26 fevereiro 2008

Geografias



Acredito que todos temos limites para tudo: um limite para a paciência, um limite para a resistência e um limite para a criatividade sendo, este último, tantas vezes pateticamente ultrapassado.

Tristes os pobres diabos que balbuciam o que já declamaram, que repetem os acordes que já compuseram, que repassam as cores que já pintaram e que rabiscam linhas o que já escreveram.

Por tudo isto, e pela dificuldade em manter um nível decente de criatividade, tenho um especial carinho por todas as figuras que décadas passadas continuam a criar e a recriar.

Na música popular portuguesa, esse baú de riquezas, dos maiores que a nossa cultura tem, estão dois exemplos. Um deles é o Jorge Palma que 3 décadas depois do excelente “Té Já” sai com o “Voo Nocturno”, que se vendeu e ouviu até à exaustão.

Outro, bastante menos mediático, é o homem que fez mais pela vida e sobrevivência dos instrumentos populares portugueses do que todos os museus e ministros juntos: Júlio Pereira. O seu último albúm, “Geografias”, que descobri recentemente, é uma boa surpresa, mesmo tendo, naturalmente, passado ao lado das “playlists”.

E, só para recordar, caso tenha passado ao lado de alguém: "O Coração Tem Três Pontas" de Dulce Pontes e, como exemplo, "O Meu Porto de Graal"!

24 fevereiro 2008

O preço até era bom...

Ouvi ser referida mais do que uma vez no universo das PME familiares a imagem do “ o tipo não paga, mas, em compensação, o preço que lhe facturei foi bem alto!”. Para um “dono” de empresa sensível a que tão importante como ter um belo resultado de exploração, boas margens, é ter o dinheiro recebido no seu bolso esta anedota diz muito.

Os bancos, nomeadamente americanos, resolveram vender empréstimos a quem tinha dificuldades em pagá-los... a muito bom preço. Um pouco de acordo com o princípio do “quem arrisca, não petisca”. São os “subprime”, ou seja, não há prémio para quem contrata, mas sim um preço forte. E lá foram petiscando entretidos. Quer dizer, acreditando que petiscavam, porque o resultado real desses contratos só poderia ser avaliado no fim, quando o empréstimo fosse completamente reembolsado ao tal preço forte...

Esse excelente negócio cresceu, cresceu, mas com uma alteração do ciclo económico, e toda a gente sabe que a economia tem ciclos, aconteceu o previsível. Esses clientes de risco deixaram de poder pagar. Aquilo que era um bom negócio transformou-se num enorme buraco no sistema financeiro, que embora originário nos EUA, se propaga a nível mundial.

Quando se ouve nas notícias aquele expressão de que os resultados de um banco foram “afectados pela sua exposição à crise dos subprime”, o que isso quer dizer é que directa ou indirectamente esse banco estava a tentar petiscar e ficou “a arder”. Ou seja, o preço era bom, só que os clientes não pagaram. Tenho a certeza que uma série de proprietários de PME que conheço não teriam ficado tão deslumbrados assim com esse negócio, ou, ao menos, nunca se teriam exposto tanto.

19 fevereiro 2008

Lá em cima...

Ouvi recentemente na televisão o Dr. Mário Soares, do alto das suas cátedras, afirmar sabiamente que se tinha ido demasiado longe nas privatizações. Que há coisas que deve ser o Estado a assumir e que não deve passar a interesses privados. É um discurso que agrada a uma larga franja da população de baixo até cima. E, lá em cima, estão os “gestores públicos de carreira” habituados a rodar tranquilamente de cadeira em cadeira nos vários conselhos de administração de empresas públicas e que agora, após privatizações, vêm esse universo cada vez mais reduzido....

Eu concordo plenamente que há estruturas e serviços fundamentais para os quais tem que ser o Estado a definir e a regular. E isso é particularmente verdadeiro em áreas de infra-estruturas ou serviços fundamentais em que não há mercado concorrencial ou em que uma lógica pura de mercado, de curto prazo por exemplo, não é o que interessa ao país. Isso não implica, no entanto, que tenha que ser o Estado a fazer e a gerir, até porque, normalmente, não gere bem e especialmente se não tiver pressão de concorrência.

Vejamos um exemplo: Onde devem ser construídas auto-estradas? Deve ser o governo a decidir, mas realizá-las e explora-las não precisa de ser feito por uma entidade pública. Cabe sim ao governo é legislar e enquadrar actividade, bem enquadrada. Se esse enquadramento não estiver bem feito e o quadro legal for deficiente, será uma festa para os privados e uma desgraça para o Estado que somos todos nós.

Privatizar vendendo simplesmente o capital da empresa pode ser catastrófico, como no caso da rede eléctrica nos EUA, em que uma lógica de retorno de investimento a curto prazo, sem legislação adequada, conduziu a uma falta de fiabilidade terceiro-mundista. Agora, com contratos programa bem definidos, só ficam a perder os tais “gestores públicos”, muitos deles amigos do Dr Soares.

16 fevereiro 2008

Um fato coçado

Há uma coisa que me impressiona fortemente que é ver um fato coçado ser vestido com dignidade. É fácil envergar solenemente um fato novo, catita e de acordo com a moda do momento. É normal um fato velho ser usado com desleixo e sem gosto. Agora, vestir um fato velho no fio, como se fosse novo, completado por uma gravata fina quando se usam largas, ou vice-versa, é daquelas coisas que vai contra a lei natural das coisas.

Ver passar alguém assim, em pose alta e grave, envolvido em farpelas gastas, exigindo delas uma imagem que não podem dar, questiona-me. Qual a pobreza que tal coisa permite: a pobreza material que não deixa ter um novo fato após décadas de serviço do anterior? Ou a pobreza de vista que não detecta a incoerência gritante da sua própria figura? Quero crer no primeiro caso e, nessa suposição, a imagem de quem busca ostentar uma dignidade que manifestamente não alcança, decididamente mexe comigo.

11 fevereiro 2008

Sem adjectivos



Recuemos 25 anos para a primeira metade da década de 80, para fixar duas figuras (como já estava a ficar preocupado com o número de vezes em que arrancava com uma frase do tipo : “Há uns 20 anos atrás...”, agora mudei para 25!).

O primeiro é um barbeiro vindo de uma pequena aldeia de Amares para Lisboa que, saído do nada, em 3 efémeros anos deixa uma marca indelével na música portuguesa. As recriações das suas músicas por terceiros e longos anos depois demonstram claramente a universalidade, a riqueza e a intemporalidade do seu talento. António Variações, é claro.

A segunda figura vem de uma pequena aldeia no sopé sul da serra de Arada e é a solista do “Grupo de Cantares de Manhouce”, um dos poucos exemplos, dentro do universo folclórico da altura, que toma o partido da autenticidade e do rigor na divulgação da música tradicional. Na altura eu (sem cantar!!!) trilhava caminhos paralelos e conheci-a num evento organizado lá pela nossa associação, em que, desculpem-me o lirismo barato, a sua voz parecia timbrada pelo fluir dos regatos que descem dos montes. Presenteava-nos com o original do “Tareio”, com aquela do “Quem vai ao Sr da Pedra, vai ao céu e torna a vir...” e outras mais. A seguir, começa a ser vista aqui e acolá, tendo a sua primeira aparição mais mediática sido na “pronúncia do Norte” dos GNR. Isabel Silvestre de seu nome.

Em 94, 10 anos após a morte do criador sai o álbum tributo “As canções do António” em que essas duas figuras se encontram. Na altura eu estava ausente de Portugal e só o detectei bastante mais tarde quando já tinha desaparecido das lojas. Nunca procurei e perguntei tanto por um CD. Finalmente reapareceu e já não me escapou. Dentro dessa colectânea está o “Estou além”, interpretado pela Isabel Silvestre. Não vale a pena ir à procura de adjectivos: basta ouvir.
Fotos Googleadas sem referência de origem

09 fevereiro 2008

Nem ao Diabo lembra


Por vezes custa a acreditar que certos disparates sejam deste mundo. Não é que o arcebispo de Cantuária, líder da igreja anglicana, vem defender o direito de, no Reino Unido, os muçulmanos poderem, em certos aspectos, optar pela lei islâmica, em vez da “lei geral”? Invoca ele que, naturalmente, alguns muçulmanos não se revêem no sistema legal do país. Não dá para entender que uma coisa são as convicções e a fé numa perspectiva individual e, aí, a sociedade europeia tem abertura total e nem vale a pena invocar a questão da (falta de) reciprocidade e outra coisa é o enquadramento social, especialmente os direitos humanos e muito particularmente a condição feminina, só para dar um exemplo?
É inaceitável que possam existir uns “mini-Irão” dentro do espaço europeu. Pode-se dizer que a Sharia (lei islâmica) seria só aplicada nalguns pontos, mas basta começar. Estão a ver uma mulher adúltera a ser delapidada numa praça de Londres, “como manda a lei”, com o devido cuidado para as pedras não serem muito grandes, para não matarem de imediato, nem serem demasiado pequenas a ponto de não magoarem? Ou a ser reivindicado o “direito cultural” à excisão feminina? Ou a poligamia? Ou o divórcio sem acordo e sem justa causa segundo os “nossos” critérios e sem a mínima protecção para a mulher? Eu não estou a ver e não quero ver! Pode a Europa, na sua diversidade, ter problemas de identidade, mas tem princípios básicos sobre os quais não há nem pode haver dúvidas.

Se o objectivo dessa posição do arcebispo é criar condições para uma melhor integração das minorias, o efeito é declaradamente o oposto.

07 fevereiro 2008

Um caso de saúde pública ?

sSurpreende-me a reacção agressiva evidenciada por alguns fumadores a propósito da nova de lei do tabaco. Recordo-me da proibição do fumo nos aviões, hoje assumida e inquestionada, em que, na altura, muitos “fazedores de opinião” dispararam de forma idêntica contra esse “cerco e perseguição abusivos” de que estavam a ser alvos. Acredito que, em certos momentos, puxar por um cigarro proporcione um enorme prazer e ser proibido fazê-lo custará muito. Acredito também que ver a percepção social desse prazer mudar do distinto para o condenável seja desconfortável. Porque é que os grandes centros comerciais, com todos os meios possíveis disponíveis, ignoraram os fumadores na aplicação da nova lei? Por responsabilidade social ou por simples irrelevância comercial? Prazeres egoístas à parte, para gente responsável não deveria haver dúvidas sobre um conjunto de factos claros.

Se há falta de clareza na regulamentação da legislação, discuta-se e resolva-se esse aspecto concreto mas sem, por isso, colocar em causa o fundamento da mesma.
Um local “fumador” só pode ser aceitável se não houver serviços aí prestados. Por que motivos um empregado de um restaurante há-de ser obrigado a fumar passivamente? Só porque os clientes são todos fumadores? Não tem direito a um local de trabalho saudável?
Só falta o disparate de ser proibido fumar na sua própria casa? Porque não, em casos extremos, se isso for necessário para proteger os menores que lá habitem? Da minha experiência pessoal, o registo de comportamento dos grandes fumadores antes das restrições coercivas é, em geral, bastante egoísta.

O problema de fundo não é de liberdade, mas sim de dependência. Se um fumador não suporta passar tantas horas sem fumar, é um problema a resolver de alguma forma, mas nunca menosprezando a liberdade que terceiros têm de regressar diariamente a casa sem a roupa empestada de fumo. Para concluir, uma pequena provocação sobre limitações e dependências: há locais de trabalho em que o álcool não é permitido. Que resposta se poderá dar aos dependentes etílicos que não se sentem bem sem um copito ao almoço? Respeitar-lhes a liberdade?

03 fevereiro 2008

As assinaturas

Vamos esquecer por um momento que está um jogo o primeiro ministro e abstrairmo-nos da respectiva gincana política inevitável.

Assinar é responsabilizar. Eu assinar algo em que participei parcialmente ou que apenas revi é apenas um problema meu, dependendo do nível de confiança que tenho em quem trabalhou no assunto. É normal que um projecto de engenharia seja feito parcialmente por quem sabe fazer mas não tem estatuto para por ele publicamente se responsabilizar.

Agora, se eu assino porque o autor real está legalmente impedido de o assinar, como é o caso dos engenheiros que trabalham na autarquia onde se realizará o projecto, aí já não é tão simples. Está-se simplesmente a encontrar um expediente para contornar um disposição legal que tem razão de ser. Se não é formalmente ilegal, moralmente é!

Se é “norma”, de facto, estamos mal...!

01 fevereiro 2008

Na saída do ministro

Se eu tiver um problema de saúde ligeiro, deslocar-me 3 ou 30 km é indiferente. Se for uma questão grave, o importante é deslocar-me directamente para o local onde poderei ser tratado com todos os meios necessários. Neste último caso, não me interessa nada fazer escala no tal local próximo. Custam-me a entender, por isso, os protestos populares pelo fecho dos tais locais a 3 km, como se o fundamental fossem os 3 km e não os meios aí disponíveis. Parece haver aqui uma componente psicológica e sugestiva. Como se o facto de “existir algo próximo” seja determinante. Pode ser humano, mas não é racional.

A acrescentar ainda que o SNS não é nem nunca foi um modelo de organização nem de eficiência. Racionaliza-lo e melhorar o seu funcionamento não é um capricho de um governante mas antes uma imperiosa necessidade nacional, evidente desde há longos anos. Confesso ter alguma dificuldade em me recordar de ter visto entidades agora tão protestativas, como a Ordem dos Médicos, a arregaçarem as mangas para trabalhar construtivamente nesse sentido. Não, o seu lado é sempre o da reacção à mudança.

Os partidos da oposição foram tontamente a reboque desses protestos populares emotivos. Já faltava pouco para vermos ser exigida a presença do ministro no Parlamento cada vez que uma ambulância furasse um pneu. E, curiosamente, o resultado sistemático destas boleias nos protestos de rua contra as medidas impopulares mas necessárias é que “amanhã”, quando estiverem no poder, não irão reverter as medidas tomadas mas dizer baixinho: ainda bem que isto já foi feito e que a factura não veio ter à nossa conta!!!

Não se estava a fazer oposição séria. O ministro caiu no que parece ser apenas uma hábil antecipação. É um momento triste, porque pela sua seriedade, frontalidade, competência e determinação Correia de Campos foi um dos melhores ministros da Saúde que já passaram pelo cargo. O país popular e político demonstrou déficit de maturidade.