30 abril 2021

País de brandos costumes

Em abril de 1995, regressava eu a Bruxelas, após passar a Páscoa em Portugal, e boa parte da viagem fi-la em conversa com um senhor sentado ao meu lado, que viajava em circunstâncias idênticas. Trabalhava numa instituição europeia, estudando e acompanhando questões de segurança. Comentava ser um tema muito interessante e que a larga maioria das pessoas não imaginava o que se passava e podia passar nesse campo. Acrescentava que, por exemplo, no verão não ia querer estar em Paris.

Em julho desse ano rebentaram as bombas no RER em Paris e fiquei abismado com a antevisão. Se soubesse o que sei hoje, sobre as disputas em curso na altura entre a França e a Argélia a propósito da extradição de refugiados do FIS, a minha surpresa teria sido menor.

O senhor chamava-se Martinho da Cruz e informaram-me depois estar destacado em Bruxelas, por proteção, já que tinha sido um dos principais magistrados do processo das FP-25 – “O homem que prendeu Otelo”.

Nunca tinha ouvido falar dele antes. Revi o seu nome no livro acima representado, que me surpreendeu (o prefácio podem dispensar). A minha memória da dimensão das ações (e crimes) das FP 25 era bastante inferior à realidade. As bombas, os assaltos e os assassinatos teriam sido umas coisas avulsas, cada uma apenas mais uma e não prenúncio de outras seguintes. Não me recordo de as ver noticiadas como um verdadeiro, sério e estruturado ataque ao estado de Direito. Eram coisas lamentáveis, que lamentavelmente não deveriam acontecer e que, enfim, acabariam em breve, mais dia menos dia.

O envolvimento de Otelo começou a ser ouvido com descrédito e seguiu-se a estupefação. A população em geral via alguma incompatibilidade entre o homem que tinha arquitetado a nossa liberdade e a liderança de um movimento criminoso, desrespeitador das liberdades fundamentais em pleno regime democrático consolidado. Será por isso que o poder político muito polemicamente os amnistiou quando havia evidencias que até um cego podia ver?

Este livro tem a virtude de documentar esta história de vários milhões roubados, de uma dúzia de inocentes assassinados e de um processo que foi politicamente encerrado, num país de brandos costumes. Um processo em que quem mais perdeu, para lá das vítimas diretas, foi quem investigou e quem confessou, colaborando com a investigação.

Na última página fica um amargo na boca. Pela forma como o assassinato do Diretor Geral das Prisões foi desconsiderado pelas altas instâncias da altura; pela facilidade, antes como hoje, com que se criam imbróglios processuais, quando fatos e provas não faltam; pelo branqueamento político covarde quando a justiça devia ser cega e o poder político corajoso e pelo olvido com que a história foi embrulhada.

Quanto às motivações para na década de 80 se desatar a matar “fascistas”, é tema para outra estória.

 

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