28 fevereiro 2010

Compulsos (7)

(Começou em )
Bem-vindos! Bem-vindos a este círculo dos compulsivos. Todos temos pulsões e compulsões, apenas a sua natureza e ponderação muda. Se as misturarmos e as distribuímos na boa medida, seremos todos normais.

Eu, dizia um, não consigo sair da internet

Eu, dizia uma jovem muito jovem, não consigo pensar ou considerar o futuro. Sou incapaz de projectar algo para a frente, de fazer algo que o prepare, nem sequer me preocupar com isso. Sim, eu sei, não façam já essa cara. Tenho quem me alimente a conta bancária, mesmo que eu esteja a dormir todo o dia. Aliás nem sequer penso nisso. Os meus pais fazem-no sempre que o acham necessário. É um privilégio que não é para todos é claro. Se passasse fome, pensaria de forma diferente. E podia ser diferente sem passar pela fome, mas é ridículo. Todos ficamos feios com o tempo, todos! Que ganho eu em considerar isso, deprimir-me agora?!

Então ela falou. É lugar comum dizer melhor leão um ano do que cordeiro cem. E é fácil concordar com isso no dia zero do ano 1, mas na prática não conseguimos viver apenas esse único ano. Que fazer nos 99 anos seguintes ou 30 ou 40 que sobram? Voltar a ser cordeiro? Alguém consegue ser tranquilamente cordeiro depois de ter sido uma vez leão? Não, não olhem para mim pensando em leões imperiais, pensem apenas em ter coragem de viver um sonho... e calou-se. Ora bolas, já só cá faltava o toque de melodrama. Talvez assim tenham entendido melhor, mas que me importa se entendem ou não?

Imagino, dizia ele, imagino que amanhã serei leão. E é essa expectativa que me tira da cama todos os dias. E tenho liberdade para pintar a forma como o serei como bem me apetecer. É certo que não caço nada, mas também não serei caçado e muito menos reformado. E ela sorriu com um toque de compaixão que ele leu como resignação.
Continua para

27 fevereiro 2010

Sebastianismo

A Claude pediu e eu já não fui a tempo de dar umas ideias e visões sobre o Sebastianismo para um trabalho que ela estava a preparar. Não consegui digerir o assunto em tempo útil. Entretanto recebi uma cópia do trabalho dela, excelente, e ... é sempre mais fácil dar um palpite após ver algo já feito do que começar na folha em branco.

O mito do Sebastianismo hoje é numa primeira abordagem associado a um “saudosismo” serôdio. Um pouco como aquele clube de futebol lá de capital que até ainda há bem pouco tempo achava suficiente dizer: “Já fomos grandes, havemos de reencontrar as glórias passadas”, sendo que a estratégia, o trabalho e o suor necessários para lá chegar são um pormenor facultativo. Um pouco ao estilo da fatalidade mediterrânica, margem norte e margem sul, que diz: “Se Deus quiser.../Inch’allah...”, como se atingir um objectivo, pouco ou muito ambicioso, dependesse exclusivamente da vontade de um deus, declinado diferentemente conforme o contexto, e não do empenho, do compromisso .. e do suor.

Mas essa visão do Sebastianismo talvez seja redutora. É que há muitas situações em que o racional diz que “não vamos lá, não temos meios suficientes, tempo, é absolutamnte impossível, é uma batalha perdida à partida, etc...”. E, nessas alturas, a força anímica tem que vir do irracional, do místico e de acreditar que o impossível pode ser possível, tal como o regressar um dia de um redentor numa manhã de nevoeiro. Aliás, o tempero do nevoeiro é curioso. O inexequível e o insensato não se dão bem com a luz franca.

Em resumo, uma postura de acção, ou mais propriamente de inacção, baseada numa espera de algo que nunca irá acontecer é muito negativo e fatal. Agora, no desalento, na mó mais baixa, acreditar que a motivação da acção pode ter uma base irracional é talvez a única saída. E também é verdade que Portugal é um país com uma identidade de aço e que inventará e acreditará no que for preciso para subsistir.

19 fevereiro 2010

Compulsos (6)

(Começou em)
Após o silêncio, ela falou. Acho que descobri que não risco apenas como esgoto de mim, como barco de papel que se põe na corrente de um regato e parte. Muito precário, é certo, e efémero, mas por um momento lançamos algo nosso ao mundo. Por isso não olhava muito para o que tinha riscado. Mas ontem foi diferente. Parece que desenhei algo que me buscava. E parou abruptamente. Estúpida! Só faltou dizer que fazes desenhos como os outros põem anúncios pessoais nos jornais ou nos sites sociais. Além de estúpido é ineficaz. Ou imaginas que um príncipe encantado passará e espreitará pela janela nesse momento, se identificará no teu risco e serão felizes para sempre??

E desta vez sem esperar sinal, lá vinha o da imaginação de novo. Eu às vezes imagino que vou para lá do imaginar. E imaginar que não se imagina é equivalente a bloquear, não é? Imaginava que ia ter um jantar bonito, depois imaginava que não o devia imaginar! O que sobra? Uma vontade de não jantar, de, pelo contrário, de me vomitar. E não sei se continuarei a gostar de mim, depois de me vomitar.

Nesse momento cruzaram os olhares. Ela tinha cara de estar a imaginar algo e ele, ele conseguiu sorrir brevemente.
Ela saiu pensando no imaginar não imaginar. Questão matemática simples: colocando e depois tirando, fica nada. Essa entende-se. Entendia menos aquilo de o menos por menos dar mais. Sobretudo porque o mais por mais não dava menos mas sim mais...
Ou seja, o menos não era apenas o complementar do mais. O menos valia menos do que o mais, porque se anulava a ele próprio. Nasceria aí a diferença entre o bem e o mal? O resto da viagem até casa fê-la a tentar imaginar como poderia ser o menos dos seus traços... e o menos dos menos? E, ainda por cima, a maior parte das vezes o positivo e o negativo são definidos arbitrariamente pelo sentido de uma pequena seta que se pode colocar a apontar para um lado ou para outro.

Daquela vez ele não pensou em automóveis avariados nem na sua solícita e salvadora intervenção. Apenas no dilema da mulher do traço. Conseguiria ela assim tão facilmente jorrar coisas para fora dela, esquecendo-se delas a seguir. Não podia. Somos seguidos pelo que fazemos e pelo que criámos, não podemos deixar algo nosso ir pela corrente abaixo sozinho descobrir as pontes do mundo. Pois... O que ela riscava era um diálogo aberto que sobranceira e orgulhosa ignorava, chamando-lhe monólogo cego e mudo. Não sabia ela que estava a deixar sinais por todo o lado, deixando uma pista que qualquer cego podia seguir? E ela agora parecia estar a descobri-lo. Quando o descobrisse iria chocar-se e gritaria com muita força, tentando apagar os grafitis de si mesma que tinha deixado pelo mundo. Procuraria o mais depois do menos, para anular... ah ah ah! Ingénua!
Continua para

18 fevereiro 2010

O homem é fino...

Se um dia o acusarem de ter feito o que previamente tinha anunciado não fazer, ele dirá: eu nunca disse que não o faria, eu disse sim é que nunca o façaria e desafio qualquer um a provar que eu alguma vez o tenha facido!

Facer uma gafe qualquer um pode facer, agora, depois de estar faceita continuar a falar como se nada façosse, sem o detectar nem reagir, essa é que já é uma grande falta de .... (e aceitam-se adjectivos).

13 fevereiro 2010

Compulsos (5)

(Começou em)

Bem-vindos! Bem-vindos a este círculo dos compulsivos. Todos temos pulsões e compulsões, apenas a sua natureza e ponderação muda. Se as misturarmos e distribuímos na boa medida, seremos todos normais.
- Eu, eu não consigo deixar de me apaixonar pela protagonista dos filmes que vejo, independentemente do seu perfil físico e psicológico. Normalmente é bom porque a maior parte das vezes, é uma rapariga simpática, bem parecida e boa pessoa, que a minha mãe não se importaria de ter como nora. Mas, há casos dramáticos. Quando me apaixono por uma de mau carácter sinto-me mal comigo mesmo, quando é idosa assusto-me, quando é lésbica sinto-me culpado e quando há duas em pé de igualdade sinto-me depravado. E só perco a paixão com novo filme. Por isso, às vezes tenho que entrar rapidamente noutra sala para a sessão seguinte e outras vezes não me apetece ver um novo filme durante meses.

E terminou com um sorriso angelical de quem não se sentava num sala de cinema há bastante tempo. Por um momento ninguém comentou. Ele apenas disse: por vezes é bom imaginar coisas, não? O apaixonado na tela não respondeu, estava exausto para o dia.

- Eu, não consigo ter o meu telemóvel a mais de 30 cm de mim. Durmo com ele sob a almofada. Não posso ter um toque não detectado ou uma mensagem escrita não lida mais do que um minuto. Fico em pânico se o telemóvel perder a bateria. No início tinha uma bateria de reserva, depois passei a ter também um telemóvel de reserva e poder trocar o cartão em caso de avaria. Agora tenho um segundo cartão preparado para substituir o anterior caso avarie, o perca ou seja roubado. Tenho ainda um terceiro telemóvel para poder contactar a operadora e pedir a transferência do número principal para o cartão de reserva em caso de necessidade.

Olharam todos com apreensão, cada qual para o seu telemóvel, para verificar quantos tracinhos de bateria restavam e procurando avaliar pelo aspecto e robustez do aparelho o tempo de vida que lhe sobraria....
Continua para

12 fevereiro 2010

Ucrânia

Este mundo globalizado e buliçoso tem uma grande capacidade de nunca parar de nos interrogar, surpreender e fazer reflectir. Desta vez é sobre gente, casas e gente que não tem sítio a que chame afectivamente casa.

No mesmo banco de um aeroporto apinhado, uma expatriada em partida definitiva identificou-me a família pelo logótipo no mostrador do meu PC, família que tinha tido um ponto comum com a sua, ponto de partida para um curto diálogo.

Terminado o projecto em curso, ela avançava para outro, desta vez no país natal, Ucrânia, e num local bem conhecido por todos: Chernobyl.

É bom regressar a casa? Era bom sair daquele local, mas para ela o seu país natal não era equivalente a casa. E se o Ianukovitch ganhar as eleições vai ser ainda pior. Metade do país queria ser russo, metade, onde ela se incluía, queria ser ocidental. A língua aprendida na escola era o russo, não a deles. Nada acontecia, nada mudava e estas eleições iriam provavelmente matar a esperança. Depois, um estrangeirado de regresso, não é necessariamente bem recebido e integrado. Mas é bom regressar a casa ou não? Casa é sempre casa, não é? Casa...? Não... é um local como muitos outros e não especialmente interessante, dizia encolhendo os ombros com uma indiferença mal encenada e um sorriso resignado.

De partida para o embarque disse o nome: Olga. É um nome russo, não é?

E no fim de semana passado o Ianukovitch ganhou as eleições.

10 fevereiro 2010

Os políticos mentem?

Se fosse realizada uma sondagem com a questão acima, qual a percentagem de respostas afirmativas? Enorme, seguramente. Pelo menos muita gente o afirma alto e bom som em cada canto e esquina. O primeiro-ministro ter dito uma oficialmente uma coisa no parlamento e ser apanhado informalmente numa escuta em contradição, é mau. É indubitavelmente mau, mas... de todos os excitados que vêem neste episódio mais uma ponta por onde pegar e esticam a corda, quantos atirariam a primeira pedra se soubessem que os registos do seu telemóvel poderiam cair na praça pública? (É apenas uma pergunta retórica minha...).

Um governo tentar condicionar a comunicação social é mau, inaceitável e condenável, mas também não terá sido a primeira vez nem será a última. Agora, toda esta agitação tem a ver com a importância dos princípios? Não, não tem. Há excitação a mais e falta de decoro para ser sério. A oposição pega entusiasticamente no assunto pelo cheiro a pólvora e pelas munições adicionais para o combate político/politiqueiro e não pelo fundo da questão em si. Os mesmos jornalistas que consideraram inaceitável a publicação do email de um seu colega no DN clamam agora pela “liberdade de expressão total”. Se um microfone escondido gravasse todos as suas falas, noite e dia, públicas e privadas, banais ou íntimas, imprimi-las num jornal entraria dentro do seu conceito de “liberdade de expressão”. Proibir essa divulgação seria censura?

Pelo seu estilo controverso, por ter tocado, mal ou bem, em vários interesses e corporações, José Sócrates tornou-se alvo de uma verdadeira carreira de tiro. O combate político resume a atingi-lo e apeá-lo. Se a liderança de José Sócrates do partido e do país perdeu credibilidade, ela vai cair por si. E isso os senhores da oposição ainda não entenderam. Não gastem as energias na delapidação, concentrem-se na construção de alternativas sérias e credíveis. Quem decide as eleições vota em líderes, não em coveiros. E, também me parece que um bom líder não é aquele que faz queixinhas para cima. Estou a falar naturalmente da intervenção de Paulo Rangel no Parlamento Europeu. Por tudo isto, José Sócrates pode dar-se ao luxo de continuar a gozar de algum grau de compreensão pragmática.

O índice “International living”, discutível como todos, de medida da qualidade de vida recentemente publicado, colocava Portugal no 21º lugar em 194 países. Pontuação máxima, 100%, para “liberdade” e “risco e segurança”; mínima 52% para “economia”. Não andaremos com as prioridades da discussão equivocadas?
Texto revisto em 12.02.2010

09 fevereiro 2010

Compulsos (4)

(Começou em)

Eu, disse ele, imagino porque acredito, Passivamente, é certo. Seria mais eficaz planear e realizar algo activamente, mesmo algo simples, do que tudo imaginar. Mas não chega. Porque sei que tudo o que quero não se planeia. Imaginando o simples e o audaz, ambos ficam em pé de igualdade. E não é aliciante ver o audaz e o simples ao mesmo nível?

O resto da assembleia não comentou, nem respondeu. Talvez não alcançasse bem o fundo. Uns olhares apreensivos até imploravam alguma distância de manias tão embrulhadas.

Encerraram a sessão. Ele imaginava que teria a audácia de a convidar para jantar, que teriam um jantar em que estariam aconchegados, interligados amenamente e isolados do resto. Que ela se despejaria para dentro dele, que ele a provaria e gostaria. Que no fim não fosse precisa imaginar a audácia, aconteceria simplesmente. Arrastou o passo, atrasando-se e imaginando que o carro dela poderia avariar e ele singelamente ajudar.

Ela saiu com a mão trémula, como ficava todas as vezes em que não tinha à sua frente um substrato para riscar. Passava-lhe intermitentemente à sua frente a imagem do sorriso que a tinha sossegado. Será que ele estaria nesse momento a imaginar ser audaz.. com ela? Provavelmente. E o que significaria nesse contexto, para o coitado, ser audaz? Deu por ela a imaginar todas as formas possíveis de audácia e dessa vez foi o seu próprio sorriso que fez parar a tremura da mão. Assustou-se. Imaginar que alguém se interessaria por ela fazia bem ao ego, certamente, mas ela gostar dela como era naquele momento por esse pouco, tão pouco, era tão pouco que não evitou o esgar.

Nem ele foi audaz nem o carro dela avariou. Imaginou que poderia encontrar o carro da Joana avariado no caminho. Seria um bom motivo para conseguir proximidade com ela e, quem sabe, até poderia convidá-la para jantar. Um jantar daqueles que corre bem, em que os espíritos se soltam, divagam e se entrelaçam brincando um com o outro. A Joana tinha um excelente espírito vivo e brincalhão. Ficou curioso tentando imaginar o espírito da mulher do traço.
Nesse dia ela não quis jantar. Desembrulhou um largo papel que pendurou na parede e, imaginando o João, atacou com força um desenho mais figurativo do que o seu habitual. No fim olhou a imagem turva e não lhe pareceu bem o João, pareceu-lhe mais algo que ela buscaria ou alguém que a estaria imaginando a ela.
continua para

08 fevereiro 2010

Pedir emprestado não é um acto de soberania

Pode-se, e talvez se deva, contestar as avaliações das agências de rating e as comparações de Portugal com a Grécia, mas esta polémica teve algum mérito. Ainda há 2 meses se achava que o défice era “relativo”, que bem governar poderia passar por aumentá-lo sem problema de maior, a oposição ainda sonhava em ser governo antes do fim deste ciclo eleitoral, continuando em alegre e agressiva campanha, tudo numa grande festa. O mérito da polémica foi lembrar que pedir dinheiro emprestado não é um acto de soberania.

Quem precisa de pedir dinheiro emprestado, está sujeito às regras e às condições de quem empresta. E quem empresta é naturalmente aconselhado por quem sabe/deve saber analisar a qualidade dos devedores. Se as agências de rating manipulam as avaliações para aumentar a percepção de risco e conseguirem maiores remunerações para os seus clientes, é grave. Se não estão suficientemente informadas e lançam palpites com ligeireza também não está certo. A ser assim, isso deveria ser escrutinado e esclarecido, sendo que se está em causa a sua credibilidade, ficará imediatamente em jogo a sua sobrevivência.

Pode a situação portuguesa ser muito diferente da grega, mas vejamos o que se tem passado em termos de governação desde as últimas eleições: ameaça permanente de maioria negativa de bloqueio, parlamente aprova leis avulsas contra a politica anunciada pelo governo, o sempiterno folhetim Madeira, o governo em zigue-zage a fugir das pingas da chuva em infindáveis negociações e cedências... Agora, imagine-se isto visto do exterior pelos potenciais financiadores. É tranquilizador? Seguramente que não o é. É que, ainda por cima, nem sequer se podem nacionalizar essas agências de rating...

03 fevereiro 2010

Compulsos (3)

(Começou em)
Bem-vindos! Bem-vindos a este círculo dos compulsivos. Todos temos pulsões e compulsões, apenas a sua natureza e ponderação muda. Se as misturarmos e distribuímos na boa medida, seremos todos normais.
Eu, eu não consigo deixar de chorar ao ouvir uma voz feminina cantar uma balada suplicante, daquelas que vêm lá do fundo com palavras de amor, eternidade e outras declarações empolgadas e ternas. Não deixo de chorar nem deixo de ouvir e repetir e repetir ininterruptamente.

Foram respondendo os outros que gostavam de ver isso na televisão, que geralmente essas cantoras eram irresistivelmente atraentes, que já tinha comprado vários CD’s desses e que era um grande gozo fazer uma ultrapassagem com uma música dessas bem alta.

Outra dizia que não conseguia deixar de ler em voz alta, qualquer painel ou anúncio na rua: o nome da rua, do hotel, do restaurante, a publicidade da cerveja, as placas topográficas, as indicações de itinerário, os títulos dos jornais nos escaparates, as ementas nos restaurantes, os horários dos comboios...

Ora..., isso é quase normal, disseram todos...

Mais uma vez ele foi acusado de quebrar o círculo e ela esticou o tronco pedindo mudamente a palavra com autoridade.
Quando risco esvazio-me tentando substituir um recheio que não me agrada. Quanto mais me desagrada, mais premente e violento é o risco. Coisa de acelerar a renovação, coisa de me manter activa. Porque se está algo sempre a sair, é porque alguma coisa se está lá dentro a criar, não é?
Parou abruptamente. Daquela vez tinha ido longe de mais. Só faltou ter dito que sentia necessidade de mudar a pele de dentro como as cascavéis mudam a pele de fora. Sim, tinha parado e olhando o sorriso que ele lhe dirigia, por um momento, sentiu-se bem estando parada.
Continua para

02 fevereiro 2010

Monárquico para quê ?

No centenário da implantação da República é estranho como tanta gente continua ainda a questionar e a recusar este modelo, preferindo a monarquia. Se a repulsa é consequência dos tempos pouco abonatórios para a República que se seguiram ao 5 de Outubro, o período monárquico que o precedeu também não foi nenhum exemplo. Só que uma coisa é o contexto transitório e outra coisa é o modelo. A revolução francesa teve um pós-parto terrífico, mas não é por isso que são postos em causa os seus princípios.

Penso que hoje já ninguém defende a monarquia com poder executivo. A história demonstrou cabalmente que a hereditariedade nem sempre funciona, obrigando a rupturas muitas vezes violentas. Como vêem os monárquicos a ruptura da 1ª para a 2ª dinastia: justificável ou condenável? Ambas as respostas são desconfortáveis. Deve ser possível substituir legitimamente a incompetência sem revolução, sangue e guerra.

A monarquia é então apenas representativa? A representação de um país pela esfinge de um monarca em selos, moedas e capas das revistas sociais é razoável? Acho que não. A representação e a identidade de um país devem ter sólidas raízes de índole cultural e não serem fruto do acaso no cruzamento mais ou menos feliz de ADN’s, ainda por cima tantas vezes atormentados com toques de consanguinidade. Portugal é representado dignamente pela obra de Camões e da demais gente brilhante que por cá passou, que por mérito próprio da lei da morte se libertou e não por uma sucessão de primogénitos descendentes da casa de Bragança, ou outra qualquer.

Existem muitos países recomendáveis que mantêm a monarquia? Sim, mas é um pouco como guardar na sala um móvel antigo que na prática não serve para nada. Habituamo-nos a vê-lo no canto da sala e temos pena de o deitar fora, apesar de tantas vezes atrapalhar e provocar trapalhadas, ficando limitado a uma função decorativa. Nós, com mais ou menos clarividência e justiça, deitamos ao lixo o móvel bolorento há 100 anos. Há alguma razão ou vantagem em pôr de novo na sala um restauro foleiro? Eu não vejo a mínima utilidade...