05 junho 2005

Oxalá não percamos as nossas referências

Junto este texto para encerrar o capítulo da Europa e do projecto da sua Constituição. Quando foi escrito, em Dezembro de 2003, ainda se discutia a inclusão, ou não, da referência cristã no preâmbulo. Acabou por não ficar. Ficou, no entanto, um exemplar auto-elogio da Convenção, que se agradece a si própria pelo magnífico trabalho realizado!

Parece-me que as recentes discussões sobre a inclusão ou não de uma referência cristã no preâmbulo do projecto da eventual constituição europeia, pecaram for uma falta de definição clara do contexto: fala-se de uma referência política ou cultural? A situação é muito diferente consoante o âmbito.

Tomando o caso concreto de Portugal, pode dizer-se que a construção política do país tem uma clara referência cristã. Foi atrás do estandarte da cruz que se travaram as guerras de conquista contra os árabes (contra Leão e Castela já nem tanto...). Agora, a génese e a identidade de Portugal tem uma base predominante cristã? Não! A identidade cultural não se altera assim com a mudança da bandeira na torre do castelo. Havia na altura um forte e rico cruzamento de várias culturas e que se manteve.

Na perspectiva política, a referência cristã foi utilizada frequentemente pela política na Europa se bem que seja forçoso reconhecer que os momentos em que ela foi mais intensa não foram os momentos mais brilhantes da nossa civilização.

Por outro lado já deveríamos ter aprendido com a história que a tentação de usar a espiritualidade e a fé como elementos mobilizadores para um projecto político é a base de muitas derivas. Veja-se o Médio Oriente actual.

Na perspectiva cultural, a Europa é tudo menos monocromática e acho que a história oficial dos vencedores já nos empobreceu de referencias suficientemente.

Porque é que na nossa história oficial não há nenhuma referência a nenhum cientista, artista ou humanista da cultura islâmica que tenha vivido no nosso território, cultura essa que nos deixou tantos vocábulos numa altura em que os reis de Portugal eram analfabetos?

Não será curioso que na referência “politica” o mouro é o infiel contra o qual se lança um anátema mobilizador e de aniquilação, enquanto que na cultura popular estão as referências às mouras encantadas com o perfume do fascínio da diferença?

Oxalá não percamos mais referências... (“Oxalá”: do árabe “ua xá illáh” que significa literalmente “Queira Alá”)

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