31 maio 2005

Não foi dia de festa

No dia 4 de Novembro de 2004, pouco dias depois da assinatura da Constituição Europeia em Roma, o Jornal Público publicou uma carta minha, truncada, sobre o assunto. Transcrevo o original agora. Os franceses não estragaram a festa. Já não havia festa nenhuma...
-------------
Poderia ter sido dia de festa mas, para mim, não foi. Assim como não terá sido, para uma esmagadora maioria de Europeus, a assinatura da primeira constituição Europeia. E não foi porque não vi escrito claro e a letra grossa, num texto simples, aquilo que efectivamente é, ou se quer que venha a ser, uma Europa, reconhecida como sua desde Andaluzes a Lapões e de Gregos a Irlandeses. Se essa definição existisse, deveria ter sido impressa e distribuída junto com os jornais do dia para que cada Europeu a conhecesse e reconhecesse. Essa declaração de princípios não poderia obviamente ter saído do mandato de um Príncipe D’Estaing que, logo de entrada, fez questão fulcral em afirmar que o reconhecimento da alta importância da sua missão teria que ter correspondência com a sua remuneração e demais mordomias.

Ao comum dos Europeus interessa relativamente pouco saber como se vai resolver o problema da transumância do Parlamento Europeu entre Bruxelas e Estrasburgo e demais tricas palacianas. Interessará muito mais compreender e identificar os valores básicos sobre os quais a Europa será construída e consolidada. O resto é acessório e decorrerá naturalmente.

Se esses valores existissem e claros, assuntos como a adesão da Turquia e o caso Buttiglione não levantariam tantas dúvidas e controvérsias. Seria simplesmente: está de acordo com os princípios ou não?

Na polémica sobre o candidato a comissário italiano, acho que se misturou a liberdade de opiniões e convicções com o enquadramento numa função politica executiva. Trata-se de uma questão de coerência e do que se exige a um político executivo. Se o que se lhe pede é unicamente ser um gestor de conjuntura amorfo, ele não necessita de acreditar em nada. Se, em vez disso, se exige visão, iniciativa e convicção, não me parece que se possa pedir a um pacifista e objector de consciência que defina os planos para uma intervenção militar.

Não deixa de ser curioso que surjam reacções contrárias à ratificação da constituição tanto dos tradicionais resistentes ingleses como de alguns sectores franceses. Estes provavelmente por não reconhecerem no texto “uma certa ideia da Europa à imagem da sua França”. Felizmente ou infelizmente esta Europa é complexa e não tem a simplicidade dos USA que facilmente se mobilizam em torno de um líder básico, misto de cruzado e cowboy. Esta nossa diversidade dá trabalho mas é também seguramente uma fonte de riqueza.

É pena que o debate sobre a ratificação que se perspectiva venha a ser, uma vez mais, feito pela rama e não pela raiz e em que os líderes do rebanho irão demagogicamente procurar arregimentar as suas rezes para o seu não ou para o seu sim.

30 maio 2005

Informação limitada, muita ou demais?

É frequente ouvirmos dizer que vivemos numa sociedade “mediatizada”, em que os “média” têm um enorme poder, que condicionam fortemente a informação que nos chega e, consequentemente, a nossa visão do mundo. Embora, em parte, isso seja verdade, acho que essa perspectiva deve ser um pouco matizada.

Em primeiro lugar, hoje dispomos, ao alcance de uns cliques, de acesso a um universo de dados (informação?) incomparavelmente superior ao que tínhamos há uma dúzia de anos. Para entender o que se passa, nada melhor do que ler o que os americanos dizem dos franceses e vice-versa e, já agora, o que os espanhóis não dizem de Portugal. No dia 24/05, depois da revelação dos 6,83%, o Le Soir belga e o Le Monde francês falam do deficit português e, curiosamente, o Cinco Dias espanhol fala só do deficit....italiano. Se eu procurar a sério e quiser mesmo estar informado, tenho muito mais facilidade em consegui-lo agora do que no passado.

Em segundo lugar, a enorme facilidade com que se coloca e acede a informação na Internet poderá pôr em causa o valor da palavra escrita. Existem, e em várias línguas, expressões que consagram a credibilidade dos livros e da escrita. Exemplo: “isso não vem nos livros”; “o que ele diz não se escreve”, “to act by the book”, etc.

No entanto, se eu escrever neste blogue que a obra Os Lusíadas foi escrita por mim em 1991, não será impossível que alguém encontre esta referência, escrita, ao pesquisar “Lusíadas” num motor de busca. É um caso limite e caricato mas, de facto, podemos encontrar muita asneira que nos apanhe distraídos. Tendemos a acreditar no que vemos escrito com alguma ligeireza.

Se pensarmos na situação actual da palavra impressa, cada publicação tem autor e editor claramente identificados e responsabilizados. Ao “pesar” um livro na livraria, faz-se alguma avaliação, obviamente subjectiva. Não os podemos comprar todos e, por isso, somos naturalmente selectivos. O mesmo cuidado não temos, ou não necessitamos de ter, quando vamos ler as referências que saem num motor de busca. É tudo muito mais rápido e mais simples. Neste raciocínio, já nem questiono que critérios de ordenação terá cada motor de busca, sabendo que a primeira meia dúzia de referências tem muito maior probabilidades de ser consultada do que as últimas.

Apesar de tudo, é melhor ficar perdido em muitas entradas, incluindo lixo, do que ler um único jornal. Talvez não estejamos é ainda habituados a lidar com esta dose excessiva de coisas escritas que, além de simplificar, também complica. Talvez nos esqueçamos que há muitas coisas que se escrevem e que não se lêem.

29 maio 2005

Projectos em Auschwitz

Imaginemos um cliente que tem um problema para o qual não existe solução já realizada. Há um fornecedor criativo que “vende a ideia”. Tem que convencer o cliente a comprar o que ainda não existe. Este pede garantias de desempenho. A encomenda é passada. A realização tem percalços. A obra não atinge os resultados pretendidos nem no prazo nem na função. O cliente pressiona o fornecedor. Este argumenta que não lhe deram as condições necessárias. O sistema tem problemas de garantia. O cliente responsabiliza o fornecedor. Este alega má e excessiva utilização do equipamento.

Este cenário não é especialmente particular e com certeza que muitos já viveram situações análogas. O que o torna particular é o facto de a necessidade em questão ser o queimar o maior número de cadáveres, de assassinados, da forma mais eficaz possível. E que cumprir o desempenho contratual seja medido em queimar 1440 ou 1000 unidades por dia em cada forno. E que, na contagem dessas unidades, se tenha que ponderar se uma mulher de 50 kg é equivalente a duas crianças de 15 kg ou não.

Tudo isto está no livro “Os Crematórios de Auschwitz” de Jean-Claude Pressac, 1993 (minha edição: Editorial Noticias ISBN 972-46-0640-6). Este senhor francês começou por ser um “revisionista”. Daqueles que acham que o holocausto foi pouco mais do que uma ficção e que ficam todos contentes se virem reconhecido que em Auschwitz não morreram 4 milhões mas apenas uns meros milhão e meio! Ao longo do seu processo de investigação, este senhor, mudou de ideias e encontrou uma base de dados impressionante: os arquivos da Direcção de Construções das SS. Enquanto os arquivos políticos foram cuidadosamente destruídos, estes não tiveram o mesmo destino.

Uma das surpresas que se encontra é a de que a “máquina” não funcionava tão perfeitamente como se presume. Um dos fornos, o IV, não funcionou bem mais do que 2 semanas e foi abandonado após apenas 2 meses de utilização. Alguns funcionaram sempre com problemas crónicos.

O que é, no entanto, assustador é acompanhar o desenvolvimento destes projectos, como se se tratasse de algo trivial e ver as argumentações do tipo de “se a chaminé rachou, é por queimaram mais gente do que o que estava projectado” e “o número de pessoas não é o dado importante, temos que considerar é a massa total de cadáveres”.

26 maio 2005

Essa palavra saudade

Saiu, há uns tempos, um top mundial das palavras mais difíceis de traduzir. O facto de a nossa “saudade” aparece bastante bem colocada, proporciona uma reflexão sobre o valor que terá, positivo ou negativo, revermo-nos colectivamente nessa palavra.

Se considerarmos “saudade = lamentar a ausência; nostalgia do passado”, teremos aquela noção passiva e derrotista mas, ao mesmo tempo, relativamente fácil de traduzir. A dificuldade da tradução não virá da peculiaridade da palavra em si mas da complexidade do conceito associado.

Na minha opinião, a saudade está associada a uma inquietação do “só estou bem onde não estou” e a um sentimento de incompleto do “há sempre algo que falta”. Pode, por isso, desenvolver uma atitude de introspecção, interrogação e acção ricas e não necessariamente resignadas. Faz sentido falar em saudades do futuro?

Arriscando um pouco mais e tentando desenvolver uma definição para a essa saudade: Não somos de “cá”, não pertencemos ao “agora” neste lugar. A saudade é a dor cravada de acreditar que, noutro lugar, um outro tempo nos espera. Sempre haverá uma terra prometida, onde eu daqui saiba como lá estar. E, no fundo, inconsciente, espero tão cedo lá não vir a chegar. Porque aí, nesse tempo, não saberia como ficar e, novamente, outro lugar teria que projectar. No fim, não somos de nada, ou este somos não existe. No fim, entre ser, tempo e nada, renascerá um doce amargo engano, de em tudo ter acreditado e de nada ter entendido.

Agora traduzam lá....

24 maio 2005

A História codificada

O sucesso do “Código da Vinci” e a controvérsia associada convidam a colocar uma série de questões.

Em primeiro lugar, o seu êxito é, em muito, devido à forma como está “contado” e como gere o desenrolar da acção puxando o leitor de capítulo em capítulo. Um estilo que, para o final, chega a pecar por demasiado repetitivo. A sua passagem para filme seria muito mais interessante como série de episódios do que como clássica longa-metragem.

Quanto ao conteúdo, ele é, para muitos, extremamente apelativo: A história oficial está “mal contada”, os “poderosos” manipulam a informação que nos chega, há muita coisa à nossa volta, aparentemente banal, mas cheia significado oculto. Para muitos é irresistível a atracção pelo contra-poder e pela contradição do conhecimento comum. Se se provasse que o assassínio de J.F. Kennedy em 1963 foi um acto isolado, quantos pessoas continuariam a não acreditar e a insistir emocionalmente na teoria da conspiração?

Um perigo associado a este e a todos os romances que visitam factos/personagens históricos é a falta de rigor e a potencial mistura que ficará nos leitores entre a ficção e a realidade. Para quantos milhares não terá ficado como ponto assente que Leonardo foi realmente um grão-mestre da ordem do Priorado do Sião? Pobre da Vinci! Compete aos leitores serem rigorosos e prudentes nas suas leituras mas, por outro lado, é muito mais interessante ler um romance histórico do que um compêndio de História.

Por outro lado, também, quantos milhares de portugueses não terão a ideia de que Viriato foi um pastor tosco que atirava pedregulhos aos romanos, do cimo de um penedo da Estrela? Pobre Viriato! São ainda inúmeros os exemplos de histórias oficiais com dados deliberadamente omitidos ou deturpados. Daí que não serão tanto de estranhar as fortes apetências de alguns pelas “contra-histórias”.

Voltando ao conteúdo do romance, gostaria de apontar dois factos. O primeiro é que o culto pela divindade no feminino não é algo assim tão apagado da espiritualidade católica tal como é vivida. Se formos inquirir os crentes sobre os símbolos principais da sua fé, creio que as “Nossa-senhoras” são objecto de uma devoção que supera todos os santos e santíssima trindade juntos.
Outro aspecto é a ausência de Portugal naquela macedónia de símbolos e lendas esotéricas. Vejamos. Os Templários foram extintos em 1312 para o Rei Francês Filipe o Belo limpar a sua conta-corrente e, se possível, se apropriar das suas riquezas fabulosas. As riquezas nunca apareceram e nasceu o mito do tesouro dos Templários: para onde foi e se era material ou de conhecimento.
Em Portugal, D. Dinis, ”o plantador de naus a haver”, limitou-se a mudar-lhes o nome para Ordem de Cristo. Os descobrimentos são impulsionados pelo Infante D. Henrique, Grão-mestre da Ordem de Cristo. Não é difícil especular que as riquezas e, principalmente, os conhecimentos dos Templários tenham estado por trás do empreendimento. A Cruz de Cristo, derivada da dos templários, decorou as velas das caravelas e está hoje, por exemplo, nos aviões da nossa Força Aérea. Que história secreta estará escrita na fabulosa janela da sala do capítulo do convento de Cristo em Tomar?

23 maio 2005

Foi você que pediu uma agressão?

Há uma passagem inesquecível, para mim, no “Cem anos de solidão” de Gabriel Garcia Marquez, quando o coronel Aureliano Buendia, cansado de travar inúmeras guerras e desencadear incontáveis revoluções, decide fazer a paz. Aí descobre que é muito fácil começar uma guerra mas que é extraordinariamente difícil terminá-la de forma honrada para ambas as partes.

Penso frequentemente nesta passagem antes de “comprar uma guerra”. Não significa que a “guerra” tenha que ser sempre evitada a todo o custo, nem se trata de ser indeciso ou pouco determinado. Significa que convém ter presente que talvez não seja possível, após começar a guerra, encerrá-la fácil ou honrosamente.

Vem isto a propósito da actual utilização banalizada do vocábulo “agressão”. Os objectivos não devem ser claros e ambiciosos mas sim “agressivos”. As estratégias não devem ser esclarecidas e consequentes mas sim “agressivas”. As posturas não devem ser activas e determinadas mas sim “agressivas”. E por aí fora...

Dá um pouco a ideia de que quando não se sabe muito bem o que fazer, desatar à patada é sempre uma boa opção. É politicamente correcto e, mesmo se se perder, não se pode dizer que não se lutou.

Talvez seja melhor ir à luta do que ficar parado a apanhar. No entanto, um mundo em que todos dão coices, é um mundo mesquinho em que pouco se constrói e muito se destrói. Além disso, brigões sem visão não costumam ficar para a história.

22 maio 2005

Portugal hoje, a certeza de existir

Tive a experiência de viver durante alguns anos fora de Portugal e contacto frequentemente com realidades externas. Habituei-me a ver Portugal de dentro para fora e de fora para dentro. A caracterização, complexa, de Portugal é um assunto que me apaixona e resolvi ler o “Portugal Hoje – O medo de Existir” de José Gil. Apesar de algumas ideias e considerações com interesse, não aderi ao livro.

A “personalidade” portuguesa é fruto de muitos factores naturais e históricos. Atribuir tão directamente a mentalidade actual à herança salazarista, como o autor faz, é redutor. Só a título de exemplo, a escrita de Eça, anterior a desse período, retrata com muita fineza e pertinência vários aspectos característicos do Português e de Portugal que permanecem actuais. É necessário ir mais longe: a influência da riqueza fácil dos descobrimentos; a transição do D João II empreendedor para D Manuel I gastador; a matriz religiosa; a romanização; a arabização e, inclusive, a geografia do país.

O livro tem demasiados “sempres” e “nuncas” para ser exacto. Um funcionário público lisboeta tem um temperamento muito diferente dum viticultor transmontano. Muitas, para não dizer todas, as peculiaridades referidas avulsas podem ser, individualmente, encontradas em gentes doutros povos. Existe seguramente um traço característico português mas a sua definição correcta necessita de maior rigor científico, de estudos sérios comparativos e duma base estatística adequada. Não basta referir que “uma vez um visitante disse...”. Também não se pode comparar os portugueses com uma elite parisiense, por exemplo. Seria um pouco como, num dado país, presumir que todos os portugueses são trolhas ou padeiros por ser esse o grupo dominante dos imigrantes aí estabelecidos.

A questão recorrente de que Portugal não tem filósofos não recolhe o meu acordo. Só para referir um nome, Fernando Pessoa foi um filósofo espantoso, com uma forma de expressão particular e muito interessante.

Portugal mudou muito nos últimos, digamos, 12 anos. Considerar que “o horizonte espiritual do povo inteiro [...] com excepção de certos artistas e homens de cultura continua a ser o de antigamente”, é um pretensiosismo elitista desajustado da realidade. A expressão irónica “à antiga portuguesa” é hoje usada em variadas circunstâncias para qualificar situações com uma dinâmica e um sentido de compromisso que já não se aceitam. A “responsabilidade” para algumas mudanças está precisamente em sermos menos “ilhéus isolados”, uma vertente da tal globalização maldita pelo autor.

Temos dificuldades em definir a nossa identidade. Não temos, no entanto, dúvidas de que ela existe. Temos a certeza de existir. Temos aspectos mesquinhos a corrigir e temos qualidades a identificar e a explorar. Temos curiosidade por sabermos quem somos, como somos, daí o sucesso do livro. E isso é já positivo e original para um povo que não tem filosofia.

Um dos nossos pontos negativos é a ligeireza na auto-avaliação. Talvez uma face da famosa “não inscrição”.

19 maio 2005

Ridículas paradas

Ao ver a fotografia de Putin e Bush, todos bonitos, a avançar e a acenar no automóvel clássico, pensei que estariam a inaugurar um parque temático. Mas não. Fazia parte das comemorações do fim da II Guerra Mundial. Nestas comemorações há alguma coisa desajustada.

Independentemente de na sua origem directa, ter estado uma figura perigosa e sinistra, a II Guerra Mundial não foi uma guerra dos bons contra os maus. A Rússia? Foi dos maus no início e dos bons no fim? Como outras, esta guerra foi “apenas” um conflito de interesses ocorrido numa altura em que os exércitos eram os argumentos geo-estratégicos de primeira linha. Obviamente que nem é necessário perguntarem-me qual o “interesse” que eu prefiro.

Também de referir que os EUA não entrarem na guerra para ajudar a Europa, nem por princípios éticos ou morais. Entraram em defesa dos seus próprios interesses políticos e económicos. Como prenda, no final, receberam uma mina de ouro sem fundo. Na conferência de Breton Woods, ficou decidido que a moeda mundial de referência seria o dólar americano e que eles poderiam imprimir tantos quantos quisessem. Durou formalmente até 1973.

Parece-me patético que 60 anos depois ainda se fale de vitórias. Que se ignore que houve barbárie de ambos os lados e que, só por exemplo, o bombardeamento de alvos exclusivamente civis para desmoralizar o adversário foi Roterdão e também foi Colónia; foi Londres e também foi Dresden.

Mais grave. Parece-me ainda não esclarecido o que foi colectivamente o nazismo. Não é um louco sozinho que arrasta um país instruído. Durante anos funcionou uma grande máquina tenebrosa. Essa máquina teve a adesão activa, efciente e dedicada de muita e muita gente da Europa das luzes.

É assustador que 60 anos depois seja necessário legislar para proibir partidos xenófobos e manifestações neo-nazis. E que essas simpatias não se resumam só a jovens zaragateiros. Não se pode dizer que seja por falta de informação. Quanto mais não seja pelo canal, deformado é certo, dos filmes, toda a gente viu campos de concentração e a sua brutalidade insana.

Visitei Bergen-Belsen. Pouco há de material. Somente um ar de chumbo que nos sufoca com milhentas interrogações.

Por tudo isto, estas comemorações deviam centrar-se nas interrogações que permanecem e não em ridículas paradas.

17 maio 2005

Sinais exteriores de fé

Neste momento de transição é natural questionarmo-nos sobre o papel que o novo Papa e o Vaticano em geral poderão desempenhar no mundo actual. Em primeiro lugar, esclareço que sou agnóstico, criado em ambiente culturalmente católico. E isto é impossível de ignorar. Por muito que, por exemplo, quisesse agora converter-me ao hinduísmo, jamais o sentiria e entenderia da mesma forma que alguém criado nesse meio. Dentro desta matriz moral e ética, tenho sérias dúvidas quanto ao enquadramento do Vaticano. Exemplos: a opulência ostentada e as finanças opacas.
Qual o grau de liberdade do Papa? Age de acordo com a sua fé e coerente com a doutrina, ou é refém da teia de interesses políticos e económicos globais? Quando se refere a grande qualidade de peregrino de João Paulo II, recordo um caso próximo de nós que foi a sua visita a Timor-Leste ocupado pela Indonésia. Quando todos os portugueses e timorenses esperavam uma simples palavra de denúncia da tragédia em curso, o seu silêncio foi atroz e inexplicável. O que teria sido preferível? Ter criticado abertamente no Vaticano ou ter ido a Timor sem falar?
Dentro dos nomes potenciais para o novo papa, havia um, para mim, que se destacava claramente pela negativa: Joseph Ratzinger. A sua acção recente tinha sido redutora e autoritária. Mais "correctora" do que "inspiradora"; mais defensora da cidadela ameaçada do que impulsionadora do seu desenvolvimento. Mais preocupada em impor a toda a sociedade os seus princípios do que na promoção e adopção natural dos mesmos; mais centrada na disciplina do rebanho do que no desenvolvimento espiritual do homem.
Quando o Vaticano discute a "abertura" de permitir a comunhão aos divorciados "não culpados", mostra que está fora do tempo (...). Quase apetece ironizar e perguntar se não irá criar um tribunal próprio para julgar os cônjuges e condenar/absolver os culpados/inocentes e, já agora, certificar os cristãos puros como aqueles cuja actividade sexual é feita única e exclusivamente na perspectiva da procriação.
Como pode aconselhar e entender a família, se recusa a mulher como ser humano de pleno direito e os seus clérigos estão proibidos de a constituir e, por isso, de a conhecer?
De uma forma ou doutra, com maior ou menor intensidade, todos temos símbolos espirituais que nos escoram nas contrariedades, onde nos refugiamos nas incertezas e que nos abrem um horizonte para lá do evidente e trivial. No entanto, nas demonstrações de "popularidade" vistas em torno da figura do Papa não consigo descortinar mais do que manifestações exteriores de fé baseadas em aparências. Reconheço mais espiritualidade num respirar profundo e nuns segundos de silêncio na colina do Endovélico, num penedo sobre o Douro, frente a um simples castanheiro centenário ou ao fechar um grande livro do que no agitar excitado e frenético de bandeirinhas à passagem do "papamóvel".

A China é outra coisa

A China está nas bocas do mundo e, em particular neste momento, pelo crescimento das suas exportações de têxteis e confecções. Infelizmente, muitas das posições são teóricas e maniqueístas: uns pela abertura contra o proteccionismo; outros pelo proteccionismo contra a liberalização. A realidade não é, nem pode ser, assim a preto e branco. O desenvolvimento mundial necessita de equilíbrio e, para isso, é necessário liberalizar o comércio mundial. No entanto, as diferenças abismais no estádio de desenvolvimento e nos padrões de vida exigem uma abertura controlada. O que deveria estar em discussão seria unicamente a velocidade dessa abertura. Uma reserva de água numa barragem pode ser muito útil se for utilizada de forma controlada e pode provocar uma catástrofe se for despejada num ápice.

Há, no entanto, coisas na China que ultrapassam a simples questão da mão-de-obra barata e da dimensão.

Por um lado, alguma irracionalidade na utilização de recursos financeiros e materiais. Quando o “resto” do mundo mede e avalia a rentabilidade da aplicação do capital, a China faz investimentos públicos e semi-públicos faraónicos, muitas vezes sem lógica aparente. Quando o “resto” do mundo se interroga sobre a sustentabilidade da utilização dos recursos naturais, a China devora matérias-primas a um ritmo alucinante e sempre crescente.

Outro aspecto é a falta de respeito pela propriedade intelectual. E não se trata só da contrafacção de camisolas e relógios. Chegamos aos automóveis! O governo chinês convidou a SAIC (Shanghai Automotive Industrial Corp) a colaborar com o fabricante estatal Chery. O resultado foi a Chery lançar, e com muito sucesso, um modelo QQ copiado, sem autorização, do Daewoo Matiz/Chevrolet Spark da General Motors, parceira da SAIC. A GM acusou formalmente a Chery mas tratando sempre o assunto com “pinças”, não vá o governo chinês aborrecer-se e condenar a sua presença nesse mercado. E não foi a primeira. A Toyota e a Honda tiveram também problemas de cópia e as suas queixas não tiveram sucesso.

Pela sua forma de encarar os negócios, pela sua politica económica dirigista e pelo seu gigantismo, a China joga com regras diferentes das nossas. Muitos de nós gostaríamos de ver o povo chinês com melhores condições de vida mas muito poucos gostaríamos de viver num mundo à imagem da China. Pior, um mundo à imagem da China actual é inaceitável e insustentável.
De referir também que, com a quantidade de dólares que eles estão a acumular, comprados para financiar o consumo insustentado dos USA, bem poderão um dia aportar a Nova Iorque com um navio repleto deles e comprar a cidade inteira...

14 maio 2005

O quiosque do chefe

Num gabinete de arquitectura, o arquitecto-mor extraordinariamente experiente e brilhante tinha o hábito de questionar e validar todos os projectos dos juniores, na fase final. Apontava-lhes os problemas, sugeria melhorias, em suma, garantia que tudo saía bem.

O problema começa quando as alterações se tornam sistemáticas, mesmo para os menos juniores. O chefe tinha sempre que mudar alguma coisa. Às vezes parecia mesmo por simples capricho. A porta passava da esquerda para a direita porque sim. Os arquitectos submissos lá voltavam resignados ao estirador para mudar a porta de sítio, sentindo o seu trabalho mutilado porque essa mudança tinha outras implicações que o chefe não tinha abarcado, nem eles tinham conseguido explicar.

Um dia, um dos arquitectos terminou um projecto, para ele irrepreensível, de um hospital. Tinha pesadelos só de imaginar o momento em que o apresentaria para aprovação ao chefe. Sabia que algo seria mudado e tremia só de imaginar o seu trabalho perfeito adulterado por capricho. Então teve uma ideia brilhante. Incluiu no centro do átrio principal um quiosque de venda de charutos. E lá foi apresentar o projecto ao chefe. Este achou quase tudo muito bem. Só lhe exigiu que retirasse do projecto o quiosque estúpido.

Contaram-me esta anedota há muitos anos mas, sinceramente, acho que ainda merece ser objecto de reflexão. É um estilo de liderança castrador que não dá terreno de desenvolvimento pessoal. Para além do chefe, todos permaneciam eternamente juniores. Não motiva o rigor e a busca da perfeição porque o trabalho nunca é completamente concluído pelo autor. Não delega responsabilidades, não cria autonomia e, evidentemente, sufoca a inovação. E... já imaginaram o problema que seria se o chefe estivesse distraído nesse dia e tivesse trocado o lugar da porta, deixando lá o quiosque!?

Escrita tatuada

“ulaxx lindah...tax mxm mt mt girah na foto,nc t tinha bixtu kom u kabelo axim,fikat mt bm;) Tu ex mxm mt fixe,ex 5*...pr ixu e k eu...loool. E melhr n dixer + nd...xenao inda m enterro,loool(max tu xabex u keu keruh dixer;) Nc + e amanha...loooool,tou anxioxo...u dia bai xer di+ pk n bou ter nenhum texte...loool(e + 1 xena mx e melhr n dixer.loool) fika bm...dwt bjtux****”

O texto acima foi retirado de uma entrada de um blog de adolescentes. Para aqueles que tenham dificuldades de leitura, acrescento a tradução:

“Olá linda… estás mesmo muito muito gira na foto, nunca te tinha visto com o cabelo assim, fica-te muito bem (sorriso). Tu és mesmo muito fixe, és cinco estrelas… por isso é que eu .. (gargalhada). É melhor não dizer mais nada… senão ainda me enterro (gargalhada) (mas tu sabes o que eu quero dizer (sorriso))
Nunca mais é amanhã … (gargalhada), estou ansioso… o dia vai ser demais porque não vou ter nenhum teste... (gargalhada) (e mais uma cena mas é melhor não dizer. (gargalhada))
Fica bem… adoro-te Beijitos ****”

De certa forma, este grafismo é derivado daquela nova estenografia desenvolvida para as mensagens de telemóvel e conversação na Internet (chat). Contudo, representa algo mais do que simplificar e encurtar a expressão escrita.

Cada nova geração, ao assomar, e antes de entrar em cena no teatro dos grandes, sente a necessidade de marcar diferenças. Às vezes essas diferenças são pela alternância: cabelo curto contra comprido; roupa larga contra justa, etc. Outras vezes são pela negação e, no limite, mesmo até pela demolição. Com o tempo, os meios de expressão vão-se banalizando e o seu impacto atenuando. Quem marcou diferença com cabelos à Beatle há 40 anos, terá hoje perto de 60 e, se guardou as repinhas, elas já não chocam ninguém.

Mas, enquanto os cabelos compridos podem ser cortados e os rapados podem crescer, há outras demonstrações, como as tatuagens, que são indeléveis. Não sei se esta forma de escrita deixa marcas pessoais ou até globais. Recordo-me de uma pequena iniciativa dos Amigos da Ortografia Livre (Amol) que nasceu um pouco no mesmo contexto e que não deixou sequelas aos seus membros...

O marcar diferenças é normal e salutar. No entanto, as dificuldades na expressão escrita e leitura são um dos principais problemas das novas gerações. Escrever mal com consciência disso é melhor do que nem sequer escrever... A questão toda, na opinião deste “cota”, é: tenham cuidado com todo o tipo de tatuagens que depois não saem quando já não as queremos!

13 maio 2005

Todas as crianças

Ashemehe. Seguramente que o nome não está correcto. Não tomei nota na altura. Apareceu num programa na TV sobre a Etiópia. As raparigas eram prometidas e “casadas” aos 8 anos, após a puberdade consumavam o casamento, abandonavam a escola, seguia-se a gravidez precoce, por vezes com partos fatais e muitas vezes com sequelas. Saídas alternativas muito poucas. Contado assim parece ser só mais uma das vertentes da muita miséria que existe nesse outro mundo, subdesenvolvido e primitivo, que para alguns não se quer desenvolver e que nos parece distante (felizmente ?).

Ashemehe, e insisto em dar-lhe um nome mesmo que deturpado, era uma rapariga de 12/13 anos. Como muitas outras já “casada” e que via com angústia aproximar-se o momento em que abandonaria os pais e a escola para viver com o “marido” de quem não gostava.

Ashemehe, delicada e inteligente, tinha um par de olhos que brilhava como dois faróis. Falava com segurança e determinação dos seus sonhos e das suas expectativas. Da sua ânsia de aprender e de seguir a escola. Da sua vontade de se desenvolver.

Ashemehe filmada na escola, dividia o olhar entre o quadro em frente, que fitava com empenho e avidez enquanto, de soslaio, interrogava a câmara, janela e passagem para o seu “país das maravilhas” das curiosidades mil.

Na última cena, a mãe insiste para ela ir visitar a casa do “marido”. “Visita” que podia não ter retorno. Lutadora, Ashemehe, luta contra um choro nervoso e resiste. Sai a correr, não se sabe para onde.

Naquele meio rude e primitivo Ashemehe brilhante lembrava-nos que como cantava J. Brel “Todas as crianças são como as nossas”!

Por cá, as notícias importantes andam à volta do desenvolvimento dos relvados dos estádios. Por vezes ouvimos falar de um golpe de estado em África, muitas vezes à sombra de barris de petróleo e com patrocínios muito respeitáveis, como parte das complicações desse continente complexo que tem dificuldade em se desenvolver. Por vezes a notícia é sobre um batel que naufraga no estreito de Gibraltar em que pares de olhos mais ou menos brilhantes em busca de desenvolvimento, se fecham.

Mas ...
Filhos de César, filhos de nada
Todas as crianças são como a tua
O mesmo sorriso, as mesmas lágrimas
Os mesmos sustos, os mesmos suspiros
Filho de burguês, filho de nada
Todas as crianças são como a tua

Somente depois, muito depois ....
(J. Brel)