19 fevereiro 2010

Compulsos (6)

(Começou em)
Após o silêncio, ela falou. Acho que descobri que não risco apenas como esgoto de mim, como barco de papel que se põe na corrente de um regato e parte. Muito precário, é certo, e efémero, mas por um momento lançamos algo nosso ao mundo. Por isso não olhava muito para o que tinha riscado. Mas ontem foi diferente. Parece que desenhei algo que me buscava. E parou abruptamente. Estúpida! Só faltou dizer que fazes desenhos como os outros põem anúncios pessoais nos jornais ou nos sites sociais. Além de estúpido é ineficaz. Ou imaginas que um príncipe encantado passará e espreitará pela janela nesse momento, se identificará no teu risco e serão felizes para sempre??

E desta vez sem esperar sinal, lá vinha o da imaginação de novo. Eu às vezes imagino que vou para lá do imaginar. E imaginar que não se imagina é equivalente a bloquear, não é? Imaginava que ia ter um jantar bonito, depois imaginava que não o devia imaginar! O que sobra? Uma vontade de não jantar, de, pelo contrário, de me vomitar. E não sei se continuarei a gostar de mim, depois de me vomitar.

Nesse momento cruzaram os olhares. Ela tinha cara de estar a imaginar algo e ele, ele conseguiu sorrir brevemente.
Ela saiu pensando no imaginar não imaginar. Questão matemática simples: colocando e depois tirando, fica nada. Essa entende-se. Entendia menos aquilo de o menos por menos dar mais. Sobretudo porque o mais por mais não dava menos mas sim mais...
Ou seja, o menos não era apenas o complementar do mais. O menos valia menos do que o mais, porque se anulava a ele próprio. Nasceria aí a diferença entre o bem e o mal? O resto da viagem até casa fê-la a tentar imaginar como poderia ser o menos dos seus traços... e o menos dos menos? E, ainda por cima, a maior parte das vezes o positivo e o negativo são definidos arbitrariamente pelo sentido de uma pequena seta que se pode colocar a apontar para um lado ou para outro.

Daquela vez ele não pensou em automóveis avariados nem na sua solícita e salvadora intervenção. Apenas no dilema da mulher do traço. Conseguiria ela assim tão facilmente jorrar coisas para fora dela, esquecendo-se delas a seguir. Não podia. Somos seguidos pelo que fazemos e pelo que criámos, não podemos deixar algo nosso ir pela corrente abaixo sozinho descobrir as pontes do mundo. Pois... O que ela riscava era um diálogo aberto que sobranceira e orgulhosa ignorava, chamando-lhe monólogo cego e mudo. Não sabia ela que estava a deixar sinais por todo o lado, deixando uma pista que qualquer cego podia seguir? E ela agora parecia estar a descobri-lo. Quando o descobrisse iria chocar-se e gritaria com muita força, tentando apagar os grafitis de si mesma que tinha deixado pelo mundo. Procuraria o mais depois do menos, para anular... ah ah ah! Ingénua!
Continua para

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