30 dezembro 2013

Eu e a música tradicional portuguesa - A culpa

Existe claramente, na minha opinião, um responsável principal pelo empobrecimento da música tradicional, pelo menos nas Terras de Santa Maria, que são as minhas, e que se chama acordeão. Quando os grupos folclóricos são criados, nos anos 50 ou 60, mais década, menos década, o acordeão existe na música tradicional, mas é um recém-chegado. Na época de referência a que se reportam os grupos, início do século XX, não existia. A sua inclusão é um anacronismo que infelizmente não foi expurgado.

Podia ter um efeito subtil, apenas visível ao perto por especialista, como usar uma camisa de fibra sintética em vez de linho, mas não. Poderia ter um efeito apenas visual, como usar uma viola clássica amarelinha em vez de uma popular de madeira clara, e com sonoridade idêntica, mas não. O som é diferente de todos os outros.

Poderia ser um som novo mas complementar, como se, por exemplo, se acrescentasse uma guitarra de fado numa tocata e ela por lá se misturasse, mas não. A natureza é completamente diferente e não se integra. As cordas têm uma sonoridade saltitante e sincopada, o acordeão é redondo e contínuo. Tem, ainda, uma potência tal que se sobrepõe a tudo e reduz os instrumentos de corda “antigos” a um estatuto secundário e apagado.

Quando Júlio Pereira lança o álbum “Cavaquinho”, abre-se a boca toda para trás de espanto: como é possível que um instrumento assim existisse e não se conhecesse daquela forma? Sim, ele andava nos grupos folclóricos, mas muitas vezes em função pouco mais do que meramente figurativa.

E, ainda, o acordeão poderia ser tocado de uma forma equilibrada, dando espaço aos demais participantes, e, por exemplo, recuando quando alguém começa a cantar, deixando o protagonismo às vozes, que é quem o deve ter nesses momentos, mas não. Por norma, ele arranca a pleno fole, faz tudo, tudo, do princípio ao fim e quem quiser que venha atrás …

Continuação do anterior "Alguns sinais"
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28 dezembro 2013

Eu e a música tradicional portuguesa - Alguns sinais

Estamos nos 70, poucos anos após o 25 de Abril, o povo é quem mais ordena, povo para aqui, povo para ali e o popular ganha muita popularidade. Aparece então gente de outros meios, e com outros meios, a tocar música tradicional, indo buscá-la à fonte, directa ou indirectamente. Tradicional em segunda mão, como dizia com humor Michel Giacometti, um nome fundamental das recolhas, de quem nunca é demais realçar o quanto lhe devemos.

E o que se ouve destes novos intervenientes surpreende. Destaco um nome especial (para mim): A Brigada Vitor Jara. Assumem claramente que tocam música tradicional, com novos arranjos, sempre com instrumentos tradicionais, mas sem os restringir à sua zona geográfica original. Mais uma vez não se pode identificar directamente a música tradicional com aquilo, mas a beleza, força e diversidade dos temas, pressagiam que lá por trás andaria uma riqueza escondida.

Outra grande referência no final da década de 70 são os Almanaque e o seu álbum “Descantes e Cantaréus”, em que assumem que é mesmo, mesmo, tradicional, igual à recolha original. O disco viaja por todo o país, mas tem um significado especial para mim, pela proximidade, a “Tirana”, que tem uma beleza e uma força incríveis. O que se passava então com os grupos folclóricos e a sua estridência que nada tinham a ver com isto e quase parecem oriundos de um mundo completamente diferente?

Existe no início dos 80 um grupo que é uma “aberração folclórica” à luz dos cânones habituais: não dançam e não têm acordeão! Mas como tocam e como cantam! Recomendo o “Senhor da Pedra”, de “ir ao céu e tornar a vir…”. É o “Grupo de Cantares de Manhouce” e a senhora solista (cantadeira), nada estridente, ficará depois conhecida, atravessando outros palcos: Isabel Silvestre.

A Tirana está aqui
E o Sr da Pedra está aqui

Continuação do anterior "Antes"
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27 dezembro 2013

Eu e a música tradicional portuguesa - O Antes

A minha relação com a música tradicional portuguesa começa por não existir. Situando-me na segunda metade da década de 70, música portuguesa para mim era Sérgio Godinho, José Afonso, Adriano, José Mário Branco, Fausto, Trovante, Banda do Casaco e por esses lados fora…


Música tradicional era tipicamente uma senhora a cantar num registo muito alto, acompanhando um acordeão muito forte e com um tilintar de ferrinhos estridente. Estridente seria a palavra principal a aplicar. Da mesma forma como não tínhamos petróleo nem carvão de qualidade, também não teríamos música tradicional rica. A respeitar, é certo, mas pobre.

Por outro lado, nos tempos do Estado Novo, o folclore foi objecto de alguma manipulação não inocente nem decente. O “regime” da altura não se interessava muito sobre o fundo do povo e pouco valorizava a sua cultura tradicional, mas usava o “folclore” como montra de propaganda, reduzido aos estereótipos do Vira Minhoto, Corridinho do Algarve, Fandango Ribatejano, Bailinho da Madeira, Pauliteiros de Miranda, num espectáculo bonitinho e superficial …. Daí o nome ser usado nalguns meios para adjectivar qualquer coisa com mais de 3 cores e sem muita substância.

Alguns dos nomes acima citados fizeram algumas incursões pelo campo do tradicional, sendo talvez de destacar (para mim) o Zeca Afonso, o Adriano e a Banda do Casaco, mas esses trabalhos eram interpretados (pelo menos por mim na altura) como um ir buscar inspiração e não como representativos da qualidade e da riqueza do tradicional original.

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26 dezembro 2013

Descobri um tesouro

Há umas semanas atrás fui ver um espectáculo ao vivo do Carlos do Carmo… e não gostei muito. É uma história longa. Na infância eu detestava-o e/porque sucedia ele passar horas largas a fio, como protagonista único do leitor de cartuchos do carro do meu pai. Quando mais tarde o passei a apreciar, conhecia tudo de cor. Agora, quando o ouço cantar/dizer “Duas lágrimas de orvalho…” com um timbre algo oscilante, a fugir entre o cantar e o declamar, não deixo de recordar perfeitamente a forma cristalina e forte como aquilo saía nos cartuchos do meu pai… e a sensação de perda é enorme.

Lá no meio do espectáculo referiu os Açores, cantou “O Sol preguntou à Lua…” e soou-me muito pastoso, sem garra. Lembrei-me de que conhecia isso diferente, para muito melhor, pelo grande, de corpo e alma, Adriano Correia de Oliveira. Fui a correr ouvir para “desenjoar”!

Ao explorar um pouco mais a obra de Adriano descobri que esse tal “Sol…” além de fazer parte do álbum “Cantaremos”, que possuo, também estava integrado numa compilação/gravação que ele fez pouco antes de morrer, chamada “Cantigas Portuguesas”. Andei às voltas. Não é fácil encontrar hoje em dia produções de qualidade com alguma idade e acabei por comprar uma caixa com a obra completa, mesmo implicando alguma redundância com os 3 álbuns que eu já tinha. E, lá estavam as “Cantigas Portuguesas”, em que o Adriano, mais conhecido pelos fados e trovas, canta num registo popular extraordinário, belo e forte da Charamba dos Açores ao Vira do Minho! Aquele senhor cantava mesmo muito bem!

E isto deu-me vontade de contar a minha história com a música tradicional portuguesa. Vale o que vale, virá a seguir!

PS: E sobre Adriano, algo mais está aqui

22 dezembro 2013

Estado de Direito

É indiscutível que deve existir uma lei básica e quem fiscalize o seu cumprimento de forma rigorosa. Apesar de discordar de muito que tem sido feito em termos de governo e desgoverno recente, estes últimos acórdãos do TC sobre as alterações ao estatuto da função pública parecem-me injustos e fruto de uma interpretação do texto constitucional algo criativa e muito discriminatória. O famoso princípio da confiança aparentemente decorre do artigo 2 que textualmente é o seguinte: “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.” 

Daqui chegar aonde o TC chega, pelo caminho de que “o principio da protecção da confiança, basilar no Estado de Direito democrático, implica um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas jurídicas que lhe são criadas, não admitindo as afectações arbitrárias ou desproporcionalmente gravosas com as quais, o cidadão comum, minimamente avisado, não pode razoavelmente contar”, é algo que me custa a entender. 

Se eu resolvo comprar uma casa e a seguir o Estado me sobe o IMI e me aumenta o IRS, de forma a eu já não a conseguir pagar, não está também em causa uma quebra desse princípio de confiança? Aonde acaba esta interpretação de que o respeito pelo “Estado de Direito” fica comprometido em cada mexida significativa nos bolsos dos cidadãos? E, nesta perspectiva, são apenas os funcionários públicos ou pensionistas do Estado que vivem num Estado de Direito? Onde fica a “confiança” no Estado de um cidadão que vai ter uma carga fiscal adicional como consequência directa disto? Na minha opinião, fica em causa, e gravemente, o artigo 13 da Constituição, tão ou mais importante do que o anterior, com uma leitura muito mais simples e clara, e que é o princípio da igualdade.

09 dezembro 2013

Ímpetos de decreto

Em França acaba de votar-se uma lei em que, à semelhança do que se passa na Suécia, irá penalizar os clientes das prostitutas. A argumentação de defesa passou bastante pela defesa da dignidade da mulher, do combate ao tráfego dos seres humanos e por aí fora…

Ora bem, deixando de lado o filosofar se é um decreto que extingue na prática a chamada mais velha profissão do mundo, foi muito interessante um artigo publicado no Monde sobre a prostituição … no masculino. O artigo está aqui e é curioso como com ele se desmonta completamente a argumentação que defende a lei. Não se trata de mulheres, mas sim de homens e não há nenhum tráfico nem escravidão. Fazem-no porque querem e porque acham simpático o valor que recebem. Não acham que “vendem” o corpo porque no final até ficam com ele inteiro. Ou seja, o argumento de base da legislação não se aplica de todo a este caso, como não se aplicará a outros, mesmo no feminino.

Se ninguém pensa em proibir a apanha de morangos devido às condições de recrutamento e de trabalho de alguns desgraçados que por lá são apanhados, será que proibir a prostituição é a forma de acabar o outro tráfico? Tenho sérias dúvidas, assim como tenho uma solene irritação com estas posturas feministas redutoras. A dignidade a defender é a do ser humano e no fundo, não na rama.

02 dezembro 2013

ENVC - O fim do faz de conta

Tenho uma teoria segundo a qual as empresas e as entidades económicas em geral se dividem em dois grupos Há aquelas para as quais no final da linha está um consumidor e as outras em que está um contribuinte. Para lá de várias diferenças de valores e cultura, há um ponto claro: ao produzir por 120 algo que apenas se consegue vender por 100, as primeiras têm que mudar ou morrem, as segundas esperam que o contribuinte, directa ou indirectamente, as compensem.

Os estaleiros navais de Viana de Castelo (ENVC) são claramente uma empresa do segundo grupo. Basta olhar para os resultados dos últimos anos: o que gastaram versus o que produziram para evidenciar o descalabro. Mesmo uma boa parte do que produziram foi contratado em condições não concorrenciais, e já sem sequer referir a famosa história do navio para os Açores rejeitado pelo comprador e estranhamente sem responsabilização nenhuma.

Face à esta gestão pública calamitosa, a manutenção da actividade passava por reivindicar, e em devido tempo, uma privatização da empresa, com regras e responsabilidades claras. Se os 600 trabalhadores não se pagam e se a contribuição do contribuinte fechou, só havia duas saídas: mudar ou fechar. Os trabalhadores e todos os que lutaram pela manutenção da situação existente estiveram a defender o insustentável que, naturalmente, mais tarde ou mais cedo iria estourar. O facto de o processo de concessão implicar o despedimento prévio de todos os trabalhadores dos ENVC traz-me uma surpresa e um espanto. A surpresa é que o regulamento do concurso não tenha incluído nenhuma cláusula de retoma do quadro do pessoal existente, mesmo que parcial; o espanto é que só se descubra isso agora: foi escondido pelo governo ou não foi analisado no devido tempo pelos que agora se manifestam surpreendidos? Apenas mais um episódio fora de tempo neste processo pleno de desencontros com a realidade.

Já agora, o custo das rescisões não deve ser comparado com a renda da concessão, mas sim com o valor que o contribuinte lá teria que continuar a colocar ao manter-se este “faz de conta”