22 maio 2005

Portugal hoje, a certeza de existir

Tive a experiência de viver durante alguns anos fora de Portugal e contacto frequentemente com realidades externas. Habituei-me a ver Portugal de dentro para fora e de fora para dentro. A caracterização, complexa, de Portugal é um assunto que me apaixona e resolvi ler o “Portugal Hoje – O medo de Existir” de José Gil. Apesar de algumas ideias e considerações com interesse, não aderi ao livro.

A “personalidade” portuguesa é fruto de muitos factores naturais e históricos. Atribuir tão directamente a mentalidade actual à herança salazarista, como o autor faz, é redutor. Só a título de exemplo, a escrita de Eça, anterior a desse período, retrata com muita fineza e pertinência vários aspectos característicos do Português e de Portugal que permanecem actuais. É necessário ir mais longe: a influência da riqueza fácil dos descobrimentos; a transição do D João II empreendedor para D Manuel I gastador; a matriz religiosa; a romanização; a arabização e, inclusive, a geografia do país.

O livro tem demasiados “sempres” e “nuncas” para ser exacto. Um funcionário público lisboeta tem um temperamento muito diferente dum viticultor transmontano. Muitas, para não dizer todas, as peculiaridades referidas avulsas podem ser, individualmente, encontradas em gentes doutros povos. Existe seguramente um traço característico português mas a sua definição correcta necessita de maior rigor científico, de estudos sérios comparativos e duma base estatística adequada. Não basta referir que “uma vez um visitante disse...”. Também não se pode comparar os portugueses com uma elite parisiense, por exemplo. Seria um pouco como, num dado país, presumir que todos os portugueses são trolhas ou padeiros por ser esse o grupo dominante dos imigrantes aí estabelecidos.

A questão recorrente de que Portugal não tem filósofos não recolhe o meu acordo. Só para referir um nome, Fernando Pessoa foi um filósofo espantoso, com uma forma de expressão particular e muito interessante.

Portugal mudou muito nos últimos, digamos, 12 anos. Considerar que “o horizonte espiritual do povo inteiro [...] com excepção de certos artistas e homens de cultura continua a ser o de antigamente”, é um pretensiosismo elitista desajustado da realidade. A expressão irónica “à antiga portuguesa” é hoje usada em variadas circunstâncias para qualificar situações com uma dinâmica e um sentido de compromisso que já não se aceitam. A “responsabilidade” para algumas mudanças está precisamente em sermos menos “ilhéus isolados”, uma vertente da tal globalização maldita pelo autor.

Temos dificuldades em definir a nossa identidade. Não temos, no entanto, dúvidas de que ela existe. Temos a certeza de existir. Temos aspectos mesquinhos a corrigir e temos qualidades a identificar e a explorar. Temos curiosidade por sabermos quem somos, como somos, daí o sucesso do livro. E isso é já positivo e original para um povo que não tem filosofia.

Um dos nossos pontos negativos é a ligeireza na auto-avaliação. Talvez uma face da famosa “não inscrição”.

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