27 janeiro 2006

Descontentamentos misturados

O que há de comum entre Manuel Alegre e Jean-Marie Le Pen?

Nas últimas eleições presidenciais francesas, Le Pen passou à segunda volta excluindo um candidato de um partido “oficial”, concretamente Leonel Jospin do Partido Socialista. No dia 22 de Janeiro Manuel Alegre não passou à segunda volta por uma unha negra e ultrapassou claramente o candidato oficial do Partido Socialista. Ambos se apresentaram como exteriores ao “sistema” partidário oficial de poder. Continuar com este paralelismo pode ser insultuoso para Manuel Alegre e para Portugal. Ainda bem que o voto de protesto português cai num poeta e não num xenófobo truculento e mal educado. Além de que continuo sem perceber como o PS foi incapaz de entender que Mário Soares era definitivamente do passado.

Por trás desta “revolta” do eleitorado estão razões diversas e é perigoso vê-las misturadas. Uma coisa é o protesto justo contra os que se governam, fingindo que nos governam. Contra os jobs dos boys. Contra os “jotinhas” promovidos a ministros desconhecendo que existe vida para lá dos aparelhos partidários. Contra os tráficos de influência. Contra o delapidar dos dinheiros públicos e por aí fora.

Outra coisa é o protesto pelo aumento da idade de reforma, contra o fim das carreiras automáticas e contra um conjunto de coisas aritmeticamente justificadas e necessárias para não hipotecar mais o futuro dos nossos filhos. Este segundo protesto não faz sentido. Não podemos insistir cegamente em termos sempre uma fatia crescente do bolo quando o bolo total, em vez de crescer, está a mingar.

Misturar estes dois protestos bloqueia a realização das acções necessárias e é extraordinariamente perigoso e fonte de perigosa deriva. Obviamente que, enquanto os políticos oficiais não nos convencerem da sua seriedade, os protestos m
isturar-se-ão.

No passado dia 23 de Janeiro passei a escassos quilómetros do campo de Bergen-Belsen. A temperatura ambiente era de -8ºC e recordei o enorme frio que senti quando o visitei, apesar de ter sido em Julho. Aquele espaço de chumbo foi só o limite, e acreditamos que não passível de repetição, da deriva que tomou conta da Europa depois da crise dos anos 30. É certamente abusivo evocar um campo de concentração nazi a propósito do resultado das eleições presidenciais portuguesas com. Relativamente às francesas e a Le Pen, já nem tanto…

O problema das derivas é que sabemos quando começam mas não sabemos quando nem como acabam.

26 janeiro 2006

Os tempos actuais

[…]os tempos actuais são tempos de “aurea mediocritas” e de indiferença, de paixão pela ignorância, de preguiça, de incapacidade para o trabalho prático e da necessidade de receber tudo já pronto. Ninguém raciocina, será raro alguém elaborar uma ideia pessoal.
[…] Se aparecer um homem de esperança que plante uma árvore, todos se rirão: “ Será que vives até ela crescer?”.
[…] Desapareceu por completo uma ideia cimentadora. É como se toda a gente vivesse dentro de uma estalagem, preparando-se para fugir amanhã


Fedor Dostoiévski
“O Adolescente” 1874-1875

Sempre achei Dostoiévski muito moderno.
Ou seremos nós que achamos sempre que as grandezas e misérias da condição humana do nosso tempo são exclusivas do nosso tempo?

24 janeiro 2006

Esqueçamos a “crise”

Não gosto da palavra “crise” de costas largas. Não gosto que proclamem à exaustão que estamos em crise. Fala-se da crise como se fosse uma coisa exógena que chegou e se instalou perante a nossa completa impotência. Menos gosto de ouvir dizer que estamos em crise crónica, como se fosse uma espécie de fatalidade permanente e insanável. Mas, pior ainda, é que muitas vezes, mesmo quando se invoca o seu carácter crónico, não se deixa de acreditar, lá no fundo, que se trata de algo transitório e que “há-de mudar”, da mesma forma como depois da tempestade vem sempre uma bonança. Como se a única dúvida fosse a duração da tempestade.

Não, não estamos em crise, nem podemos resignadamente esperar que o vento mude, enquanto discutimos a dita em tertúlias mais ou menos animadas. Estamos inseridos numa realidade dinâmica. Com contextos mas ou menos difíceis. Com especificidades que mudam dia a dia. Com aspectos muito negativos e também com oportunidades. E em que “só” temos de melhorar o que está mal e desenvolver as oportunidades. Com esforço, com determinação e com as nossas próprias as mãos.

Esqueçamos a crise e concentremo-nos no que temos que fazer para evoluir. Crise mesmo é ficar entretido a apreciar e a comentar a dita.

20 janeiro 2006

Palpites aéreos …

Ao ver o novo e bonito aeroporto do Porto claramente subutilizado lembrei-me daqueles que dizem:
“Que disparate! Gastou-se uma pipa de massa nesta obra para agora ela estar às moscas. Nem sequer deve dar para pagar a conta da iluminação!”.

Em seguida, pensei que se o novo aeroporto estivesse já com uma elevada percentagem de utilização, esses mesmos diriam:
“Que disparate! Faz-se uma obra deste tamanho que ainda mal começou a funcionar e já está esganada. Neste país não se faz nada a pensar no futuro!”

17 janeiro 2006

Beber ...

O jornal “Público” de 14/01/2006 trazia o resultado de um inquérito aos candidatos à Presidência da República sobre as suas preferências enológicas.

Vejamos:

Cavaco Silva diz que não bebe, não conhece mas, para ele, os vinhos portugueses são os melhores.


Manuel Alegre selecciona um vinho por uma questão principalmente afectiva.


Mário Soares escolhe “Barca Velha”, o mais chique e o mais caro. Reconhece que não é para qualquer um, claro,… mas que é o seu preferido.

Conclusão: Diz-me o que bebes, dir-te-ei quem és!

13 janeiro 2006

Entre caras e olhares



Mil vezes apontei as duas caras que tudo tem.
Entre sonhar e viver, entre sorrir e chorar, entre terra e mar.

Mil vezes hesitei.
Entre claro e escuro, entre dever e querer, entre cara e coroa, entre entender e julgar.

E, no fundo, não me chega um dos lados abraçar. E, contudo, não consigo a ambos alcançar.

E o meu mundo é incerto, sempre em vias de determinar qual a cara que menos dói, qual a dor que melhor faz.

E, então, vejo-o de perfil, procurando um equilíbrio lograr, quando afinal dos dois nada chega a brilhar.

Ou imagino-o a rodar. Alternadamente as duas faces me ferem os olhos, a faiscar, com as imagens por focar

E por certo, por certo, por trás de um lado, há outro. E é sem dúvida estúpido, querer todos os lados mirar.

Mas muito menos lógico é este louco rodar, continuamente largando a face que se ia agarrar.

E, muito mais triste, é este sabor a faltar, porque a primeira beleza está em dois lados in pares.

12 janeiro 2006

O saxofone no dia-a-dia

Conheço pessoas que só conseguem ter ritmo quando estão atrasadas. Que só se conseguem levantar da cama quando já passou a hora limite e, desta forma, começam o dia já atrapalhados com o relógio.

Conheço pessoas que têm uma capacidade incrível de fazer tudo na ponta final. Nem que seja com directas. Em que a adrenalina do “tem que ser, agora ou nunca”, é o que lhes alimenta a capacidade de realização. Em que a angústia da falha eminente é o principal factor mobilizador.

E mais…, ou pior! Conheço pessoas que gostam de ser assim e têm gozo em passar por esses apertos. É muito mais emocionante atravessar uma corda sem rede por baixo ou andar de moto sem capacete. Não se pode mesmo falhar! E é sem dúvida notável conseguir o “quase-impossível”.

Por vezes, “pegar no saxofone” e improvisar pode dar um resultado mais interessante do que o de muitas horas de estudo de partitura. Também tenho claras na memória situações em que a autoconfiança, quanto à capacidade de agarrar “saxofone” e andar para a frente, me permitiu sair de sérios apuros, quando algo de imprevisto ocorreu.

Agora, o que me parece absolutamente desnecessário é entrar em apuros quando um bocadinho de auto-disciplina seria suficiente para os evitar como, por exemplo, simplesmente acordar quinze minutos mais cedo. Viveríamos num país muito melhor se guardassemos o saxofone só mesmo para as necessidades.

10 janeiro 2006

Quantas horas de que trabalho?

Os Espanhóis estão a procurar trabalhar menos tempo… e mais. Um livro branco recentemente apresentado pelo governo espanhol diz aquilo que poucos querem ouvir, mas que quem estiver minimamente atento já o adivinharia. Que uma grande parte do tempo das longas maratonas diárias passado nas empresas pelos seus diligentes colaboradores… é tempo desperdiçado. Que alguns dos sectores e empresas com maior produtividade são precisamente aqueles que têm por norma as pessoas não prolongarem excessivamente a sua permanência.

E, aqui, reside a grande questão, não específica de Espanha. Permanecer dentro das quatro paredes dos escritórios, muitas vezes circulando pelos corredores e conversando disto e daquilo, não é equivalente a trabalhar mesmo.

Nos últimos anos criou-se uma cultura do “valor presencial”. Quem sair um dia à hora normal é malandro e pouco empenhado. Quem sair frequentemente à hora de já estar a terminar o jantar, merece a coroa de louros pela dedicação, independentemente dos resultados. Hipocrisia e cultura de fachada. É mil vezes mais importante quem “dá o litro” das 9h às 18h, do que quem se arrasta de porta em porta e se perde em reuniões mal conduzidas, erráticas e/ou divertidas. Ignora-se que muitas funções, quando realizadas a fundo, podem deixar o trabalhador extenuado no final do horário normal e que é preferível encerrar para recomeçar o dia seguinte a 100%, do que ficar em socialização distraindo aqueles que estão mesmo a produzir.

Sendo o tempo um bem dos mais preciosos e o custo das horas do pessoal uma das rubricas mais pesadas de muitas contas de exploração, é extremamente curioso como muitas organizações contemporizam e, até mesmo, promovem a importância das horas de simples permanência.

08 janeiro 2006

Viagem só de quem erra



Enquanto avança, enquanto sobe, o viajante abraça a montanha.

Avalia a altura que sob os seus pés escoa. Aprecia os panoramas, que em ângulos secretos lhe chegam. Ziguezagueia em caprichos que tenta adivinhar. E por vezes desce para adiante recuperar. E suspende a subida, para mais à frente relançar.

Difícil imaginar melhor brinquedo, exercício mental mais salutar.

Mas o topo é terrível! A panorâmica de 360º é um vazio, uma intimidade violada. Já nada se espera, já nada se avalia. Todos os sentidos se congelam numa expectativa encerrada. O ar é tão opressivo, e tão só, que não se aguenta muito tempo. E, como não há outro sítio para onde ir, recua-se pela encosta.

A altura já não se mede, as vistas não se renovam. Ao que se junta um certo travo de marinheiro, que após um oceano atravessar, regressa pelo mesmo caminho porque não encontrou porto onde o barco arrimar.

No fim, o balanço incapaz: entre o gozo da subida, a crueza do topo e o amargo do regresso.

E há que recomeçar, nova montanha procurar. E inconsciente acreditar que esta terá no topo um lugar onde é bom estar. Porque a sua encosta será infinita!

06 janeiro 2006

Fogo de artifício

É a expressão que me ocorre para classificar a polémica criada à volta da entrada da Iberdrola na EDP. E é típico. Por isto ou por aquilo, um assunto salta para a passadeira da actualidade e toda a gente dispara e comenta.

É como se vivêssemos rodeados de rastilhos que se vão acendendo um pouco ao calha e provocando cada qual a sua explosãozinha.

A pena é que dentro de poucas semanas já “ninguém” falará do assunto e, seguramente, novo rastilho será ateado para voltar a encher as primeiras páginas dos jornais e de telejornais.

É pena que não se faça um balanço a frio dos anteriores “espectáculos” que já saíram da dita passadeira. Como se, afinal, não fossem assim tão importantes ou como se tivessem sido efectivamente “resolvidos”.

É pena que assuntos relevantes e de importância crucial para o país sejam abordados somente a quente sob um cenário de fogo de artificio.

É pena que, na maior parte das vezes, não se consiga vislumbrar uma Política (P maiúsculo!) consistente, e com alguma estratégia a prazo, que esteja, bem ou mal, por trás dos factos questionados.

Os problemas de base estão cá todos os dias e têm que ser assumidos e enfrentados a frio com serenidade e determinação. Só assim deixaremos de viver nesta espécie de campo minado.

Seria também muito bom que se falasse de factos concretos com rigor e com conhecimento de causa. Que a comunicação social deixasse de ser palco para lançadores de foguetes, prontos para todo o serviço, que não têm nenhum valor acrescentado e que se limitem a adicionar uns estrondos mais à girândola.

Isto é subdesenvolvimento e daquele que não se mede pelo PIB mas que impede o crescimento do PIB.

04 janeiro 2006

Ainda sobre a Energia

Depois do texto anterior A energia que irá mover o mundo , acrescento estes pequenos factos recentes que me parecem alinhar bem com o texto inicial.

A Rússia vendia gás natural à Ucrânia a preço de “amigo”. Depois da revolução laranja do ano passado, a Ucrânia perdeu o estatuto de “amigo”.

A Rússia decidiu mudar de tarifa e passar a aplicar o preço de “cliente”, que é quatro vezes superior ao preço de “amigo”.

A Ucrânia não aceitou e a Rússia fechou a torneira do gás à Ucrânia. Mas o gás russo que vem para a Europa atravessa a Ucrânia. Vários países europeus sentirem redução de fornecimentos em 2/1/2006.

A Rússia tentou parecer séria e restabeleceu os fornecimentos em menos de 48 horas. Um espaço de tempo muito curto mas que foi suficiente para a Europa, que recebe 25% do seu gás da Rússia, se mostrar muito preocupada, tão preocupada quanto expectante.

Não se sabe bem se a Rússia que toma estas decisões é o Kremlin ou a empresa pública Gazprom.

Gerard Schroeder recém saído do governo alemão, dá um abraço a V. Puttin e assume a liderança de uma empresa criada para construir um gasoduto marítimo directo entre a Rússia e a Alemanha, evitando os chatos dos países que estão no meio….

Continuemos expectantes a e a tentar ver este como isto mexe... e onde iremos parar.. aquecendo ou arrefecendo...

01 janeiro 2006

E ainda Chaplin...



Para começar o ano, acho que não ficará mal um excerto do famoso discurso final de "O Grande Ditador"...

Queremos todos ajudar-nos uns aos outros. Os seres humanos são assim. Queremos viver a felicidade dos outros e não a sua infelicidade. Não queremos odiar nem desprezar ninguém. Neste mundo há lugar para toda a gente. E a boa terra é rica e pode prover às necessidades de todos.

O caminho da vida pode ser livre e belo, mas desviámo-nos do caminho. A cupidez envenenou a alma humana, ergueu no mundo barreiras de ódio, fez-nos marchar a passo de ganso para a desgraça e a carnificina. Descobrimos a velocidade, mas prendemo-nos demasiado a ela. A máquina que produz a abundância empobreceu-nos. A nossa ciência tornou-nos cínicos; a nossa inteligência, cruéis e impiedosos. Pensamos de mais e sentimos de menos. Precisamos mais de humanidade que de máquinas. Se temos necessidade de inteligência, temos ainda mais necessidade de bondade e doçura. Sem estas qualidades, a vida será violenta e tudo estará perdido.

O avião e a rádio aproximaram-nos. A própria natureza destes inventos é um apelo à fraternidade universal, à união de todos. Neste momento, a minha voz alcança milhões de pessoas através do mundo, milhões de homens sem esperança, de mulheres, de crianças, vítimas dum sistema que leva os homens a torturar e a prender pessoas inocentes. Àqueles que podem ouvir-me, digo: Não desesperem. A desgraça que nos oprime não provém senão da cupidez, do azedume dos homens que têm receio de ver a humanidade progredir.
[…]

Hannah, estás a ouvir-me? Onde te encontres, levanta os olhos! Vês, Hannah? O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos a sair das trevas para a luz! Vamos entrar num mundo novo - um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergues os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Ergue os olhos, Hannah! Ergue os olhos!