22 setembro 2020

De Portugal e dos Algarves


 

Se desde Afonso III e a conquista definitiva de Silves passou a existir rei de Portugal e dos Algarves, se hoje o antigo ocidente do Andaluz é simplesmente uma província do país, aquela terra, para lá dos montes de Monchique e Caldeirão, continua a ter algo de diferente. 

Não sou do tempo do Algarve virgem, das pequenas aldeias e portos de pesca, sem as urbanizações e demais aflições. Sou do tempo em que a viagem, no verão, pois claro, incluía uma travessia árdua de longas searas escaldantes em estrada nacional e sem climatização para amenizar. Era muito longe, reforçando o exotismo e o exorcismo dos arrepios das ondas e vagas do atlântico mais a norte. 

Não sou daqueles para quem verão e Algarve são sinónimos, pelo contrário, mais facilmente me ouvirão dizer, “Tudo menos Algarve”. Apenas para Sol e praia não me mexo. 

Ao contrário do restante ex-Andaluz, o património histórico é bastante limitado. Para lá de uns pequenos cantos reservados e umas ruínas em Sines ou Aljezur, nada disto tem paralelo com a exuberância do outro lado e descontando já de caras o Alhambra. 

No entanto, de vez em quando, por lá passo, indeciso entre a espetacularidade natural do barlavento e a tranquilidade do sotavento. Dois qualificantes geográficos exclusivos do pequeno reino. Ficam sentimentos misturados. Se, por um lado, a devassa urbanística e de frequentação são impossíveis de ignorar e de facilmente aceitar, por outro lado, aquele ar, aquelas águas, têm um embalo e um encanto que se colam. 

No momento do regresso, quando se aponta o Norte, para vencer a serra, agora com as novas facilidades da autoestrada e do ar condicionado, há um sentimento de realmente deixar qualquer coisa de diferente. Entre “Tudo menos Algarve” e a qualquer coisa que por lá fica na partida, nem sei que diga.

29 agosto 2020

“Reguengolaniar”


 

O triste relato e retrato dos acontecimentos em Reguengos de Monsaraz tem um significado que ultrapassa o lar de idosos da cidade alentejana e o contexto da atual pandemia. Tanta falha, desleixo, irresponsabilidade e inação são um sinal de um sistema disfuncional. E este problema não é certamente exclusivo de Reguengos. 

 Em quantas direções, administrações, regionais ou municipais e outras que tais estão nomeados/colocados dirigentes/responsáveis desprovidos de cartão partidário, simplesmente pela sua competência? Em quantas cidades e vilas o poder autárquico e autocrático sustenta e controla uma fatia excessiva da sociedade/economia local, asfixiando e condenando toda iniciativa ou critica que o possa questionar e fazer “avançar a terra”? 

 Qual é o contrapeso que trava estes pesos pesados? As eleições e a alternância democrática? Teoricamente sim, mas a prática prova que estes sistemas acabam por se enraizar de tal forma que sobrevivem com facilidade a esse escrutínio, amplificando até a cada mandato a sua pegada sufocadora. 

Falta contrapeso e esse escrutínio e freio são fundamentais ao saudável desenvolvimento do país, especialmente do interior. Depois, não vale a pena chorar… 

Infelizmente este flagelo acaba por ser vertical, atingindo vários níveis do poder, embora em níveis mais elevados a visibilidade seja maior e a vigilância potencial mais elevada. Ou, nem por isso… a nomeação de Vitor Escária como chefe de gabinete do nosso primeiro ministro (que tão bem se portou neste processo) poderia ter sido mais escrutinada.

17 agosto 2020

Isto de cativar…

 

É necessário denunciar Luis de Camões. Então, não é que em vez de condenar a escravatura, resolveu escrever poemas sobra uma bela (?) cativa que supostamente o tinha cativo – rica ironia! Um mau exemplo que perdurou. Mesmo no século XX, reputados esclavagistas como Zeca Afonso e Sérgio Godinho ainda tiveram o desplante de musicar e cantar a “bela cativa”. Obviamente, não podemos nem devemos olvidar que o poeta, despudorado esclavagista, manteve até à sua morte um escravo, Jau, trazido do Oriente. 

Os Lusíadas são pouco mais do que o exaltar de uma campanha miserável que levou a escravatura aos quatro cantos do mundo. Algo que nos deveríamos envergonhar profundamente. “Shame on you!”; queimem os livros; estátuas abaixo e toponímia corrigida! 

E não nos acusem de violência. Num passado não muito longínquo, jovens burgueses revoltados contra o seu próprio meio sociocultural, chegaram a despoletar bombas em estações de caminho de ferro. Aqui não se mata ninguém, apenas uma cultura podre, que indiscutivelmente é podre e nefasta. 

Não, ainda não chegaram ao ponto de derrubar estátuas de Camões e mudar nome de ruas e praças, mas a lógica subjacente está lá, se pensarmos, por exemplo, no Padre António Vieira. 

Sim, está em causa destruir uma cultura, a própria. Sim, é esse o objetivo destas excitações. Com todos os defeitos e virtudes, crimes e maravilhas que balizaram o seu caminho é a nossa história e raiz. O mínimo dos mínimos é construir o futuro lendo justamente o passado. As políticas de terra queimada nunca trouxeram nada de bom, especialmente no domínio cultural. Isto de cativar julgamentos e aprisionar pensamentos é muito mau sinal.


14 agosto 2020

“Hidrogenizar” a energia

 

Quando se fala em descarbonizar a produção de energia, estamos a falar em substituir os combustíveis de origem fóssil, produtores de CO2 por “outra coisa”. Essa outra coisa pode ser energia hídrica, ai os rios e os peixes, as eólicas, ai a paisagem e os pássaros, o nuclear, ai os riscos e os resíduos e por aí fora, entre outras alternativas e ais. 

 O hidrogénio não é nenhuma fonte de energia… usamos energia elétrica para o produzir, vinda de um ai qualquer, ele é armazenado e posteriormente devolve parte da energia elétrica que o produziu. É apenas um acumulador, digamos que uma bateria diferente… 

 Poderá ser um acumulador mais eficaz e interessante do que os existentes e permitir um armazenamento mais vantajoso, mas nada mais do que isso. Convém ainda recordar que a sua utilização ainda está muito na fase protótipo. Não há escala nem experiência consolidada. 

 Quando, neste contexto, vejo tanta excitação com tantos milhões para uma coisa tecnologicamente tão embrionária e com impacto real tão limitado na tal descarbonização, os ais são muitos.

05 maio 2020

Legitimidade


Independentemente de considerações técnicas linguísticas mais elaboradas, ser legítimo, na raiz, significa de acordo com a lei. Para lá da conformidade com a letra das normas formais, pode-se invocar legitimidade noutras situações. Por exemplo, é legitimo ter a expetativa de uma vida melhor e será tão mais formalmente legítimo quanto a lei não o proíbe.

Mas também há ruturas na legitimidade. Por exemplo, uma revolução nunca será legitima à luz do quadro vigente, pela simples razão de que certamente nenhum código prevê e enquadra uma transição de poder dessa forma. Aí teremos a chamada legitimidade revolucionária, indispensável, mas que se quer transitória. E não faltam revoluções em que os seus líderes se “legitimam” donos do poder ad eternum, mesmo à revelia do programa inicial. O "Ganhamos, é nosso!", foi um princípio infelizmente adotado em muitas independências pós-coloniais.

Depois, há as auto-legitimizações, em que se trata de reformatar, adaptar a lei com o único objetivo de servir um interesse particular e não o geral. Por exemplo, mudar uma Constituição para eliminar a limitação de mandatos, quando o Presidente em funções chega ao limite.

Tudo isto vem a propósito das comemorações do 1º de Maio pela CGTP em Lisboa. À luz das regras gerais em vigor no dia era ilegítima, iníqua e irresponsável. O fato de na regulamentação do estado de emergência, ter sido acrescentada uma alínea muito especifica a legitimar o evento, pode ter resolvido o problema formal, mas não resolve o problema de fundo, pelo contrário. Um xadrez que se dispensava ter sido jogado.

01 maio 2020

Crime e castigo


O local da bonita foto acima, que não é de hoje, hoje o tempo esteve cinzento, é no limite do meu concelho de residência. Num dos meus circuitos de bicicleta habituais atravesso ali o rio Neiva e percorro umas centenas de metros na margem norte, até regressar ao lado sul no Minante.

Hoje, ser-me-ia proibido fazer essa travessia e sair do meu concelho, mas arrisquei. Com espírito de contrabandista, lancei-me no troço clandestino. Nesse percurso existe uma passagem improvisada sobre um curso de água, feita com umas tábuas manhosas, que costumo abordar com bastante prudência, redobrada esta manhã pelo ingrediente adicional de a madeira estar molhada e mais escorregadia. Infelizmente havia ainda outro ingrediente mais, que não detetei a tempo: as tábuas estavam inclinadas. De forma que ao, por segurança, colocar o pé no chão, ele não ficou estável e eu parti para uma cambalhota e um mergulho completo.

Ultrapassada a fase inicial de uma breve discussão inglória com a força da gravidade, verificado após emergir que a bicicleta não fugira para longe e posteriormente que a embalagem semiestanque do telemóvel tinha aguentado, reconheço que a temperatura da água não estava tão desagradável e que para a quantidade de lama acumulada, o mergulho até serviu de pré-lavagem… e certamente castigo contra a transgressão. Merecido ou não, é outra questão.

Pode-se entender que na Páscoa, naquela fase e atendendo à tradição das viagens e dos reencontros familiares alargados, poderia fazer sentido o travão. Neste fim de semana, já me parece absolutamente abusivo e um tique de quem ganhou o gosto. Que não se consolide o tique, esperemos. E da iniciativa da Intersindical para o dia, “nada” a acrescentar.

29 abril 2020

24 de abril e bacalhau


Quando se fala no 24 de abril, para lá da estúpida, obtusa e infindável guerra colonial, é comum avançar com os nomes de Aljube, Peniche e Tarrafal. Hoje, apetece-me falar de bacalhau. Há uma certa visão de que a PIDE só incomodava comunistas, conceito bastante largo na altura, e, segundo essa perspetiva, aqueles para quem “a sua política era o trabalho”, não tinham problemas com o designado Estado Novo. 

O bacalhau tocou muita gente pelo trabalho e muito duramente. Refiro-me a quem participou na chamada campanha do bacalhau, organizada e promovida pela “outra senhora”. A visita ao museu marítimo de Ílhavo é muito interessante e elucidativa sobre a vida terrível daqueles homens, que chegavam a trabalhar 20 horas por dia, em condições arrepiantes. Os lançados nas águas gélidas dos mares da Terra Nova não tinham sido condenados pelo regime a derreter numa frigideira do Tarrafal por delito de opinião, mas estavam condenados a um trabalho duríssimo e miserável para a sua sobrevivência e dos seus. 

Um regime que estabelece como grande política alimentar o seu povo a partir de condições tão sub-humanas é pequeno, é mesquinho e sem visão. Esta condenação do país ao miserabilismo, por ignorância, incapacidade, falta de visão ou o que quer que seja como defeito não é o único problema do Estado Novo, nem a campanha do bacalhau o único exemplo, mas é uma ilustração muito concreta e bem documentada. Não fica mal falar dela neste mês de abril.

22 abril 2020

Liturgias, forma e conteúdo


Pertencendo eu ainda a uma geração que viu o 25 de Abril, para mim não se trata de uma data apenas histórica e muito já escrevi aí para trás sobre o tema (ver etiqueta correspondente). Quando se fala nas respetivas comemorações, há duas coisas que se repetem, quase tão certo como chegarem as andorinhas na primavera.

A primeira é o carater enfadonho das comemorações oficiais, incapazes de passarem uma mensagem mobilizadora e de transmitir algo que seja ouvido com interesse, sobretudo por quem não viveu nem o antes nem o dia, sendo que isso devia ser o prioritário. São discursos dos próprios para os próprios e como se bastasse uma vez por ano ir ao frigorifico ou à estufa buscar um cravo vermelho e cumprir uma liturgia.

A segunda é a facilidade com que se arranja uma polémica, seja sobre a forma, seja sobre quem se convida ou quem participa. O subjacente à maioria das polémicas é existir um grupo que entende ser mais igual do que os outros, quando o 25 de Abril no espírito e na realidade do dia foi muitíssimo mais abrangente do que pretendem alguns agora reivindicar e capitalizar.

A situação excecional que o país e milhões de portugueses vivem exigia fazer diferente e não invocar um “direito adquirido” a celebrar, simplesmente como dantes. Vejam as imagens impressionantes de Roma nas celebrações pascais. Perderam impacto e significado pela adaptação ao tempo atual? Não, muito pelo contrário. Por aqui, fazemos umas contas mais ou menos científicas quanto a lotações e distâncias e tudo como sempre. Desculpem lá, mas podem deixar de ficar parados a olhar para trás e ter sensibilidade para entender e falar ao país presente? 25 de Abril deveria ser futuro e não passado.

20 abril 2020

A OMS está doente?


Dentro da polémica levantada pela ameaça de D. Trump de cortar o financiamento dos USA à OMS, por esta supostamente estar demasiado alinhada com a China, e independentemente da razoabilidade e da justificação para tal medida, encontrei a referência a um tweet da organização, publicado em 14 janeiro, acima reproduzido e aqui referenciado.

O tweet informava que, à data, segundo as autoridades chinesas não havia evidencia clara que o Covid 19 fosse contagioso entre humanos! Portanto a China enganou a OMS, descaradamente, esta acreditou e reproduziu ingenuamente a patranha. Posteriormente, ao constatar que tinha sido aldrabada não a vi dar nenhum raspanete valente à China, pelo contrário, só me recordo de elogios à forma como o país estava a lidar com a epidemia.

Obviamente que o papel da OMS não termina aqui e enviablizá-la não é solução, mas que a gestão desta crise foi muito pouco saudável e a necessitar de algum tratamento, sem dúvida.

17 abril 2020

Histórias para voar


Há aqueles livros de que gostamos e há aqueles autores que devoramos. Que, quando começamos uma nova leitura, temos a certeza quase certa de que iremos gostar. E assim passamos ao longo da sua obra editada, uma a uma, apenas com pena de não haver sempre mais.

Luís Sepúlveda foi, para mim, um desses. Grato pelas belas histórias.

15 abril 2020

Sensações de segurança


Estou a considerar seriamente deixar de usar capacete de proteção ao andar de bicicleta. Dá-me uma falsa sensação de segurança. Se um automóvel desgovernado me abalroar, não garante que me safe. Ainda por cima, se não o souber utilizar, não o apertando, aí não servirá mesmo para nada. Não entendo sequer porque me obrigam a usar capacete de moto, não me salvará de tudo, tão-pouco.

Mesmo o ABS nos automóveis não é assim uma grande ideia. Dá uma falsa sensação de segurança. Mesmo fechar à chave a porte de casa… não garante que não seja assaltado.

Não faltam exemplos de coisas que contribuem positivamente, mas sem garantirem e parece-me que a questão da utilização de máscaras no contexto atual de pandemia entra nesse capítulo. Sendo que tanto protegem a entrada como a saída do bicho e considerando a existência de contaminados assintomáticos, é obviamente absurdo sugerir a sua utilização em função dos “sintomas”…

Obviamente que se não há máscaras suficientes para toda a gente, deve ser dada prioridade a quem delas mais precisa, mas se não há XPTOs, inventem, improvisem, XPTPs ou XPTQs, que não garantam mas contribuam. O que não faz sentido é eu ir ao supermercado e mais de metade do pessoal andar por ali sem máscara…

09 abril 2020

Depois


Wuhan, até há pouco tempo o nome de uma cidade chinesa que poucos reconheceriam ou conseguiriam apontar num mapa. Num daqueles horripilantes mercados de animais vivos, um vírus viajou e entrou na espécie humana. Depois, o regime chinês tentou abafar a divulgação da má noticia, atrasando dramaticamente a sua identificação e contenção inicial.

Já em 2002 o SARS, com algumas analogias, tinha posto o mundo de sobreaviso. Se este seguisse o mesmo caminho, os estragos seriam limitados e aceitáveis, pelo menos para o nosso mundo. Sobranceria? Depois, passou aos países vizinhos, de onde se acreditava que não sairia de forma significativa.

Seguia-se a evolução, em primeira mão, no Asiatimes e especulava-se, à distância, sobre o efeito da paragem chinesa na cadeia de fornecimento global. Apesar do tempo perdido pelo encobrimento inicial chines, ninguém viu vir o que estava para vir. Esperou-se calmamente com medidas prévias que provaram ser manifestamente inadequadas. Depois, passamos a ver as notícias principais nos jornais europeus.

O mundo descobriu que o bicho era simplesmente incontrolável, silenciosamente transmissível, com uma facilidade e uma eficiência alucinantes. Ninguém está a salvo, nem se sabe bem onde estarão exatamente os 4 a 5% dos casos complicados. Lentamente, o nosso mundo foi perdendo a descontração de que era apenas uma coisa longínqua, no limite uma gripe mais forte, para ser algo que nos poderia fazer despedir definitivamente de um próximo querido. Demasiado lentamente. Já com a noção clara de que o bicho era muito mais perigoso do que inicialmente se pensava, em 8 de março houve amplas manifestações em muitas capitais europeias e a 15 de março França foi a votos.

Vivemos a urgência sanitária, de ver a evolução diária das estatísticas, da emoção dos que sofrem sós e dos que partem desacompanhados. Quase que já há notícias de outra coisa nos média. Entretanto, apercebemo-nos de que a brutalidade das medidas de contenção e mitigação da epidemia provocarão feridas brutais ao tecido económico e social. Depois, o mundo sairá daqui diferente, atividades económicas desaparecerão e comportamentos sociais mudarão.

Para lá do que tudo o que cada um pode fazer por si e por todos, o Estado tem um papel fundamental neste momento, mais do que talvez nunca teve nas últimas décadas. Há uma fase transitória de responder ao problema sanitário e de atender às primeiras necessidades económicas e sociais. Mas ele próprio tem limites, como amargamente já descobrimos num passado recente. Não vai poder acudir a tudo para sempre.

Depois da estabilização sanitária, que nem sabemos quando virá nem como, há dois desafios cruciais para a sociedade. Sobriedade e seriedade no acesso e utilização das ajudas estatais transitórias e iniciativa e empreendedorismo para se reposicionar na nova realidade. Depois de contados os mortos e fechados os hospitais improvisados, o pior que poderá acontecer é vermos enraizada uma dependência permanente e insustentável das ajudas do(s) Estado(s), ainda pior com alguma inevitável desonestidade à mistura. Porque aí a tolerância será pequena e mudanças mais profundas serão possíveis, como o colapso e transfiguração radical do sistema social e político. Só com lideranças sérias e esclarecidas, apesar de o passado recente não ter sido bom exemplo, e sociedade civil responsável e exigente, podemos encarar um depois que não seja um final definitivamente dramático.

06 abril 2020

Depois da Primavera


A Primavera parecia vir adiantada. As amendoeiras floridas até coincidiram com o Carnaval. À data havia 80 mil casos a nível mundial, mas apenas 34 mortos fora da China e 7 na Europa (6 em Itália e 1 em França), dados da OMS. E foram as deslocações nas férias de Carnaval as principais responsáveis pelo grande espalhar do bicho na Europa.

Era antes do tempo, mas era uma Primavera pujante, confiante e festiva. Estavam longe as nuvens e acreditávamos que as condições e o sistema sanitário na Europa não eram iguais os da Ásia. Afinal, de falsos alarmes já estávamos cheios. O próprio Presidente da República vai a Podence para um banho de multidão. Imagens com pouco mais de um mês, mas que hoje parecem de há um século.


Na data oficial, a Primavera não chegou, foi suspensa. Podem ainda lá estar flores, mas não as vemos. Já não podemos atravessar rios nem cruzar cordilheiras. Não há pessoas em quem tocar. Desconfiamos do calor humano, fugimos, damos distancia. Os olhares cruzam-se receosos e apreensivos, sorrisos são apagados. Desaparecem os lugares onde se possa rir ou chorar, ou partir ou chegar, ou cantar ou amar.

A Primavera está suspensa, sim, mas um dia chegará. Como depois de um fogo devastador, de rescaldo delicado, sairemos de novo à rua e haverá cinzas. O bicho terá queimado vidas, sonhos, ganha pães, projetos e alentos. As cinzas serão varridas para dar lugar a um novo campo deserto, ou por lá ficarão fecundando o que irá renascer. Ou, quem sabe, nalguns lugares estarão intactos frutos sobreviventes, resistentes. Entre o que muda e o que fica, não sabemos como ficará, mas a Primavera chegará.



05 abril 2020

Viva quem canta


Na monotonia dramática do tema que tem monopolizado as notícias, há e haverá outras coisas que vale a pena evocar, não relacionadas com o dito cujo drama. É importante fazer um esforço e procurar mais mundo, mais gente e mais coisas a destacar. Sendo que mais vale tarde do que nunca, apetece-me evocar Pedro Barroso, recentemente falecido.

Um cantante autor popular, num dos sentidos mais puros e ricos do tema. A sua música entra por todos os ouvidos, simples de ouvir, mas não pobre. A difícil qualidade do não complicado. E aqui fica uma bela memória porque não vale a pena mais conversa inventar.

Menina em teu peito sinto o Tejo
E vontades marinheiras de aproar
Menina em teus lábios sinto fontes
De água doce que corre sem parar

Menina em teus olhos vejo espelhos
E em teus cabelos nuvens de encantar
E em teu corpo inteiro sinto feno
Rijo e tenro que nem sei explicar

Se houver alguém que não goste
Não gaste, deixe ficar
Que eu só por mim quero te tanto
Que não vai haver menina para sobrar

Aprendi nos 'esteiros' com Soeiro
E aprendi na 'fanga' com Redol
Tenho no rio grande o mundo inteiro
E sinto o mundo inteiro no teu colo

Aprendi a amar a madrugada
Que desponta em mim quando sorris
És um rio cheio de água lavada
E dás rumo à fragata que escolhi

Se houver alguém que não goste
Não gaste, deixe ficar
Que eu só por mim quero te tanto
Que não vai haver menina para sobrar