14 julho 2013

A História não se repete

Era uma vez um país em que após décadas de regime fechado a pressão popular o obriga a abrir-se e que realiza eleições abertas, multi-partidárias. As eleições são ganhas por islamitas mas os militares impedem-nos de governar. Será o Egipto de hoje? Pode ser, mas eu estava a pensar na Argélia de 1992 e onde o resultado dessa exclusão foi uma década negra com cerca de 200 000 mortes. Para lá da guerrilha tradicional e atentados cegos em zonas urbanas como mercados e transportes públicos, houve listas de gente das letras e das ciências eliminados um a um, houve aldeias inteiras isoladas e os seus habitantes degolados e um sem número de outras atrocidades. Irá o Egipto cair num caminho idêntico? Esperemos que não, até porque o contexto é diferente. Na Argélia a segunda volta das eleições legislativas foi suspensa pelos militares e os islamitas nunca chegaram a governar, tendo saltado para a clandestinidade com toda a força e “legitimidade”. No Egipto eles fizeram a experiência do governo e parece haver uma parte importante da população que apoia a recente acção do exército.  

Num país árabe que se abre ao multi-partidarismo, é previsível serem os islamitas a ganharem as primeiras eleições – eles conseguem apresentar uma proposta concreta e diferente com a qual uma grande parte da população se identifica: “a nossa religião, os nossos valores”. No entanto, para muitos, o objectivo principal não é a democracia em si, mas simplesmente viverem melhor. Se o novo governo não conseguir responder a esse anseio com brevidade, rapidamente se desencanta. Terá ainda que procurar um compromisso dificilmente praticável entre a facção islâmica mais conservadora para quem a Sharia pode e deve servir de Constituição e uma parte da sociedade, mais moderna, que até participou na revolução buscando um país mais moderno, e que se assusta enormemente com alguns (des)propósitos como, por exemplo, no que diz respeito à condição feminina.

O primeiro-ministro turco, islamista, Recep Erdogan, disse uma vez, distraído ou não, que a democracia é como um comboio que se apanha e donde se sai quando se chega ao destino pretendido. Morsi no Egipto estaria a tentar por em prática o mesmo princípio. Como se ironizava na Argélia na altura, democracia seria um homem, um voto… uma vez! Sendo o Egipto um país fulcral no mundo árabe pelo seu peso demográfico e localização, o que lá acontecer é de extraordinária importância para meio mundo.

Numa grande encruzilhada está também a Tunísia, que apesar de uma dimensão muito inferior ao Egipto tem um peso não negligenciável. Foi lá que tudo começou em Janeiro 2011. Esta semana iniciou-se o Ramadão. São 30 dias em que entre o nascer e o pôr-do-sol, para lá de outras restrições, não se come e não se bebe. Em 1964, há quase 50 anos, Bourgibga, o líder forte e pai da Tunísia moderna, na altura pouco democrática, bebeu um sumo de laranja em directo na Televisão, em pleno dia durante o Ramadão, argumentando que o jejum podia ser quebrado em caso de guerra e que na Tunísia estava em curso uma batalha pelo desenvolvimento. Por muito menos há hoje gente levada a tribunal, acusada do crime de muito largo espectro de “atentado ao sagrado”.

Presumir como muitos o fizeram há dois anos, que bastava registar partidos, organizar eleições e contar votos para ter um país firme no caminho do desenvolvimento é obviamente uma enorme ingenuidade. Esperemos, e se possível ajudemos, que corra bem. Por meio mundo, que é também o nosso, e muito especialmente pelos seus homens e mulheres, muito principalmente estas, que merecem viver em dignidade com paz, respeito e com oportunidades.

09 julho 2013

Onde chega a pobreza

Eu sei que os tempos não são de fausto, como também é verdade que a pobreza de espírito é das piores. Começaram a aparecer alguns cartazes para as eleições autárquicas que me surpreenderam pela riqueza da sua mensagem e respectiva originalidade. Uma pequena amostra segue. Os candidatos que ainda não tenham decido sobre o respectivo lema podem naturalmente inspirar-se … pobremente!

  • A “terra” não pode parar
  • Dedicados à “terra”
  • Dar vida à “terra”
  • Unir a “terra”
  • A “terra” é a minha casa
  • Futuro de confiança
  • A “terra” sempre
  • A “terra” pode mais
  • Confiança no futuro
  • Melhor “terra”
  • Juntos pela nossa terra
  • Por um futuro melhor
  • Todos somos “terreiros”
  • Juntos pela “terra”
  • Mais e melhor para a nossa terra
  • Liderar a “terra”
  • “Fulano” sabe
  • Para a “terra” vencer
  • Mais perto de si
  • Vencer 2013
  • Mudar a “terra”
  • A “terra” primeiro
  • Fazer bem
  • Fazer crescer
  • Nós gostamos da "terra"
  • Por todos

07 julho 2013

O problema não está nas finanças

Enquanto pensarmos que o problema está na figura do ministro das finanças e que os destinos do país estão nas suas mãos, enquanto os restantes ministros acharam que ele é/deve ser/não deve ser o homem bom ou mau que os deixa ou não gastar o que querem, estamos equivocados.

A salvação do país está na sua governação em que há vários ministros, cada qual com os seus pelouros, alinhados numa política coerente e dirigidos por um primeiro-ministro que inspira e lidera. O ministro das finanças é apenas mais um, com uma função muito específica e relevante, mas presumir que quem assina os cheques tem todo o poder é subverter o sistema.

Um governo com um primeiro-ministro para discursos, um super-ministro das finanças e os restantes membros mansa ou revoltadamente subordinados é um governo de menoridades, em que os seus membros não governam, mas são sim governados pelo tal super-ministro. Assim não vamos/nunca iremos lá e o problema não está na cara de um ministro.

03 julho 2013

Voos e sobrevoos

Vamos lá a ver. Nem sou Américas nem anti-américas. Não acho que a maior parte dos prisioneiros de Guantanamo, incorrectamente detidos, sejam uns coitadinhos vítimas de injustiça, nem acho que Snowden seja um perigoso bandido, apesar de ter infringido a lei do seu país.

Agora, que para transportar os prisioneiros para Guantanamo as nossas bases dos Açores tenham sido usadas “no problem” e que o avião presidencial da Bolívia não possa ter aterrado em Lisboa por pretensamente transportar Snowden... há aqui qualquer coisa que não bate certo!

19 junho 2013

É a guerra, estúpido !

Um assunto bélico de grande actualidade é a utilização dos zângãos ,“drones”, os aviões telecomandados e com a polémica dividida em dois eixos. Por um lado, os seus tripulantes não estão presencialmente em cenário de guerra, mas sim em segurança e à distância, voltando ao lar, doce lar, no final do turno, depois de terem disparado e morto gente; por outro lado, qual a legitimidade de se poder matar assim de forma tão selectiva.

Relativamente ao primeiro ponto, também já ouvi comentários daqueles que disparam à queima-roupa à cabeça de uma adolescente à saída da escola, segundo os quais esta é uma forma covarde de fazer a guerra...!  Entendo que possa ser psicologicamente perturbador voltar para casa e a abraçar mulher e filhos umas horas depois de ter atingido mortalmente um alvo, mas será pior do que estar submerso num teatro de guerra, correndo riscos reais? Tenho dúvidas que seja pior e, sobretudo, é uma parte muito fácil de resolver. 

Quanto à selectividade e ao carácter assassino, na guerra matam-se inimigos e com meios mais convencionais aumentam os chamados danos colaterais. Achar a selectividade negativa é estranho. A haver guerra certamente que quanto mais cirúrgica melhor. Na campanha em curso até se usa o adjectivo “robot”, invocando uma certa desumanização. Ora bem o “drone” típico é apenas telecomandado, não é automático. Um míssil convencional é mais “cego” e ainda muito mais será o velhinho canhão! Não vou acreditar que a origem da campanha seja uma reacção à liderança que os Estados Unidos têm da tecnologia, mas parece. Apenas concluo que falar no problema zangão é estar ao lado do problema, o verdadeiro e estúpido problema é mesmo a guerra. É a guerra, estúpido!

Foto googleada

14 junho 2013

Ainda a Síria

No Iraque descobriram armas de destruição maciça, aqui finalmente descobriram utilização de gás sarin pelo governo sírio, que era mesmo o que faltava para justificar uma ajuda aos “bons rebeldes”.

E recordei-me da ajuda aos talibans do Afeganistão quando eles combatiam os russos que deveria ter ensinado que nem sempre o inimigo do meu inimigo, meu amigo será.

07 junho 2013

Morto pelas ideias ...?

França está em estado de choque esta semana. Um estudante de esquerda, anti-fascista, morreu após uma agressão por um grupo de extrema-direita. A exploração política dispara e há quem diga que ele morreu pelas suas ideias, quase um Martin Luther King.

Ora bem, fui investigar e, ao que parece, foi assim: havia uma venda privada de roupa de marca bastante apreciada tanto pelos jovens da extrema-esquerda como da extrema-direita… Aí, dois grupos ter-se-ão cruzado e “naturalmente” provocado. A provocação teve como consequência uma pancadaria no exterior. Clement, que até era franzino, recebe um murro que o faz cair e bater com a cabeça num poste, o que provocou a sua morte.

Para lá de naturalmente ser a lamentar a morte e uma morte assim, passar este assunto para a esfera da “luta política” e das ideias é patético e pateta.


Foto estraída do "Le Monde"

06 junho 2013

Bê5 - de bandido a clássico

Estarão certamente na memória de muitos neurocirurgiões dos anos 70 e 80. Muito lhes enriqueceram o curriculum quanto a tratamento de traumatismos cranianos!  Juntamente com a também famosa XF17 eram duas máquinas terríveis.

Hoje tem o charme de um clássico !

03 junho 2013

O mal de ser novo

O novo pacote fiscal, que traz a inovação de pretender reduzir a carga fiscal em vez de a aumentar, tem uma particularidade principal muito nociva e que é precisamente o facto de ser “novo”. O que um investidor valoriza é a estabilidade. Para alguém que pense em investir seriamente em Portugal esta não é uma boa notícia, pelo contrário. É a prova provada de que não se pode confiar nas regras existentes hoje, porque a qualquer momento podem mudar. E, como é óbvio, sem regras minimamente estáveis para o horizonte do investimento, ninguém gosta de ir a jogo.

Esta medida pode aliviar o esforço para projectos já pensado e planeados mas um investimento a sério, como nós precisamos, não é definido numa semana para durar um semestre. Pretender que relançar a economia e a confiança dos investidores se consegue com coisas assim, anunciadas hoje para terem efeito amanhã e depois de amanhã logo se verá, é demagogia ou ignorância.

Não sou economista mas posso ter a pretensão de fazer uma sugestão. Em vez de andarem com ideias novas com esta frequência assustadora, definam um quadro macro-económico e particularmente fiscal estável para um horizonte de 10 anos. É um grande desafio e que devia envolver governo e oposição. Para o desenvolvimento da economia, criação de emprego e isso tudo de que precisamos seria muitíssimo mais eficaz do que este tirar e a dar rebuçadinhos dia sim, dia não.

29 maio 2013

Onde começa e onde acaba

A fotografia vencedora do prémio World Press deste ano é espectacular. Apetece quase dizer que se o autor a tivesse realizado em estúdio com iluminação preparada não sairia muito melhor! Donde que: fantástico e parabéns!


Só que havia mesmo algo de estranho na perfeição da fotografia. De uma primeira acusação de ser uma fusão de várias, afinal parece que foi “só” ajuste de contraste e de tons… ajustes que supostamente não são manipulação. Será? É uma pergunta sem resposta clara. Mas se formos ao limite, como por exemplo nas fotos abaixo, em que eu realmente não desloquei um pixel que fosse, apenas me limitei a mexer grosseiramente nuns parâmetros de cor na da direita, podemos dizer que esta continua a ser uma “fotografia” genuína? Tenho sérias dúvidas…




28 maio 2013

Primavera ou isso

Quando o processo começou na Tunísia, todos assobiaram para o lado assumindo que com mais ou menos esforço Ben Ali colocaria ordem na casa. E Ben Ali caiu. Quando começou no Egipto as reacções já foram mais ambivalentes: é importante a democracia, é importante a legitimidade… E o regime caiu. Quando começou na Líbia, já ninguém teve dúvidas Khadafi vai pelo mesmo caminho e vamo-nos colocar do lado certo do vento da história. Enganaram-se de novo. Khadafi só caiu pela preciosa ajuda dos que quiserem activamente estar do lado “certo”.

Temos agora a Síria. Há quem ache que está em causa a simples luta entre um mau ditador e uns bons rebeldes, mas devido à má experiência da Líbia, tem havido muito mais prudência na entrada/ajuda ao conflito. No entanto, e acrescentados os ingredientes da situação geopolítica actual na zona, não é difícil concluir que o que está em confronto na Síria não é certamente a democracia contra a ditadura. É muito simplesmente uma nova declinação do histórico conflito entre sunitas e shiitas que tem quase tanto tempo quanto a religião muçulmana.

Qual o propósito de o Ocidente apoiar declaradamente uma das partes quando o registo das acções e barbaridades cometidas parece ser relativamente bem distribuído? Porque é que quando se fala do eventual uso de gás sarin pelo governo sírio é um escândalo que justifica sair a terreiro e quando parece que é antes/também usado pelos rebeldes, se assobia para o lado? Se o popular canal de televisão Al-Jazira (Qatar – Sunita) trata de uma forma diferenciada os conflitos nos diferentes países conforme o seu alinhamento com a península arábica, sede do sunismo, porque é que temos que os acompanhar nessa discriminação?

Enfim haverá interesses e razões que justificam tudo isto, como também há gente inocente que sofre e que morre, mas por favor não pintem o cenário com as cores da liberdade e da democracia. Estas merecem muito mais respeito.

23 maio 2013

Em Despedida ao Autor


De tantas vezes ter dormido
Com a minha solidão
Ficamos quase amigos
Uma doce habituação
Ela não me abandona nunca
Fiel como uma sombra
Segue-me aqui e acolá
Pelos quatros cantos do mundo

Não, eu nunca estou só
Tenho a minha solidão

Quando está no fundo da minha cama
Ela ocupa todo o espaço
E passamos largas noites
Só os dois face a face
Não sei mesmo até onde
Irá esta cúmplice
Deverei tomar-lhe o gosto
Ou reagir ?

Não, eu nunca estou só
Tenho a minha solidão

Com ela, aprendi tanto
Que até verti lágrimas
E se por vezes a repudio
Ela nunca desarma
E se prefiro o amor
Duma outra cortesã
Ela será no meu último dia
A derradeira companheira

Não, eu nunca estou só
Tenho a minha solidão

Georges Moustaki em tradução livre