06 outubro 2025

Funda, mas não sangra

Há uns anos, numa praia, assisti a uma cena algo caricata. Uma criança tinha-se ferido num dedo e, desatado o berreiro, lá veio a comitiva de mamã e titis para averiguar e ajudar. Ouvi um diálogo curioso:

- Ai que golpe tão profundo que fizeste!

Alguém questionava: - E sangra?

Sendo a resposta: - Não sangra, mas é muito fundo!!

Lembrei-me disto a propósito de os ativistas da flotilha libertados se queixarem de ter havido espancamentos. Ora bem, um espancamento deixa sinais, nomeadamente, pelo menos, uma nodoazita negra. Se existisse um ativista assim marcado, já a imagem teria corrido este mundo e o outro. Terá sido assim tipo ferida funda, mas que não sangra. Digamos que para quem considera Israel um Estado assassino, até podem considerar que regressaram bem de saúde e em aparente boa forma.

Afirmações que estão ao mesmo nível das afirmações da ativista Ana Alcade, a “Barbie Gaza”, segundo a qual o Hamas não violou mulheres israelitas durante o ataque do 7 de outubro. Tudo gente séria.

Espero um dia saber donde vieram os fundos para esta viagem…

05 outubro 2025

Viva a República ?

 Certamente que o modelo republicano, em que o chefe de Estado é eleito pelo povo, é potencialmente mais justo do que uma transição hereditária, se bem que podemos sempre ter uns eleitos totós e uns príncipes finos.  A república não é por si garantia de um regime justo e de pleno direito. Não compro a suposta supremacia da “ética republicana”. Num ranking de mérito ético, tenho dificuldade em colocar François Miterrand à frente de Isabel II, por exemplo. Não faltam monarquias com sociedades livres e justas e repúblicas ditatoriais e repressivas. Não é o modelo que tudo resolve.

Quanto a Portugal, entendo que a verdadeira revolução disruptiva foi a de 1820, que abriu caminho ao esvaziamento do poder “divino” e da arbitrariedade dos monarcas. Em 1910, matar o rei para proclamar uma república incompetente e violenta, que falhou completamente e que abriu a porta ao estabelecimento do Estado Novo, desculpem, mas não a valorizo muito…

04 outubro 2025

O comércio das boas causas

Há uma coisa que me repugna fortemente. É ver evocada uma boa causa, justa e solidária, quando a agenda e os objetivos reais são outros. É o caso desta famosa flotilha e da sua suposta missão humanitária. É evidente que se o objetivo fosse mesmo humanitário, as ações teriam sido outras. Qual o sentido de enviar uns barquitos ao longo de toooodo o Mediterrâneo, sabendo obviamente que nunca lá iriam chegar?  Também ainda estamos para ver qual a natureza e dimensão dessa ajuda embarcada.

O objetivo era chegar onde chegaram. Publicitar e sensibilizar a opinião pública para a guerra de Gaza. Têm todo o direito de o fazer, mas chamem os bois pelos nomes. Já agora, atirar os telefones para o mar… porquê? Que segredos continham? O caricato de mandar borda-fora as facas da manteiga também não se entende, mas não serão tão nocivas para o ambiente.

Fico na expetativa de ver uma nova flotilha organizada na direção da Crimeia, ilegalmente ocupada, para protestar contras as atrocidades cometidas pelos russos na Ucrânia… mas não a iremos ver. Não estaria alinhada com a agenda políticas destes ativistas e, se de lá se aproximassem, a abordagem e o tratamento recebido seria certamente bastante mais violento do que o agora aplicado pelos malvados israelitas.

03 outubro 2025

Olhando o Islão (X)


10) Os petrodólares

Após o fim do califado, deixou de existir um líder global do mundo muçulmano. Tentativas de ocupar o lugar não faltaram. Gamal Nasser, a partir do Egito, sonhou com um “pan-arabismo” que voltasse a reunir todos aqueles povos. O rei Hussein da Jordânia, invocando que a sua ascendência chegava a Maomé, também com isso sonhou. Penso que terá sido por essa ambição que a Jordânia permaneceu na Cisjordânia, após a guerra da independência de Israel, orgulhosamente controlando o Jerusalém histórico e impedindo a formação na altura do tal Estado Palestiniano, de que tanto se tem falado depois.

No centro da península arábica, entretanto tornada saudita, estão os locais originais da religião. Meca, a Meca, e Medina, a cidade de onde a expansão começou e onde está sepultado Maomé. Os sauditas têm pretensões a exercerem algum tipo de liderança sobre toda a comunidade muçulmana.

Após a guerra do Yom Kippur de 1973 e do choque petrolífero, as receitas do ouro negro disparam. Os sauditas estão ricos e têm os meios de tentar concretizar as suas pretensões. Como habitualmente compram tudo feito, vão imprimir a cartilhas da Irmandade Muçulmana, que não anda muito longe do seu credo rigoroso wahabita, vão construir escolas/madraças e pagar professores/imanes para isso ensinaram.

Portanto... temos um terreno fértil que são as desilusões pós-independências; temos as sementes na ideologia salafista e acrescenta-se a irrigação com os petrodólares. Estão criadas as condições para o desabrochar das radicalizações.

Convém referir que as relações da Irmandade com as monarquias do golfo, não são continuamente estáveis. Há alturas em que o poder sente que ela tem demasiada influência e ambição, os ameaçam e zangam-se. Neste momento com o Qatar está tudo bem e com os sauditas está tudo mal… amanhã, logo se vê.

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02 outubro 2025

Entre a vida e o evangelho

Ernest Renan foi uma das grandes figuras da filosofia e teologia do século XIX. Não diria dos mais relevantes porque a minha bagagem no domínio não chega para estabelecer superlativos. De todas as formas, vale a pena ler o que ele escreveu.

O livro acima representado, “Vida de Jesus” é uma visão de historiador, a partir da análise crítica dos evangelhos e de outras fontes contemporâneas, procurando estruturar e descrever a vida de um dos personagens mais marcantes da história da humanidade.

Uns séculos antes, o livro estaria na fogueira e o seu autor provavelmente também. Isto porque a realidade eventualmente não coincide com o que os cânones oficiais em concílios posteriores consagraram.

Acho que o livro é potencialmente mais disruptivo e polémico para os crentes do que, por exemplo, o cá famoso livro de J. Saramago, “O Evangelho segundo Jesus Cristo”. Por muito provocativo que seja, este é um livro de ficção e porque, desculpem lá alguns, Saramago põe uma narrativa diferente da oficial na boca de Cristo, mas, de certa forma, não belisca o seu estatuto divino. É divino, na mesma, mas de forma diferente.

O livro de Renan é científico e cru. Ele humaniza Cristo, mas isso acaba, por efeito colateral, por desumanizar a religião. Acredito que toda a religião, e respetiva fé, necessitam de uma dimensão “fantástica” e algo para lá da racionalidade objetiva. O livro desmonta uma boa parte dessa “fantasia” …

A génese das religiões, e especialmente com a dimensão que esta irá alcançar, é um tema fascinante. Apesar da minha reduzida bagagem, parece-me que este livro será... obrigatório. Fica feito o aviso aos crentes.

 

 

01 outubro 2025

Olhando o Islão (IX)


9) O pós-colonialismo

Após o final do império Otomano, a região vai desmembrar-se em vários Estados, mais ou menos homogéneos, mais ou menos patrocinados pelo Ocidente. Já em 1916 o acordo Sykes-Picot (UK – França) definia a futura repartição da herança Otomana entre os dois países. Grosso modo Damasco para os Franceses e Bagdad para os britânicos… mais uns trocos.

A colonização europeia do Médio Oriente será efetiva apenas entre as duas guerras. No final da II, as independências chegam, incluindo para o Norte de África. Este novo estatuto é saudado e gerador de muitas expetativas. Agora que somos nós que mandamos em nós, sem interferenciais culturais e religiosas externas… agora é que vai ser!

Uma geração depois torna-se óbvio que não foi grande o sucesso. Não é aqui o espaço para desenvolver a análise das razões, mas o facto é que os resultados são dececionantes.

Os novos regimes, muitos deles autoritários e com forte dominância de uniformes militares, são muçulmanos, naturalmente, mas “non troppo”. Do ponto de vista social e especialmente do estatuto da mulher são até mais tolerantes do que se verá mais tarde.

À vista do que corre mal, virão os salafistas dizer “isto corre mal porque os nossos dirigentes não são muçulmanos rigorosos, como deveriam ser”. Este desafio vai correr mal para muitos, ver acima Nasser e Qutb.

Esta pressão política religiosa terá como resposta um maior rigor nas práticas, buscando assim os regimes protegerem-se contra as acusações de serem “fracos muçulmanos”. Em sentido contrário, claramente, a todas as tentativas de modernização.

Um pequeno exemplo. Após a independência a Argélia mantém o fim de semana ocidental, sábado e domingo; em 1976 sobre a pressão islâmica passam a quinta-sexta-feira; em 2009, por pressões de competitividade num mundo, apesar de tudo mais globalizado, passaram a um meio termo de sexta-feira e sábado. Um bom exemplo destas evoluções e involuções.

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