24 outubro 2016

O deserto é monoteísta?


Há frases que, quando chegam, entram com estrondo, sem pedir licença e se nos instalam imponentes e inamovíveis. Numa nota de rodapé de um livro que estou a ler, o Al-Muqaddima de Ibn Khaldun, uma espécie de história universal escrita no século XIV e que me dará temas para mais algumas reflexões, o tradutor chamava a seguinte frase de Ernest Renan, filósofo, historiador e escritor francês do séc XX.

“O deserto é monoteísta”. É uma frase fantástica de reflexão e provocação. Se realmente as religiões monoteístas nascem no deserto, podemos ver aí um dedo do infinito, a opressão e angústia dos grandes espaços, a necessidade do rigor e disciplina para a sobrevivência, o valor da frugalidade e, já agora, a plenitude da felicidade não ser atingida nesta vida árida terrena, mas sim transferida para uma outra existência futura?

Ao passear em torno da expressão, encontrei uma frase resposta, complementar, ser arriscada por alguns: “a floresta é politeísta”. A fertilidade, a alegria das cores, a diversidade da natureza farta não cabem num deus único e precisam de uma paleta de deuses que esteja à altura de tanta exuberância?

A citação inicial enquadra-se numa perspetiva desenvolvida por Ibn Khaldoun, defendendo a superioridade moral, maior coragem e empenho dos homens nómadas, fruto da necessidade de sobreviverem num deserto agreste, face aos citadinos amolecidos nas carnes e nos espíritos pelos confortos e facilidades do seu modo de vida. Acrescenta que os nómadas vencem os segundos com alguma facilidade, devido à sua têmpera mais rija, mas depois sedentarizam-se e degeneram.

Fazendo um salto perigosíssimo para a teologia. As religiões monoteístas do deserto, em confronto, com as da floresta levam/levaram a melhor, mas depois têm dificuldade em manterem-se com a mesma forma depois da vitória? Exemplos não faltam. Por acaso estou até a ver uma série sobre os Bórgias, mas nem é preciso ir tão longe.

Mesmo sem chegar às divergências da prática, permanecendo sob os princípios e as suas evoluções. Que relação têm as fecundas “Nossas Senhoras“ com o ascético deserto dos profetas? Não haverá aqui já uma espécie de florestação do deserto?

Há aqui pano para muitas mangas…!
Imagem: Entre o deserto argelino e uma araucaria brasileira...

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