03 janeiro 2021

Somos todos Vitinho ?!




O Vitinho passava na televisão a uma hora certa com uma mensagem que dizia às criancinhas: “Está na hora da caminha, vamos lá dormir”. As recorrentes e abrangentes restrições decretadas nestes tempos parecem-me num nível de tratar o povo todo como “Vitinhos”. Em março de 2020, quando a pandemia disparava sem se saber onde iria parar, na surpresa e incerteza generalizadas pode-se aceitar um grandes/incertos males, grandes (tentativas de) remédio.

Hoje, continua a ser necessário regulamentar comportamentos e estabelecer restrições, mas já deveríamos estar num ponto mais afinado e seletivo, menos bruto. Certo para alterações de horários de funcionamento, certo para limitar reuniões, políticas e outras, certo para impor distanciamentos, desinfeções e máscaras, mas … impedir a circulação ou a travessia de fronteiras concelhias é abusivo quanto aos direitos e excessivo quanto aos efeitos. Se, por exemplo, um sábado à tarde me apetecer ir ao Gerês apanhar ar, apenas isto, não estou só por isso a potenciar o alastramento do Covid-19.

Alguém aceitaria ser linearmente proibido de conduzir ao fim de semana para limitar acidentes rodoviários? Há regras elaboradas com esse objetivo, mas não são de cortar o mal e a raiz. Existem vários exemplos de comportamentos individuais irresponsáveis que podem pôr em risco terceiros, mas mal estaríamos se o tratamento fosse a castração sistemática e um polícia em cada esquina! Não, não queremos ser Vitinhos!

Atualizado em 04 01 com imagem da publicação no "Público".

31 dezembro 2020

O Sol também nasce


Mesmo em tempos de noites longas, o Sol acaba por nascer. Mesmo no final de um ano que tantos espíritos escureceu, o Sol também nasce.

Mesmo depois de uma passagem de ano com festejos anulados, condicionados ou proibidos, o Ano Novo nascerá.

Em cada dia, em cada Ano, haverá cores vitais a cintilar, aquecendo ânimos e repondo energias.

Para todos aqueles para quem o 2020 foi duro, o Sol também nasce.

2020 era um número bonito. “Objetivos 20-20”; “Agendas 20-20” foram durante muito tempo chavões sonantes de estratégias e de ideias mais ou menos esclarecidas, mais ou menos consequentes, antecipando um ano especial. Ironicamente 20-20 acabou por ser um ano mesmo muito especial que rompeu previsões, desorganizou objetivos e baralhou todas agendas.

Mas o Sol também nasce. Cada qual no seu canto, escondido ou exposto, sobrevivente de uma travessia inesperada, procurará um local onde respirar a luz que virá, inspirara-la a fundo, perscrutar horizontes, arriscar caminhos e… acreditar que o Sol sempre nasce. Força nisso! 

30 dezembro 2020

Espetáculo

 

O início da campanha de vacinação contra o Covid-19 é efetivamente um momento marcante, que esperamos venha a marcar um antes e um depois nesta época estranha que estamos a viver. Compreende-se que o momento seja divulgado e mediatizado, mas o espetáculo tem limites. Para que serve aquele aparato policial, como se fossem transportadas barras de ouro? Se eventualmente alguém conseguisse roubá-las, que faria com elas, dadas as dificílimas condições de transporte e armazenagem?

Cereja em cima do ridículo o bloqueio da escolta da GNR em Évora, pela PSP, por disputa de jurisdição. Se um criminoso em fuga atravessar uma destas fronteiras, os seus perseguidores não continuam? Não sei, mas depois das desafinações entre a PJ e a sua congénere militar em Tancos, só faltava ver este belo espírito de colaboração em que a formalidade rígida supera o mínimo bom senso e perguntamos: Não têm mais com que se preocupar? Nos casos sérios em que é mesmo necessário diálogo e cooperação entre das duas forças policiais, é este o espírito que prevalece?


20 dezembro 2020

Já vi este filme


A imagem de Eduardo Cabrita tentando defender o indefensável traz-me à memória Azeredo Lopes argumentando sobre Tancos e o célebre “no limite pode não ter havido furto nenhum!”. Neste caso, houve SEF, certamente, mas, enfim…  no limite pode deixar de haver.

O traço comum é a ligeireza com que supostos responsáveis ministeriais conseguem assumir tão facilmente uma postura de tamanha irresponsabilidade e fabulizar argumentos e suposições sem o mínimo de respeito pela inteligência de quem os ouve, os elegeu e a quem devem prestar contas.

Para ministros assim, efetivamente, basta ter sido fiel jotinha, assessor, chefe de gabinete e secretário de Estado. Se assim vamos a algum lado decente, obviamente que não! E encerro porque, a partir deste limite, já só me saem palavrões.

12 dezembro 2020

Para lá do mínimo


Pelo princípio, o salário deveria ser uma retribuição justa pelo valor criado por um trabalhador. Na prática a coisa complica-se, dado não ser evidente individualizar a contribuição de cada um e existindo mercado tanto do lado do trabalho, excesso ou falta de profissionais qualificados, como do lado do produto/serviço criado. Se, exagerando, não se consegue um profissional por menos de 10000 Euros/mês e a atividade gera apenas 5000, não funciona; se, contas feitas, descobre-se não ser possível pagar mais do que 50 Euros/mês, algo está errado na estrutura da empresa ou no seu posicionamento no mercado. Ambos os casos são inviáveis.

Esta introdução tem a ver com a questão do salário mínimo. Confesso que me surpreendo ao ver a quantidade de gente nesse nível. Enorme. Por coincidência, haverá assim tantas atividades e postos para os quais o SM é mesmo o justo e possível valor? Ou será apenas que, por excesso de oferta, os “empresários” pagam o mínimo… apenas porque não podem pagar ainda menos? Em ambos os casos algo está mal.

Obviamente que aumentar o salário mínimo à bruta tem implicações importantes que podem inviabilizar muitas empresas, mas a tendência de aumento do salário mínimo tem algo de positivo. É essencial que as empresas se procurem equipar e estruturar de forma a permitir contributos diferentes e crescentes dos seus colaboradores e também é importante que aqueles que pagam o mínimo pelo mínimo, evoluam…


11 dezembro 2020

DesTAPam-se os olhos


Para os portugueses que antes de viajar fazem contas à vida, a TAP é apenas uma alternativa, não necessariamente a mais escolhida, especialmente após a banalização das “low-cost”. Para eles, e para mim, como viajante, existir TAP ou não, não tem nenhuma dimensão estratégica e em pouco contribui para a minha felicidade; como contribuinte, existir uma TAP nacionalizada, já contribui e em muito para a nossa infelicidade.

Quando parecia que a companhia estava a caminho de ir ter que voar pelas suas próprias asas, eis que por burrice, teimosia ou cumulativamente outro defeito qualquer, inaceitáveis em quem gere o dinheiro de todos nós, ela volta a aterrar no colo do Estado e na conta dos contribuintes. É certo que o Covid-19 mudou muita coisa, mas mal estaríamos se o Governo aproveitasse para nacionalizar todo a indústria do turismo, por exemplo.

Reconhecida a cagada em que se meteram, desculpem, mas o nome é este, o impetuoso nacionalizador teve a ideia peregrina de fazer caucionar pelo Parlamento o plano de restruturação, como quem diz: Se for aprovado, a dolorosa fatura ficará numa conta alargada; se não passar e a empresa cair, a culpa será de uma qualquer “coligação negativa”. De mãos mais lavadas do que o próprio Pilatos? Grande exemplo! Entretanto, lá irão voar 3 mil milhões de euros, por teimosia e/ou burrice, e que muito falta fazem noutros domínios.

09 dezembro 2020

Desclassificar Camarate

 

Recordo-me daquele dia de dezembro em que o país atónito e apreensivo recebia a notícia do acidente de Camarate. Na jovem democracia, nunca algo de semelhante tinha ocorrido. O facto em si e as potenciais consequências assustavam. Recordo-me dos julgamentos sumários populares: - Foi um acidente! – Foi atentado! – Foram os comunistas! – Foi a CIA!

As conclusões oficiais e imediatas foram pelo acidente. Durante anos, associar a palavra atentado a Camarate foi tabu e motivo de indignação e insulto contra qualquer temerário que as evocasse. Dez (10!) comissões parlamentares de inquérito foram apontando para o atentado e evidenciando a falta de vontade e de eficácia da investigação criminal. Falou-se da questão de um eventual tráfico de armas que condenou o Ministro da Defesa e, por arrasto, o Primeiro-ministro.

Podemos imaginar que, na altura, assumir o atentado teria tido consequências devastadoras na ainda frágil democracia. Podíamos? O que não podemos, de todo, é passados 40 anos continuar sem saber o que realmente se passou antes, no dia e depois. Ainda falta vontade?  A revelação de toda a trama ainda fere alguém com poder para a travar? 40 anos depois, é obrigatório saber.


E ainda: 

Recordo-me da longa transmissão televisa das cerimónias fúnebres, em véspera de eleições. Arriscando fazer futurologia no passado: Tudo isto ajudou ou prejudicou o resultado de Soares Carneiro? Eu acho que prejudicou e acabou por confirmar uma derrota já previsível. Estas situações fortalecem os fortes e enfraquecem os fracos.

Soares Carneiro, sem chama nem carisma, “pau de cabeleira” da AD ficou adicionalmente exposto na sua fraca figura. Quem não queria votar nele, não mudou de ideias; quem estava na dúvida, em maior dúvida terá ficado ao vê-lo desamparado, sem tutela.


07 dezembro 2020

Função e estatuto

 Nos tempos que correm, de luta contra a propagação do Covid-19, as restrições de circulação visam obviamente forçar o pessoal a ficar em casa, a menos que haja algo mesmo essencial que obrigue a sair. O cidadão lambda está, portanto, confinado, a menos de necessidades bem caraterizadas.

Curiosamente, há exceções que não funcionam pela necessidade, mas pelo estatuto. Exemplo a Resolução do Conselho de Ministros n.º 89-A/2020 sobre a limitação de circulação entre concelhos, prevê nas isenções - c) Aos titulares de cargos políticos, magistrados e dirigentes dos parceiros sociais e dos partidos políticos representados na Assembleia da República;

Se eu bem entendo, aqui, um dirigente de um partido, mas apenas dos da primeira divisão, note-se, pode circular, independentemente da razão. Tem lógica? Não!

Entretanto, achamos muito divertido que o Presidente da República tenha um esquema para não deixar de dar o seu mergulho e anda meio país escandalizado por alguém ter oferecido umas garrafas de vinho a um polícia para furar o confinamento. Certo, não é comparável, já que o primeiro caso não sai da legalidade e o segundo sim, mas… num país em que esta corrupção é justamente considerada primeira página, seria eu muito feliz.

05 dezembro 2020

O Tino não chegou...


Aproximam-se as presidenciais e, com tanta previsibilidade no resultado, ainda nos arriscamos a ver algumas surpresas, não no principal, mas no acessório.

Surpreende-me a campanha anti-Chega, baseada no caráter condenável da sua ideologia. Eu acho que o problema principal com o Chega não é a ideologia, falta-lhe tanto em ideologia, quanto lhe sobra em incoerência e oportunismo. Se André Ventura julgar que falar contra os ciganos lhe traz votos, ele avança; se entender que uma gravata com riscas amarelas e bolinhas roxas funciona bem, ela vai já comprar uma dúzia. O Chega não tem ideias feitas, nem nenhuma conceção fechada; ele luta pela influência e pelo poder, chutando com o pé mais à mão.

O seu crescimento e aparente sucesso, pelo menos temporários, vêm de preencher um espaço deixado vazio pelos “do costume”. Escalas e estilos à parte, sabemos que os do costume também não se importam se ser ateus ferrenhos de manhã e ir a Fátima à tarde, se isso ajudar.  A diferença é o Chega ultrapassar limites considerados linhas vermelhas, algumas delas pintadas um pouco à força.

Lembram-se do Tino de Rans nas últimas Presidenciais? Não precisou de ideologia nenhuma para ter 152 000 votos, bastou ser radicalmente diferente dos padrões estabelecidos. Viajando um pouco: Pepe Grillo em Itália, Tiririca no Brasil e Trump nos USA têm o seu sucesso baseado exatamente na mesma tática: enviar “aquela parte” os de sempre e esse palavreado encontrar ouvidos recetivos.

Gritar “Aqui d’el Rei!” contra a “ideologia” do Chega, manifestamente não chega!

03 dezembro 2020

Alguma coisa acontece


Cantava Caetano Veloso que alguma coisa acontecia no seu coração, que só quando cruzava a Ipiranga e a Avenida São João…

Noutras latitudes, outras músicas, ou mesmo sem música, mas algo acontece no meu coração quando cruzo Passos Manuel e Santa Catarina, mesmo sem rimas e com uma toponímia muito menos sonante. Dispensando considerações arquitetónicas e históricas que não as sei fazer, aquele cruzamento tem algo de especial.

De um lado a Batalha, o meu porto de chegada ao Porto, durante muitos anos de transportes públicos; Santa Catarina, em boa hora pedonal, que rasga a cidade e onde se ancora uma boa parte do comércio tradicional; Passos Manuel que mergulha para o rio da Avenida, sendo que as ruas no Porto vão muitas vezes desaguar a rios e vales. E a subida para os “pobeiros” e para o porto mais profundo e popular, onde não há “spots” turísticos de nota e a cidade pouco mudou. Ali ao lado o Coliseu, onde tantos dias se ouviram coisas como o primeiro dia e a quem a cidade recusou o último dia. E depois, ao dobrar da esquina, o majestoso Majestic, agora a fechar as portas, indefinidamente.

A primeira reação é de um duplo lamento, pelo desaparecimento daquele espaço, de uma riqueza única no género e pelo que significa um café tradicional a menos na vida da cidade. Numa segunda vista, um café que cobra 5 Euros por um café, não é um café social da cidade. É um local a ser visitado por experiência, uma vez, em visita à cidade, que vive da rotação das experiências e da cadencia das aterragens em Francisco Sá Carneiro. Não seria possível “ter dado uma volta”…? Entre o Majestic fechado e o Imperial McDo, nem sei que diga.

01 dezembro 2020

De charanga y pandereta


Este título faz parte de um poema irónico e corrosivo sobre uma certa Espanha caricatural e retrógrada, escrito pelo andaluz António Machado (1875-1936). Encontrei-o num CD de Joan Manuel Serrat, de músicas feitas sobre textos do poeta, sendo a mais famosa a do “Caminante no hay camino, se hace camino al andar” e revi-o mais recentemente citado num livro sobre a Andaluzia, antes, durante e depois do domínio muçulmano: Andalousie, Vérités et Legendes, por Joseph Perez.

Lá como cá, esse período da história tende a ser visto de forma redutora, seja como um desvio pontual e rapidamente normalizado, seja como um período culturalmente rico que as armas castraram. Uma realidade que ultrapassa 5 séculos é naturalmente muito mais complexa e este livro veio-me parar às mãos no processo de mais aprender sobre o tema, mas esse não é o tema de hoje.

Sobre a imagem “típica” do flamengo, ciganos e touradas, da “charanga y pandereta”, diz J. Perez que sua popularidade cresce numa certa franja da população espanhola e muito fortemente na Andaluzia, como reação à tentativa de modernizar e de trazer ao país as luzes europeias, um efeito colateral das invasões napoleónicas do início de século XIX. Enquanto o pé direito carrega no acelerador, promovendo uma certa (a sua) ideia de evolução e modernidade, o esquerdo trava, reforçando a ligação ao passado e à especificidade local, contrariando o importado (para a imagem ser mais feliz, talvez os lados dos pedais devessem ser permutados).

É um processo relativamente comum de reação à mudança, especialmente presente em muitas comunidades expatriadas, que tanto se podem integrar, como amplificar o seu arreigo à identidade e cultura originais. Quanto mais me querem impingir hambúrgueres, mais aprecio a posta mirandesa. Menos ironicamente, podemos recordar como o Estado Novo utilizou e promoveu uma certa imagem da “cultura popular”, para bloquear o interesse e incentivar a falta do mesmo por coisas mais “modernas”…

As tradições tanto podem ser fonte de riqueza e raiz fecunda, como um lastro que atrasa a evolução. O empurrar a modernidade tanto pode ter como consequência um efetivo e positivo progresso como o enquistamento e um retrocesso nocivo. Nem o povo se educa e se desenvolve por decreto, por muitos iluminados que sejam/se julguem ser os legisladores, nem o congelamento em referências antigas tem futuro. Obviamente… ! E em nada ajuda a religião do fraturar, que tantos gostam de praticar…  quase um século depois, continuando a citar Machado, lá continuam e dificilmente reconciliáveis “las dos Españas”.


29 novembro 2020

Sobre a saúde


 

Este texto não de destina ao destina ao Sistema Nacional de Saúde em si, nem aos seus profissionais, independentemente do que funciona bem ou mal por lá.

Este texto endereça-se à visão que alguns políticos, e não só, têm do mesmo e da saúde dos portugueses:  A saúde não deve ser um negócio, sendo inaceitável permitir a entidades privadas lucrar com a saúde.

Bem… mas se for necessário um exame complexo, uma ressonância magnética por exemplo, no hospital público de Braga esperam-se meses, na Clipóvoa privada poderá ser para o próprio dia.

Se existe um equipamento operacional e disponível, não faz sentido montar um protocolo, bem negociado, que o permita utilizar a partir do SNS, para quem necessita? É pecado contratualizar serviços a privados? Mas, uma fatia importante do custo associado, equipamento e infraestrutura, não terá, porventura, a mesma origem, privada, eventualmente comum a ambos. E quanto do orçamento do sistema de saúde público não remunera fornecedores privados?

Limitar o acesso à saúde dos portugueses por um preconceito ideológico mal fundamentado e, ao mesmo tempo, encher a boca com os méritos de um SNS público é incoerente. Não quero aproveitar para especular sobre o eventual interesse tático da situação atual, em que o cidadão lambda, não atendido no SNS, cai na necessidade da rede privada, aliviando a carga e os custos no sistema público.

Mas, podemos estar descansados, porque “tudo” está a ser feito para nada falhar na próxima vacinação Covid. Podemos estar descansados quanto à capacidade de antecipação e de preparação para algo tão novo, como para a resposta ao banal… Considerando o que falha na vacinação contra a simples gripe…


22 novembro 2020

Unamuno



Foi a este e ao Cervantes que Adolfo Correia da Rocha foi buscar o nome próprio para juntar à planta brava da montanha, Torga, e criar o seu pseudónimo literário.

Passando ao lado da polémica dos seus apoios e desapoios, posições tresmalhadas ou coerentes e se o franquismo o matou e depois solenemente enterrou, ou não… e concentrando-nos no que fica de fundamental, a obra.

Num destes dias longos de fim de semana caseiro reencontrei a "Névoa” entre os meus livros. É um daqueles em que quase com pena vemos aproximar-se o final da obra e do prazer de uma leitura que não se quer ver terminada.

Magistral. Muito bem escrito e sendo relativamente curto, tem uma profundidade e abrangência enormes. Dentro da simplicidade de muito discurso direto, são 200 páginas sem palavras complicadas. Mas que de imagem em imagem, quase linearmente, sem saltos nem surpresas de arrebatar, nos despe e mostra a simplicidade da complexa condição humana.

Bravo, senhor Miguel.

12 novembro 2020

Triste podium


O livro de António Barreto, “Salazar, Cunhal e Soares” é um interessante retrato dos três políticos que mais marcaram o século XX português. Não havendo muitas dúvidas sobre a pertinência da escolha, uma análise do perfil e da obra dos mesmos acaba por ser bastante deprimente sobre as grandezas e pequenezas (mais estas…) da nossa história recente e a herança que nos deixaram.

Para começar, a longevidade do Sr de Santa Comba. Vamos apostar que, sem o desgaste da guerra colonial, o regime não tinha caído, pelo menos naquela altura, pelo menos daquela forma tão rotunda? A esperteza oportunista em que tudo é pequenino e as lideranças se querem autoritárias, avaras e patriarcais não se institui em credo nominativo. Não há neossalazaristas que se vejam, mas o povo revê-se e aceita com alguma facilidade um líder austero e ditador, que faz e desfaz as regras como entende, controlando a distribuição de uns (poucos) rebuçaditos aos meninos. Um severo ministro das finanças é uma instituição recorrente e a respeitar.

Cunhal, paradoxal. Um partido dos que mais se proclamavam ao serviço do povo e do país, tentou anular a democracia e colocou os interesses de uma potencia estrangeira acima dos interesses nacionais como nenhum outro. A famosa coerência que tantos louvaram tem outro nome: teimosia cega e incapacidade/ desonestidade, típicas do maior cego. Certamente que se o “processo” não tivesse abortado em 1975, Cunhal teria ficado para a história numa galeria bastante diferente. Muito interessante o relato de Jorge Miranda sobre os tempos conturbados “Da Revolução à Constituição - Memórias da Assembleia Constituinte”.

Soares: a empatia e o mérito de ter lutado por um regime muito mais próximo do desejado e acarinhado pela larga maioria do povo, que se queria ver num modelo progressista, mas em meridiano mais ocidental. Este enorme espaço da esquerda moderada foi liderado por Soares, aproveitando também o trabalho de Salazar, que conseguiu colocar indeléveis dúvidas no povo sobre a natureza dos pequenos-almoços comunistas e a real harmonia dos respetivos amanhãs. Para lá deste Soares lutador pela democracia, há brigas a mais na sua vida e realizações a menos, distinguindo-se mais na disputa pelo leme e muito menos na qualidade da navegação, uma vez ao comando. Quanto ao seu lado lunar, não se fica a olhar para Soares da mesma forma após ler “Contos Proibidos – Memórias de um PS desconhecido” de Rui Mateus.

E vão três.


09 novembro 2020

70 Milhões de Parvos

 


Ao contrário dos golpes palacianos, ou de caserna, em que ocorrem descontinuidades no poder, sem que a rua participe ou saiba bem o que se passa, nas revoluções há uma ignição, eventualmente provocada por uma questão secundária, mas que vai encontrar eco numa parte significativa da população, recetiva a uma mudança de regime, e que assim se consolida.

Acho que estamos a assistir a uma revolução, não necessariamente ao longo de uma simples madrugada, nem em direção a amanhãs entusiasmantes. Está em curso uma mudança significativa de valores e de princípios valorizados pelos eleitores. Os 70 milhões que nos USA votaram num parvo, não são todos parvos, basicamente não queriam mais do mesmo. Numa versão mais suave do que já foi, o “Front Nationale” francês arrisca-se a eleger o próximo presidente do país. Isto era um cenário de pesadelo considerado absolutamente impossível não há muito tempo. E mais exemplos não faltam.

A eleição de Biden (a derrota de Trump) é algo de positivo, mas não é nem deve ser considerada um alívio porque não consolida nada. A revolução contínua e não serve de muito condenar as faíscas quando se é descuidado com a pólvora.