque, nomeadamente as tensões sectárias que ajudaram à nascença do chamado estado islâmico são, em parte, ainda a consequência dessa falta de previsão.

A divulgação deste relatório, numa altura em que Donald Trump aparece como sério candidato à presidência dos EUA, deveria ser objeto de uma reflexão especial pelos eleitores americanos.

Ficamos à espera da publicação de algo análogo em França, se tal for possível, sobre o envolvimento desta no derrube de Khadafi. Enquanto o UK se deixou enganar ou foi enganado pelos EUA; na Líbia a França interesseiramente e falsamente foi atrás de outros, por acaso não europeus nem ocidentais.

É comum referir que o Iraque com Saddam e a Líbia com Khadafi estavam “melhor” do que ficaram depois das respetivas “libertações”. Isso é verdade, mas significa que essa parte do mundo só se controla e está estável debaixo de regimes ditatoriais e repressivos? Não deveria ser assim mas, pelo menos, poderíamos ter aprendido que a doença não se cura com envio de tropas e mísseis. Não aprenderam. Na Síria apenas só não estamos aí pelo apoio do Irão e da Russa ao regime, mas os danos já são irreversiveis.

03 julho 2016

Do you think you can tell?


comentei algo quando saiu o álbum “Endless River”, dos regressados Pink Floyd. Na altura ouvi-o-de passagem e, gostando, cheirou-me a “prato aquecido”. “Sem o fulgor e a frescura do cozinhado fresco, sabia bem recordar o sabor fantástico original”. Um destes dias apanhei-o em promoção na Fnac, não resisti e lá o tive uns dias a rodar no leitor do carro.

Com um forte e bem marcado “Louder than words”, uma boa parte dos outros temas, agradáveis, parecem uma segunda escolha de temas do álbum “Wish you were here”. Pela proximidade sonora com esse trabalho mítico (na minha mitologia pessoal pelo menos), arrisquei ouvir o “original” de novo, assim como quem compara…”Do you think you can tell?”

Arrasou… e sem dar hipóteses. O fulgor e a magia são incomparáveis. Provavelmente do ponto de vista do desenvolvimento e riqueza musical (na perspetiva de um ignorante na causa) um “Selling England by the Pound”, do pico dos míticos (….) Genesis, também arrasará os Pink Floyd. Estes, no entanto, têm uma alquimia especial naquela sonoridade…

Do you think you can tell? Sim, distingo perfeitamente os Pink Floyd originais do seu eco, assim como também separo perfeitamente este mundo fantástico da banalidade corrente.

E não irei dizer pela enésima vez que nunca se voltou a fazer nada assim. Não o direi… mas aceito sugestões.

01 julho 2016

Ainda bem, Europa

Há exatamente 100 anos, a 1 de julho de 1916, começava a batalha do Somme, um rio que atravessa o Norte de França, cerca de 150 km a norte de Paris. Foi uma das linhas da frente da famosa guerra de trincheiras.

O envolvimento francês em Verdun, no leste, e os seus 163 mil mortos aí deixados, fez com que fossem as tropas britânicas as preponderantes nesta frente. Também por isso esta batalha é mais recordada do outro lado da Mancha.

Logo no primeiro dia morreram 19 mil britânicos. Durante 4 meses e meio, ao longo de cerca de 40 km, irão morrer 206 mil ingleses, 67 mil franceses e 170 mil alemães. Acrescentando os feridos, o número supera um milhão.

Hoje vivemos as ondas de choque do “Brexit” e quando assistimos a uma infindável, intragável e vergonhosa exploração politica e politiqueira do acontecimento, apetece dizer ainda bem. Ainda bem que a Europa de hoje não cava trincheiras. Por execrável e detestável que seja o discurso político ainda bem que vivemos numa Europa que não discute ao som das botas militares. E acredito ser irreversível.

A foto é da belíssima catedral de Amiens, cidade principal da região. Para me recordar de quando por lá passei e da quantidade de cemitérios militares que vemos sinalizados ao longo da estrada.