17 agosto 2005

“Narrativa fantástica” esclarecida

O texto a que chamei "Narrativa Fantástica" não é ficção. É um documento de um processo muito sério. Tão sério que conduziu à execução de 27 mulheres pelo fogo em 1559. É uma confissão de um processo da Inquisição. Foi extraído do livro “Feiticeiros, Profetas e Visionários”, selecção de Yvonne Cunha Rego, editado pela INCM em 1981. Esta publicação inclui sentenças e notícias provenientes de manuscritos da Biblioteca Nacional, relacionados com heterodoxia, como bruxarias, julgadas no Santo Ofício.

Muita coisa curiosa. Por um lado, o carácter reconhecidamente real e “palpável” do Demónio. No segundo extracto, abaixo incluído, a condenação da “Sarabanda” baseia-se na presunção de que só um pacto com o Demónio poderia explicar os poderes que lhe eram atribuídos.

Por outro lado, o que as pessoas “confessam”! Algumas depois de serem “caridosamente admoestadas”, as vezes necessárias, até reconhecerem os seus erros. E, ao lado, o rigor e o zelo com que nos autos se registam essas mirabolantes “confissões”, de uma forma aparentemente tão séria.

Acordam os Inquisidores, Ordinário e Deputados da Santa Inquisição que vistos estes Autos culpas e declarações de Leonor Francisca, a Sarabanda de alcunha [...]

Porque se mostra que sendo a Ré cristã baptizada, obrigada a ter e crer tudo o que tem, crê e ensina a Santa Madre Igreja de Roma, não usar superstições nem ter pacto com o Demónio, antes detestá-lo [...] fazia curas com bênçãos e palavras supersticiosas, adivinhava coisas ocultas que só com a intervenção do Demónio se podiam saber [...]

Chamada a curar certa pessoa, a benzeu e lhe aplicou certos unguentos e chupou pelos dedos dos pés com os quais remédios melhorou a dita pessoa [...]

E faltando duas bestas a certa pessoa e consultando esta a Ré para que lhe manifestasse onde estavam, a Ré, com efeito, lho disse e foram achadas e dita parte [...]

E, faltando, a certa pessoa, de sua casa uma certa quantidade de dinheiro, perguntou à Ré onde estaria e ela respondeu que em tal parte, menos tanto que tinha gasto a pessoa que o furtou e assim se achou menos a quantia que a Ré havia dito [...]

Pelas quais culpas sendo a Ré presa nos cárceres do Santo Ofício e na Mesa dele, com muita caridade admoestada, as quisesse confessar para descargo da sua consciência, salvação da sua alma [...] Respondeu que não tinha culpas a confessar [...]

E sendo a Ré no discurso da sua causa por muitas vezes admoestada, quisesse confessar toda a verdade das suas culpas e o pacto que se presumia haver feito com o Demónio [...]

E que tudo visto e o mais que dos autos consta, presunção que deles resulta de a Ré viver apartada da Nossa Santa Fé Católica e ter feito pacto com o Demónio [..]

Mandam que a Ré Leonor Francisca em pena e penitência de suas culpas vá ao Auto Público de Fé na forma costumada [...]



O resultado da tirania da razão é um grotesco trágico.

2 comentários:

Titá disse...

Não sei o que foi mais interessante, cuirioso e assustador. Se a narrativa em si, se a verdade dos factos, ou seja, a resposta à pergunta do anterior post.
Tal como temia, foi uma das "santas" acções da "santa" inquisição da "santa" religião...tanta hipocrisia junta, falsa moral só podia resultar num fim trágico e grotesco.
Carlos, Mais uma vez, parabéns pelo tema escolhido e pela qualidade do post.

CLÁUDIA disse...

Obrigada pela satisfação da minha curiosidade. Tinha-me passado pela cabeça que o texto pudesse estar, de alguma forma, ligado à Igreja.

Não deixa, portanto, de meter medo e de ser assustador.