04 junho 2005

Onde começa a Europa?

Ainda sobre a Europa.... Saiu no Público de 15.09.2004 a minha carta, abaixo transcrita, sobre a questão da adesão da Turquia. Em 26.09, fruto da preparação para o processo de adesão à EU, o parlamento turco aprovava um novo código penal, como um enorme passo em frente, na aproximação aos padrões europeus. Nesse mesmo dia, visitei no palácio de Topkape, em Istambul, uma exposição de ciência no mundo islâmico. Entre outras coisas interessantes, descobri os astrolábios, pais dos nossos...
A principal “voz de Roma” era o então cardeal J. Ratzinger

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No próximo dia 6 de Outubro de 2004 a Comissão Europeia tomará uma decisão sobre o início do processo de negociação da adesão da Turquia à UE.

Um pouco a propósito lá vêm umas vozes de Roma dizerem que se a Turquia vier a aderir, terão sido em vão as vitórias em Viena sobre os Turcos em 1529 e em 1683. Será o mesmo tipo de argumento que Portugal poderia ter usado contra Espanha, declarando o esforço de Aljubarrota em vão? Ou, muito mais intenso e recente, a Inglaterra e a França contra a Alemanha invocando a tragédia da II Guerra Mundial? Não, não é. Face a uma sua real/potencial perda de protagonismo, a reacção do Vaticano não é pela positiva nem pela construtiva, mas sim pela barragem dos “infiéis” e tentando ressuscitar fantasmas de guerras de há séculos.

Para Roma os muçulmanos foram e são inimigos a repelir. Como as cruzadas são do passado e não se podem repetir as bárbaras “libertações” e pilhagens por nobres aventureiros ociosos, a estratégia é outra. Passo à frente a análise do significado desta postura face aos princípios da doutrina cristã. Limito-me a mencionar que as tentativas de impor a hegemonia religiosa por decreto estiveram na origem de muita pobreza material e espiritual.

Se recuarmos ao século XVI, devemos recordar que o “bárbaro” turco Soleimão, o Magnífico, proporcionou porto de abrigo a muita boa gente escorraçada da “civilizada” Europa por perseguições religiosas, inclusive portugueses.

Não tenho dúvidas sobre o facto de que, para mim, é preferível viver num país Europeu do que num país submetido à lei islâmica. E uma pessoa “normal” como eu aí nascida provavelmente pensará o mesmo, por isso procura emigrar. Ou, melhor, preferirá viver no seu país com melhores condições de vida. As negociações relativas à aproximação com a UE serão provavelmente a forma mais eficaz de proporcionar desenvolvimento social e económico de um país como a Turquia. Fechar a porta é conduzi-los ao isolamento e aumentar a pressão migratória que tanto incomoda.

Há uma dúzia de anos, quando vivi na Bélgica, contavam-me que a presença dos magrebinos constituía um grande problema imobiliário: bastava um instalar-se numa esquina da rua para todas as casas da mesma desvalorizarem. Surpreendia-me a visibilidade deles lá, contra a absoluta integração aparente dos poucos ou muitos que em Portugal estavam. Será que a pressão de repulsão não gera um movimento de afirmação e de diferenciação acrescido?

Para aqueles que acham que a cultura árabe nos é absolutamente estranha, olhemos para o nosso vocabulário. Pensemos na expressão artística mais significativa em Portugal que é a poesia. Pensemos nas nossas trovas e cantigas. Pensemos na música tradicional, pensemos mesmo no fado. Com alguma facilidade se encontra a herança árabe nestas manifestações e nessa nossa sensibilidade. Apesar de todos os esforços de limpeza de vestígios e de todos os decretos, somos um país multi-cultural e temos responsabilidades particulares na ligação a estes “outros”.

Há uns meses, ao jantar com um amigo turco na margem do Bósforo, perguntei-lhe o que significava para eles a possível integração na Europa. Falou em livre circulação de bens e de desenvolvimento para o país. No final acrescentou que tinha grandes dúvidas sobre a perenidade da União Europeia. Que lhe faltava “cimento” para vencer o tempo.

Antes de discutirmos se a Europa termina exactamente no meridiano de Alexandria ou se pode ir mais uns graus para leste, necessitamos de reflectir sobre onde ela começa. Se a Europa for a das exclusões invocando disputas antigas, se o cimento for uma fé dominante consagrada na constituição, se os vizinhos diferentes são indesejados e a repelir, a Europa colapsará. Ou fracturada internamente ou asfixiada pelos vizinhos miseráveis.

1 comentário:

Anónimo disse...

não é verdade que na constituição europeia (a tal referendada...) vinha uma referência a deus/cristão à boa maneira americana? não sei nada da turquia (o expresso da meia-noite) mas também não sei nada sobre tantos outros da comunidade europeia. e os outros o que sabem de nós???