30 dezembro 2016

Melhor será sempre acreditar


Usei recentemente esta fotografia, tirada na casa museu Júlio Verne em Amiens, para ilustrar o texto abaixo copiado, de Fernando Pessoa.

Tenho mais pena dos que sonham o provável, o legítimo e o próximo, do que dos que devaneiam sobre o longínquo e o estranho. Os que sonham grandemente, ou são doidos e acreditam no que sonham e são felizes, ou são devaneadores simples, para quem o devaneio é uma música da alma, que os embala sem lhes dizer nada. Mas o que sonha o possível tem a possibilidade real da verdadeira desilusão.

Invocar estes temas associando-lhes um barco na casa do grande sonhador das “viagens extraordinárias”, não é coisa vã. No entanto, o barco da imagem não é a representação de nenhuma criação fantástica do escritor. Trata-se do real transatlântico “Great Eastern”, um enorme navio da altura, no qual J. Vernes viajou até aos EUA e lhe inspirou o romance “Uma Cidade Flutuante”. Onde pretendo chegar, e a ambiguidade da imagem quanto à natureza da viagem evocada para isso contribui, é à reflexão de que o limite entre os sonhos possíveis e os impossíveis, pode não ser tão clara como o entre ter sido um imperador romano ou falar com a rapariga com quem nos cruzamos todos os dias na rua.

Aliás, uma vez que Álvaro de Campos declarava “tenho em mim todos os sonhos de mundo”, seria interessante assistir a uma discussão entre ele e o seu “companheiro de quarto”, Bernardo Soares, quanto à classificação, binária, de cada um desses sonhos. Mesmo que não tem todos, todos, os sonhos do mundo e simplesmente sonha alguma coisa nova para cada novo ano, terá problema idêntico.

E desistir da Lua, por a achar inalcançável quando, mais tarde, ela poder passar bem próxima à nossa frente? Na dúvida é sempre preferível em tudo acreditar, mesmo correndo o risco de nada entender… do que o inverso.

28 dezembro 2016

O Presidente, o George e o Arlindo

“Ó que lindo chapéu preto, naquela cabeça vai….” Esta frase diz algo a alguém? E esta: “Muito boa noite senhoras e senhores, lá na minha terra há bons cantadores”. Provavelmente serão familiares para muitos e tão familiares, de tal forma popularmente adotadas, que já se diluem na chamada tradição. Um nome comum por trás delas: Arlindo de Carvalho. Um senhor que faleceu em 26 de Novembro passado, com uma história de vida merecedora do maior respeito.

Ora bem, o nosso PR, que ainda não se esqueceu dos tempos em que tinha a obrigação profissional de tudo comentar, publicou na página da Presidência um lamento pela morte de George Michael. Não me parece muito bem para a dignidade dessa página que concorra com uma “janela da saudade” mundana qualquer, independentemente dos méritos e deméritos do cantor em causa, nem que adote o estilo do “eu @aqui e @ali”, tipo simples página pessoal, registando inclusive a ginginha que se tomou algures em boa companhia.

Neste dilúvio de “apontamentos”, essa mesma página passou em branco o desaparecimento de Arlindo de Carvalho. Com o que ele significa para a cultura portuguesa isso parece-me uma falta de respeito e das grandes.

Senhor Presidente: acalme-se um pouco, coloque um mínimo de distância entre a sua ação e a espuma dos dias; enfim, ocupe o seu lugar, por favor.

26 dezembro 2016

De líder para capataz

Quem manda nas empresas serão, obviamente, os seus donos (à exceção das empresas públicas onde os donos somos todos nós e mandam os políticos). Quem são os donos das empresas será teoricamente relativamente fácil de identificar, pelo menos formalmente. Há, no entanto, diferenças enormes entre o tipo de donos e o perfil de quem manda.

Há empresas com dono claro e próximo, com personificação da liderança, onde o líder faz parte da equipa que com ela se confunde, se necessário for. Ganhará certamente mais do que os demais, mas não será frequente esse fator chegar às centenas de vezes. Essas são as empresas familiares, seja no sentido da propriedade propriamente dita, seja pelo sentimento de todos pertencerem a uma família. Velhos tempos…

Depois há outras com dono volátil, eventualmente anónimo e/ou coletivo, onde cada um pode nem saber bem o que tem em cada momento. Os donos entram e saem individualmente ou em bloco. No fundo, muitos apenas entregaram as suas poupanças a uns profissionais que se encarregam de as rentabilizar, de fundo em fundo.

Os capatazes, nomeados pelos “financeiros”, não fazem parte da equipa, estão lá a cumprir uma missão, de “criar valor para o acionista” (e em caso de sucesso ficam com uma parte substancial desse valor no seu bolso). É de bom-tom dourar a receita com uma série de declarações de intenções e de princípios, evocar pomposamente teorias e princípios de gestão, devidamente decoradas com chavões e palavrões (in english please…), quando, no fundo, se está simplesmente a cortar a direito para os resultados do próximo trimestre. Se isso envolver comprar um pomar e for vantajoso cortar as árvores e vender a madeira, siga…! Os recursos humanos da empresa são apenas um dos ativos, a rentabilizar da melhor forma. Novos tempos?

Faz sentido? Se calhar fará, porque a tendência do mundo está mais neste sentido do que no outro e, reconheça-se, sem “valor criado para o acionista”, não há acionistas e as empresas não sobrevivem. No entanto, uma empresa sem líder efetivo, é um pomar que não sabe se amanhã produzirá cerejas ou se será vendido para uma serração e, com contas ao trimestre, dificilmente se plantará alguma vez um pomar.

23 dezembro 2016

Natal plural


É nesta mesma lareira, e aquecido ao mesmo lume, que confesso a minha inveja de mortal sem remissão por esse dom natural, ou divina condição, de renascer cada ano, nu, inocente e humano como a fé te imaginou, Menino Jesus igual ao do Natal que passou.
(Miguel Torga).

Entremos, apressados, friorentos, numa gruta, no bojo de um navio, num presépio, num prédio, num presídio, no prédio que amanhã for demolido... Entremos, inseguros, mas entremos. Entremos, e depressa, em qualquer sítio, porque esta noite chama-se Dezembro, porque sofremos, porque temos frio. Entremos, dois a dois: somos duzentos, duzentos mil, doze milhões de nada. Procuremos o rastro de uma casa, a cave, a gruta, o sulco de uma nave... Entremos, despojados, mas entremos. Das mãos dadas talvez o fogo nasça, talvez seja Natal e não Dezembro, talvez universal a consoada.
(David Mourão Ferreira).

Natal... Na província neva. Nos lares aconchegados, um sentimento conserva os sentimentos passados. Coração oposto ao mundo, como a família é verdade! Meu pensamento é profundo, estou só e sonho saudade. E como é branca de graça a paisagem que não sei, vista de trás da vidraça do lar que nunca terei!
(Fernando Pessoa).

Natal é sempre o fruto que há no ventre da mulher
(Ary dos Santos)

20 dezembro 2016

Quero ir a um mercado de Natal

Onde estava e onde soube dos acontecimentos de ontem não há mercados de Natal, mas, se os houvesse, garanto que iria a um. Ainda não sei quando, nem onde, mas hei-de sair à rua de novo, no âmbito da quadra natalícia. E voltarei a sair as vezes que me apetecer no Porto, em Braga, em Paris ou em Berlim. Ponto final, parágrafo.

O embaixador russo foi assassinado em Ancara por um individuo que teve tempo para ficar exposto no local, umas largas dezenas de segundos a explicar ao que vinha e a dar alguns tiros esporádicos. Desta vez não era curdo; tivesse sido abatido de imediato e ainda se podia ter colocado essa hipótese tradicional.

Alepo tornou-se um símbolo do horror da guerra e há motivos para isso. No entanto não será mais martirizada do que Áden. Para quem não sabe, fica no Iémen, país que está a ser bombardeado e dilacerado há mais de ano e meio. Porque é que agora Alepo é um símbolo? Devido à intervenção musculada da Rússia, às alterações potenciais dos equilíbrios geoestratégicos e, também, às paixões positivas e negativas que o tema arrasta.

Que me perdoem os habitantes de Alepo que sofrem e morrem, mas o seu mediatismo recente é excessivo face ao esquecimento a que estão votados os seus irmãos iemitas e outros que apenas têm o azar adicional de não serem bombardeados por alguém suficientemente exposto à opinião pública ocidental.

16 dezembro 2016

A culpa das intervenções imperialistas


É argumento habitual de alguns regimes tristes como os castristas, os chavistas e outros paralelos ou sucessores dizer que as coisas não correm bem fundamentalmente devido a intervenções e perturbações provocadas por inimigos imperialistas. A sua incapacidade, incompetência e até mesmo desonestidade supostamente não pesam nos destinos azarados do seu país. A culpa é sempre dos boicotes externos.

O que eu nunca imaginaria era um dia assistir a uma narrativa destas da parte do Partido Democrático americano. Pelos vistos, a eleição de Donald Trump foi devida/influenciada pela intervenção dos russos! É evidente que os russos tentam intervir nos EUA, estes na China e em todo o lado e a China só onde não puder. Não há aqui espaço para virgens ofendidas, dado que as mesmas não existem nestes círculos.

A ser verdade, a ter existido uma manipulação ou influencia decisiva da Rússia, pobre democracia americana que afinal, mais do que contaminada pelos milionários donativos, estará condicionada pelos imperialistas soviéticos. O ego do Putin deve ter crescido para o dobro com a notícia. De recordar que, supostamente, matéria-prima para manipulação mediática existiria dez vezes mais do lado de Trump, do que do Clinton, da qual apenas ouvimos falar de uma utilização imprudente e indevida de uma conta de email pessoal.

Seria melhor que os Democratas americanos e outros paralelos olhassem um pouco para dentro antes de embarcarem nestas argumentações terceiro-mundistas.

10 dezembro 2016

Ne me quittes, quoi?


Já tive oportunidade de expressar aí para trás a enorme admiração que tenho pela inteligência, sensibilidade, inspiração, humanidade, persistência e determinação do grande Jacques.

Um dos seus temas mais populares é o “Ne me quittes pas” e pode-se questionar se faz sentido alguém, por amor, dispor-se a ser “a sombra da tua sombra, a sombra da tua mão, a sombra do teu cão…”.

Acho que há duas leituras possíveis do poema. Essa, mais direta, com um suposto destinatário concreto, uma Marieke, Madeleine, Mathilde ou Isabelle, mesmo sem estar explicitamente nomeado. Outra, alternativa, não tem um nome próprio associado. Brel fala ao amor, à capacidade de se enamorar, à possibilidade de se apaixonar, coisa que, falhando, até os reis morrem.

E isso deverá será sempre possível, porque até do vulcão mais morto o fogo pode brotar de novo, porque mesmo nos campos mais áridos podem voltar a nascer pujantes searas.

Enfim, a poesia não tem que ter leitura única e redutora. Ao fim ao cabo, tantas vezes, são apenas palavras insensatas, mas que alguém entenderá, nem que seja invocando pérolas de chuva de terras onde nunca chove.

08 dezembro 2016

O significado do 1ª de Dezembro

Achei assaz caricatas as argumentações em torno da importância da re-celebração do feriado do 1º de dezembro, por parte de alguns cortesões e seus arautos. Não falhou a quase coincidência da visita dos reis de Espanha para dar mais enfase e dramatismo à “importância da coisa”. Não se defenestraram os Vasconcelos, responsáveis pela anterior supressão do feriado, mas vontade não te faltou.

Sejamos práticos. Antes, alguém achou que devíamos trabalhar mais e suprimiram-se alguns feriados, incluindo este; agora dizem que a coisa estará melhor, repõem-se e o pessoal gosta, independentemente de ser o dia da restauração da República, do gaspacho algarvio ou dos rojões à moda do Minho (esta última opção proporcionaria uns programas de comemoração interessantes…!).

Mais importante do que comemorar a restauração é trabalhar para manter essa tal independência. Aliás, não me parece fazer sentido comemorar a restauração e ignorar a proclamação inicial. A batalha de S. Mamede ou de Ourique, não merecem nada? E a de Aljubarrota? E o dobrar do cabo Bojador ou do da Boa Esperança? E o Eça e o Fernando Pessoa?

Não se enganem com estes auratos trauliteiros. Se para ganhar ou manter o poder, for necessário celebrar o nascimento de Madre Teresa de Calcutá, a morte Fidel Castro ou até mesmo todas as Luas Cheias… eles já lá estão!

06 dezembro 2016

Reduz as necessidades?


Os dias de reparação de uma avaria colocaram-me nas mãos um modelo de telemóvel duas gerações atrás do atual. Esta marca tem a facilidade de conseguirmos replicar a configuração de um aparelho e assim o substituto ficou quase igual ao original.

Dentro do quase que não era igual, estava o tamanho até para melhor, mais tamanho de telemóvel. A seguir, a velocidade, incrivelmente mais lenta. Quando o anterior seguia os meus toques a toque de caixa sem protestar, para este não valia a pena dar muitos toques seguidos, era um de cada vez e vamos com calma.

Ora bem, esta limitação tem algo de didático. Será que eu precisava mesmo de dar os outros toques seguidos e andar para trás e para a frente, tantas vezes sem acertar à primeira com o que realmente queria fazer? No caso do substituto diminuído, eu era obrigado a pensar mesmo no que queria fazer e a tentar ir direto ao objetivo, já que o andar para trás e para a frente era penoso.

Aos poucos ou aos muitos, perdemos a noção da limitação das capacidades neste campo dos bits e dos bytes, que agora até já só se medem dos giga para cima. Desdobramos e replicamos informação, sem conta nem medida. A facilidade de clique e desclique, para a frente e para trás, vista ao longe, sem som nem legendas, faz-nos parecer baratas tontas. Por um lado é ótimo não sentir limitações, por outro lado não o gerir é mau. Quando precisarmos, provavelmente não saberemos.

“Reduz as necessidades, se queres passar bem”. Jorge Palma

05 dezembro 2016

Inimigo do inimigo

O inimigo do nosso inimigo pode ser um aliado útil, especialmente num contexto de guerra, num dado momento, dentro de táticas de curto/médio prazo. Como o mundo não é a preto e branco, possui várias dimensões (nem se divide apenas entre direita e esquerda), essa solidariedade automática com o inimigo do inimigo, é muitas vezes uma simples manobra oportunista. Uma vez derrotado o inimigo, o casamento de conveniência corre o risco de não sobreviver à vitória, caso as diferenças de fundo permanecem e sejam significativas.

Estas considerações vêm a propósito do incensar da figura morta de Fidel Castro, a quem a esquerda reconhece o grande mérito de se ter oposto e desafiado um inimigo comum, o EUA. No entanto, a falta de liberdade no país, o subdesenvolvimento económico, as enormes desigualdades sociais entre as figuras do regime e o povo, as perseguições por delito de opinião, chegando às execuções, parecem ser irrelevantes para quem prefere destacar as cirurgias oftalmológicas oferecidas e o acolhimento de algumas crianças de Chernobyl. Evita Perón oferecia vestidos de noiva e máquinas de costura e o povo adorava-a; penso que a esquerda “engagée” nem tanto.

Esta brutal incoerência pode ter duas origens: ou uma espécie de cegueira, que perdoa tudo aos “nossos”; ou considerar que ainda estamos em guerra e, sendo assim, todos os inimigos do inimigo são para apoiar... até mesmo a Coreia do Norte ? Em ambos os casos, não falem em princípios, pode ser?