30 outubro 2025

Sobre o Estado Novo


O Estado Novo foi um longo período da nossa história recente e de cujo balanço não teremos muitos motivos para orgulho. Como convém que certas histórias não se repitam, não basta pronunciar um “vade retro Satanás” sem procurar ir a algum detalhe. Aliás, um dos grandes defeitos na “narrativa” oficial sobre a sua origem é desvalorizar a enorme responsabilidade da I República, cuja prática e “ética” (?!) estendeu o tapete vermelho para a chegada e aceitação de um regime autoritário.

O livro acima representado é uma excelente viagem por esses tempos, onde ano a ano se faz um resumo da conjuntura histórica, uma seleção de excertos de discursos e outros textos e uma nota de contextualização dos mesmos. Muito interessante e revelador de alguns matizes nos pensamentos e ações dos vários atores deste período histórico.

Confesso que para lá dos bem conhecidos males do regime, autoritarismo, repressão, política africana irrealista, há algo que me parece relevante assinalar. É a falta de real ambição para o país. O promover o “pequenino”, baixar expectativas, sucessos houve muitos, no passado. Tão gloriosos foram que nos contentamos por ter um presente cuja glória, pequena como convém a um regime que defende a frugalidade a todos os níveis, fica na memória desse passado. O importante é não estragar nada, o fundamental é manter a ordem e respeitar… o passado. Grandes e novos desafios para o futuro não parecem ser prioridade.

Certo que se pode referir as obras públicas que ficaram, um importante crescimento económico na sua fase final, mas o tem geral é o de um regime bolorento e tacanho na sua visão do país, não se frutando a meios para garantir essa “estabilidade”.

Curiosida uma citação de Humberto Delgado em 1933. “Que tristeza! Eu julgava o Parlamento uma assembleia de homens e fui deparar com uma súcia de garotos dizendo piadas de sol uns aos outros, num barulho indecente próprio de praça de touros ou de taberna.”.  Tão modernos estes antigos ou tão envelhecidos os atuais modernos… talvez que em 1933 a missão de “estabilização” das instituições ainda não estivesse suficientemente avançada.

24 outubro 2025

A rua da burca


Portugal legislou algo que implica a proibição da utilização da burca em espaços públicos e “naturalmente” é tema para muita discussão, opinião e polémica. Cruzaram-se várias dimensões. A primeira será a sua “estranheza” face à nossa realidade. Para viver numa dada sociedade é necessário respeitar um certo número de “códigos” e práticas, que fazem a harmonia social e com o qual essa sociedade se identifica.  Não é xenofobia! Cuspir para o chão, arrotar em público, atirar piropos a mulheres que passam na rua, andar em tronco nu ou atravessar a rua fora da passadeira são pequenas coisas naturais e aceites em certos contextos e proibidas ou no mínimo mal vistas noutros. A visão de uma mulher “embrulhada” na rua não pertence certamente à nossa paisagem social.

A outra dimensão é a confessional e eventual conflito com as crenças de cada um. Aqui o Parlamento pode estar a colocar a foice em seara alheia, mas, no fundo, a burca não é uma “necessidade” da prática religiosa. Na origem o Corão impõe a necessidade de a mulher se apresentar publicamente com recato, sendo que a definição de recato evoluiu. Ainda há poucas décadas, por estes lados, uma mulher não devia sair à rua sem cobrir o cabelo… isso evoluiu.

Em resumo, era do interesse do Islão e dos muçulmanos procurar alguma atualização e contextualização dos seus princípios para poderem viver em harmonia nas sociedades ocidentais atuais. A burca é um anacronismo que devia ser banido. Se devem ser os Parlamentos a promover essa evolução é outra questão, mas que está mais do que na hora de fazer algo, está!

21 outubro 2025

Não foi politico !?

 

Diz o Engenheiro ( ?) Carlos Moedas que o acidente no elevador da Glória se deveu a causas técnicas e não políticas. Fiquei baralhado. Efetivamente o cabo e os freios são componentes técnicos (ainda bem que não são políticos…).

Fui ler o relatório do GPIAAF (aqui). Efetivamente do que se sabe, para já, não se pode indicar que por trás da desgraça tenha estado uma ação ou diretiva política direta, do tipo extinguir/reestruturar um serviço ou redução de orçamento. As não conformidades que de uma forma ou outra ajudaram/proporcionaram este desfecho são mais do domínio passivo do que ativo.

Falhas nos procedimentos internos, ausência de supervisão por entidades externas e muita ligeireza. Fazia-se como sempre se fez, sem se pensar muito em avaliar se é preciso fazer diferente.

Mais do que o erro “administrativo” na aquisição do cabo e na não detecção do erro, chocaram outras coisas.

Toda a gente que quisesse saber sabia que os travões não travavam suficientemente para serem redundantes a uma rotura do cabo e… tenhamos esperança de que este nunca rompa. Ninguém sabia/sabe ao certo o peso real das cabinas! Cito: “Há também indícios de que o peso das cabinas aumentou de forma não negligenciável desde o momento da eletrificação, existindo indicações díspares quanto ao peso atual, consoante os documentos: 14, 18 e 19 toneladas, cujo valor exacto é desconhecido da CCFL”. Lê-se e não se acredita. Outros pequenos/grandes exemplos de irresponsabilidade e de vazios nos procedimentos não faltam.

Mesmo o mantra dos sindicatos, apontando de imediato como causa a externalização dos serviços de manutenção não cola. A empresa externa disponibilizava recursos básicos que eram supervisionados muito proximamente pelos experientes técnicos da casa.

 As responsabilidades políticas e de gestão estarão mais no que não fizeram do que no que eventualmente fizeram. Os responsáveis têm também a missão de questionar e promover as mudanças necessárias. Esta situação de passividade otimista… é da responsabilidade de alguém.


20 outubro 2025

O PS desgeringonçou… ?


Dois fatos recentes poderão eventualmente prenunciar que o PS poderá estar em fase de desgeringonçar…

O primeiro é o resultado das autárquicas em Lisboa. A frente da chamada esquerda somou menos do que a soma das partes. De facto, para as eleições autárquicas não há geringonças pós-eleitorais. Têm que ser assumido antes e a ficção de um alinhamento largo de “esquerda” entre o PS e os radicais à sua esquerda provou, para muitos eleitores, ser isso mesmo, uma ficção. Resta uma curiosidade: se em 2015 a geringonça fosse anunciada antes das eleições, os resultados seriam idênticos?

O segundo facto é o apoio manifestado à candidatura presidencial de António José Seguro. Uma decisão naturalmente lógica, mas o tempo que demorou, as posições de certos cortesões do Rato e a ambiguidade da “flexibilidade” no apoio tolerado deixam muita expetativa. Foi um apoio decidido assim como quem arranca um dente e a ver vamos como o PS no seu fundo vai digerir este dilema. Quem se vai impor? O “partido invisível” dentro do PS que abomina Seguro ou um outro PS mais popular (perto do povo) e genuíno?

A bem do nosso regime democrático e do papel que o PS aí pode e deve desempenar é relevante o resultado. Eu cá tenho a minha preferência…

17 outubro 2025

Paz? Talvez…


O processo atualmente em curso na Palestina merece ser saudado e parabenizados todos os que o proporcionaram. Não sabemos, naturalmente, se se a paz será duradoura, mas a libertação dos reféns, pelo menos dos vivos, esvazia os argumentos de Israel para continuar a massacrar a população de Gaza e abre numa nova fase.

Enquanto houver um grupo com vontade de se afirmar aos tiros e alguém que lhe dê as armas, a guerra continuará. Em Gaza não faltará gente com vontade de fazer falar as armas, independentemente se estão enquadrados numa estrutura Hamas, Hamas-bis ou mesmo sem estrutura.

No entanto, aquele território, por si, não tem condições para se armar sozinho. Haver ou não guerra depende mais do que vão fazer os apoiantes e financiadores externos da “causa”. Não sei até que ponto eles foram envolvidos e comprometidos no atual processo, mas o futuro e a paz em Gaza não serão decididos em Gaza.


Atualizado em 19/10 com publicação no Público


14 outubro 2025

O terceiro partido


Das 308 câmaras municipais, PS + PSD ganharam 264, cerca de 85%. Afinal o “bipartidarismo” não morreu? É diferente a dinâmica das autárquicas e mais complexa do que nas legislativas. Não há um candidato a líder de governo, há 308 candidatos a presidente de Câmara (sem falar aqui nas freguesias) e a eventual confiança ou rejeição que o líder de Lisboa provoca pode ser bem diferente da que o candidato local gera.

Duas curiosidades. Ricardo Leão em Loures foi quase um proscrito pela corte instalada no largo do Rato e limpou as eleições em Loures. Eduardo Teixeira, várias vezes candidato pelo PSD à câmara de Viana do Castelo e derrotado, não foi por aparecer em cartazes com André Ventura ao lado que convenceu mais os eleitores.

O que me parece também ser de assinalar é que a terceira força foram os “outros”, os independentes, apesar de não haver surpresas espetaculares ao nível de Rui Moreira quando ganhou pela primeira vez o Porto. Parece-me que uma grande parte destes “outros” são gente com carreira nos partidos que resolveram fazerem-se ao largo por conta própria. Não há verdadeiramente muita gente nova vinda da “sociedade civil” que se apresenta diretamente por conta e risco na política local. São os partidos a perderem a mão nas suas “tropas”, por boas ou más razões.

Os partidos estabelecidos há mais tempo têm um acervo de autarcas com notoriedade e provas dadas (melhores ou piores) que lhes dá mais resiliência e resistência à mudança, mas as lideranças partidárias tinham interesse em entender as causas profundas destas deserções e corrigir o que houver a corrigir enquanto houver tempo.

09 outubro 2025

Olhando o Islão (XI e final)


11) Quo vadis Islão

Como é óbvio, a larga maioria dos muçulmanos não são violentos e gostariam apenas de viver a sua religião em paz com eles e com o mundo, mas há um contexto problemático:

a)       Na sua génese, a religião, que simultaneamente cria um Estado, é muito regulamentar e algumas regras necessitam de revisão com as evoluções sociais

b)       A ausência de uma figura ou instituição globalmente reconhecida que lidere e contextualize e adapte as regras aos novos tempos

c)       A existência dos salafistas, sempre prontos a assinalar falta, a mobilizar as massas e a desafiar o poder cada vez que há um cheiro de mudança

Alguns exemplos simples

Há 14 séculos, uma mulher fazer-se sozinha à estrada de Meca para Medina corria sérios riscos de acabar mal. Nesse contexto, por essa razão, faria sentido decretar que uma mulher não devia viajar sozinha. Hoje, se essa regra for aplicada sem contextualização, acontece o seguinte. Uma muçulmana quer deslocar-se do Porto a Lisboa para encontrar amigos, visitar uma exposição ou assistir a um espetáculo e

·       Ou vai na mesma sozinha e não cumpre os preceitos da sua religião, problema de consciência

·       Ou é obrigada a arranjar uma companhia masculina, humilhante

·       Ou desiste de viajar, frustrante.

Não há saída digna, além de existirem vários outros pontos do Corão onde é explicitada a inferioridade da mulher face ao homem, o que não é destes tempos atuais.

Há 14 séculos a escravatura era algo de perfeitamente comum naquela sociedade (sim, não nasceu com os europeus no Atlântico, mas isso não é tema aqui). No Corão, há um conjunto de definições e regras relativas a este estatuto, perfeitamente natural e aceite na época. Quando uns séculos mais tarde, alguém diz que a escravatura deve ser abolida, isso vai encontrar resistência. Se no livro sagrado ela é permitida e regulamentada, com que direito vamos mudar isso? Entre os males e os bens da colonização europeia, é ela que irá forçar essa abolição. Na Mauritânia, ali abaixo de Marrocos, ela foi oficialmente abolida apenas em 1981. A prática parece ser outra coisa.

Qual a saída, não sei. Na Europa vivemos um processo de disrupção e da separação da Igreja das estruturas do Estado a partir do século XIX. Envolveu revoluções e algumas ações nem sempre razoáveis e justas, mas funcionou.

O Islão necessita de resolver dois problemas interligados. Um é a revisão/atualização de aspetos regulamentares anacrónicos e ter liderança reconhecida para isso. Uma referência a Marrocos. O rei, que é respeitado e reconhecido, é simultaneamente o “Comandante dos crentes”, o que permite alguma legitimação da legislação que toque aspetos religiosos.

O outro aspeto é o islamismo ou a religião usada como ferramenta política. Não tenhamos dúvidas. A larga maioria dos que buscam o poder, usarão todas as ferramentas disponíveis para alcançar os seus objetivos. Enquanto a alavanca da religião funcionar, não faltará quem a utilizará. Como se resolve isto e se anula… não sei !!

E lamento não poder concluir de forma mais assertiva.

Começou aqui ... e acabou.

08 outubro 2025

Inspirados por Sadat


A famosa flotilha de Gaza parece ter ajustado e apontado o calendário para chegar ao real destino, ponto de interseção, na data do Yom Kippur, o dia mais sagrado do judaísmo, algo equivalente ao Natal dos cristãos. Há um precedente. Em 1973 Anwar Al Sadat, presidente do Egito, lançou a última guerra do seu país contra Israel nesta data e estes, mal informados ou com excesso de confiança, decidiram não “estragar” os festejos dos seus soldados em larga escala e sofreram um rude golpe inicial.

No final o Egito perdeu a guerra, mas de forma mais honrada do que a da humilhação da anterior guerra dos seis dias. Na altura era uma guerra de soldados e de tanques. Não de bombardeamentos a civis nem de pseudo-hospitais como bases militares

Em 1977 Sadat visitava Israel, houve os acordos de Camp David em 1978 e finalmente o tratado de paz em 1979. Foi o primeiro passo para a pacificação entre as várias nações da região, chegando posteriormente mesmo à OLP de Arafat em Oslo, em 1993.

Em 1981 Sadat morre assassinado por jihadistas que não lhe perdoaram a paz. Yitzhak Rabin também pagaria com a vida a sua opção pela paz.

Se alguém pensou em Sadat e no Yom Kippur de 1973, será importante que pense também no que se seguiu. Os herdeiros dos assassinos de Sadat e de Rabin não devem ser desculpados, tolerados … nem financiados. 

06 outubro 2025

Funda, mas não sangra

Há uns anos, numa praia, assisti a uma cena algo caricata. Uma criança tinha-se ferido num dedo e, desatado o berreiro, lá veio a comitiva de mamã e titis para averiguar e ajudar. Ouvi um diálogo curioso:

- Ai que golpe tão profundo que fizeste!

Alguém questionava: - E sangra?

Sendo a resposta: - Não sangra, mas é muito fundo!!

Lembrei-me disto a propósito de os ativistas da flotilha libertados se queixarem de ter havido espancamentos. Ora bem, um espancamento deixa sinais, nomeadamente, pelo menos, uma nodoazita negra. Se existisse um ativista assim marcado, já a imagem teria corrido este mundo e o outro. Terá sido assim tipo ferida funda, mas que não sangra. Digamos que para quem considera Israel um Estado assassino, até podem considerar que regressaram bem de saúde e em aparente boa forma.

Afirmações que estão ao mesmo nível das afirmações da ativista Ana Alcade, a “Barbie Gaza”, segundo a qual o Hamas não violou mulheres israelitas durante o ataque do 7 de outubro. Tudo gente séria.

Espero um dia saber donde vieram os fundos para esta viagem…

05 outubro 2025

Viva a República ?

 Certamente que o modelo republicano, em que o chefe de Estado é eleito pelo povo, é potencialmente mais justo do que uma transição hereditária, se bem que podemos sempre ter uns eleitos totós e uns príncipes finos.  A república não é por si garantia de um regime justo e de pleno direito. Não compro a suposta supremacia da “ética republicana”. Num ranking de mérito ético, tenho dificuldade em colocar François Miterrand à frente de Isabel II, por exemplo. Não faltam monarquias com sociedades livres e justas e repúblicas ditatoriais e repressivas. Não é o modelo que tudo resolve.

Quanto a Portugal, entendo que a verdadeira revolução disruptiva foi a de 1820, que abriu caminho ao esvaziamento do poder “divino” e da arbitrariedade dos monarcas. Em 1910, matar o rei para proclamar uma república incompetente e violenta, que falhou completamente e que abriu a porta ao estabelecimento do Estado Novo, desculpem, mas não a valorizo muito…

04 outubro 2025

O comércio das boas causas

Há uma coisa que me repugna fortemente. É ver evocada uma boa causa, justa e solidária, quando a agenda e os objetivos reais são outros. É o caso desta famosa flotilha e da sua suposta missão humanitária. É evidente que se o objetivo fosse mesmo humanitário, as ações teriam sido outras. Qual o sentido de enviar uns barquitos ao longo de toooodo o Mediterrâneo, sabendo obviamente que nunca lá iriam chegar?  Também ainda estamos para ver qual a natureza e dimensão dessa ajuda embarcada.

O objetivo era chegar onde chegaram. Publicitar e sensibilizar a opinião pública para a guerra de Gaza. Têm todo o direito de o fazer, mas chamem os bois pelos nomes. Já agora, atirar os telefones para o mar… porquê? Que segredos continham? O caricato de mandar borda-fora as facas da manteiga também não se entende, mas não serão tão nocivas para o ambiente.

Fico na expetativa de ver uma nova flotilha organizada na direção da Crimeia, ilegalmente ocupada, para protestar contras as atrocidades cometidas pelos russos na Ucrânia… mas não a iremos ver. Não estaria alinhada com a agenda políticas destes ativistas e, se de lá se aproximassem, a abordagem e o tratamento recebido seria certamente bastante mais violento do que o agora aplicado pelos malvados israelitas.

03 outubro 2025

Olhando o Islão (X)


10) Os petrodólares

Após o fim do califado, deixou de existir um líder global do mundo muçulmano. Tentativas de ocupar o lugar não faltaram. Gamal Nasser, a partir do Egito, sonhou com um “pan-arabismo” que voltasse a reunir todos aqueles povos. O rei Hussein da Jordânia, invocando que a sua ascendência chegava a Maomé, também com isso sonhou. Penso que terá sido por essa ambição que a Jordânia permaneceu na Cisjordânia, após a guerra da independência de Israel, orgulhosamente controlando o Jerusalém histórico e impedindo a formação na altura do tal Estado Palestiniano, de que tanto se tem falado depois.

No centro da península arábica, entretanto tornada saudita, estão os locais originais da religião. Meca, a Meca, e Medina, a cidade de onde a expansão começou e onde está sepultado Maomé. Os sauditas têm pretensões a exercerem algum tipo de liderança sobre toda a comunidade muçulmana.

Após a guerra do Yom Kippur de 1973 e do choque petrolífero, as receitas do ouro negro disparam. Os sauditas estão ricos e têm os meios de tentar concretizar as suas pretensões. Como habitualmente compram tudo feito, vão imprimir a cartilhas da Irmandade Muçulmana, que não anda muito longe do seu credo rigoroso wahabita, vão construir escolas/madraças e pagar professores/imanes para isso ensinaram.

Portanto... temos um terreno fértil que são as desilusões pós-independências; temos as sementes na ideologia salafista e acrescenta-se a irrigação com os petrodólares. Estão criadas as condições para o desabrochar das radicalizações.

Convém referir que as relações da Irmandade com as monarquias do golfo, não são continuamente estáveis. Há alturas em que o poder sente que ela tem demasiada influência e ambição, os ameaçam e zangam-se. Neste momento com o Qatar está tudo bem e com os sauditas está tudo mal… amanhã, logo se vê.

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02 outubro 2025

Entre a vida e o evangelho

Ernest Renan foi uma das grandes figuras da filosofia e teologia do século XIX. Não diria dos mais relevantes porque a minha bagagem no domínio não chega para estabelecer superlativos. De todas as formas, vale a pena ler o que ele escreveu.

O livro acima representado, “Vida de Jesus” é uma visão de historiador, a partir da análise crítica dos evangelhos e de outras fontes contemporâneas, procurando estruturar e descrever a vida de um dos personagens mais marcantes da história da humanidade.

Uns séculos antes, o livro estaria na fogueira e o seu autor provavelmente também. Isto porque a realidade eventualmente não coincide com o que os cânones oficiais em concílios posteriores consagraram.

Acho que o livro é potencialmente mais disruptivo e polémico para os crentes do que, por exemplo, o cá famoso livro de J. Saramago, “O Evangelho segundo Jesus Cristo”. Por muito provocativo que seja, este é um livro de ficção e porque, desculpem lá alguns, Saramago põe uma narrativa diferente da oficial na boca de Cristo, mas, de certa forma, não belisca o seu estatuto divino. É divino, na mesma, mas de forma diferente.

O livro de Renan é científico e cru. Ele humaniza Cristo, mas isso acaba, por efeito colateral, por desumanizar a religião. Acredito que toda a religião, e respetiva fé, necessitam de uma dimensão “fantástica” e algo para lá da racionalidade objetiva. O livro desmonta uma boa parte dessa “fantasia” …

A génese das religiões, e especialmente com a dimensão que esta irá alcançar, é um tema fascinante. Apesar da minha reduzida bagagem, parece-me que este livro será... obrigatório. Fica feito o aviso aos crentes.

 

 

01 outubro 2025

Olhando o Islão (IX)


9) O pós-colonialismo

Após o final do império Otomano, a região vai desmembrar-se em vários Estados, mais ou menos homogéneos, mais ou menos patrocinados pelo Ocidente. Já em 1916 o acordo Sykes-Picot (UK – França) definia a futura repartição da herança Otomana entre os dois países. Grosso modo Damasco para os Franceses e Bagdad para os britânicos… mais uns trocos.

A colonização europeia do Médio Oriente será efetiva apenas entre as duas guerras. No final da II, as independências chegam, incluindo para o Norte de África. Este novo estatuto é saudado e gerador de muitas expetativas. Agora que somos nós que mandamos em nós, sem interferenciais culturais e religiosas externas… agora é que vai ser!

Uma geração depois torna-se óbvio que não foi grande o sucesso. Não é aqui o espaço para desenvolver a análise das razões, mas o facto é que os resultados são dececionantes.

Os novos regimes, muitos deles autoritários e com forte dominância de uniformes militares, são muçulmanos, naturalmente, mas “non troppo”. Do ponto de vista social e especialmente do estatuto da mulher são até mais tolerantes do que se verá mais tarde.

À vista do que corre mal, virão os salafistas dizer “isto corre mal porque os nossos dirigentes não são muçulmanos rigorosos, como deveriam ser”. Este desafio vai correr mal para muitos, ver acima Nasser e Qutb.

Esta pressão política religiosa terá como resposta um maior rigor nas práticas, buscando assim os regimes protegerem-se contra as acusações de serem “fracos muçulmanos”. Em sentido contrário, claramente, a todas as tentativas de modernização.

Um pequeno exemplo. Após a independência a Argélia mantém o fim de semana ocidental, sábado e domingo; em 1976 sobre a pressão islâmica passam a quinta-sexta-feira; em 2009, por pressões de competitividade num mundo, apesar de tudo mais globalizado, passaram a um meio termo de sexta-feira e sábado. Um bom exemplo destas evoluções e involuções.

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29 setembro 2025

Um filme para os generais (e não só)

 

Não faltam relatos, documentários e produções mais ou menos hollywoodescas sobre tragédias, misérias, covardias e heroísmos em cenários de guerra. Este livro vai muito para lá disso. Aliás, parece que as adaptações cinematográficas, mesmo uma recente de 2022, não conseguem atingir a profundidade e sensibilidade da narrativa escrita.

Como pano de fundo, temos a I Grande Guerra. Se todas as guerras podem ser consideradas estúpidas, esta, na minha opinião, consegue uma espécie de recorde de absurdo. Começou sem grande causa, como se fosse anunciada uma partida de póquer e todos decidem ir a jogo, um “jogo” em que milhares de soldados são chacinados, vítimas de estratégias impotentes, quando por vezes estava simplesmente em causa avançar umas centenas de metros, que se voltavam a perder rapidamente.

O livro em causa faz-nos “viver” várias dimensões da brutalidade, desumanidade e das feridas dilacerantes, físicas e psicológicas, sofridas por uma geração arrancada a uma juventude e ao que tinha direito. Brutalidade insana, deste a linha da frente às enfermarias de retaguarda. Uma deriva lenta e irreversível para outro mundo com outros códigos e valores e um conflito interno nessa transição. Mesmo antes de morrer, os jovens soldados já se vêm de certa forma mortos e estranhos ao mundo de onde saíram e onde, mesmo que improvavelmente sobrevivam, nunca mais poderão regressar. Há valores humanos ameaçados, mas não propriamente heróis.

É um livro pleno de interrogações que deviam ser dirigidas e respondidas por todos os fazedores de guerras. Lido, merece ser lido por todos.