27 janeiro 2014

A praxe no fundo

Muito se tem comentado sobre os excessos da praxe a agora ainda mais depois da tragédia do Meco. Eu acho, que para lá dos excessos, há um problema sério de fundo, no princípio. “A praxe prepara-nos para a vida onde vamos encontrar chefes e regras”, dizem. Comecemos pelas regras. Elas devem existir quando há um propósito claro e têm uma finalidade útil. É importante estar definido que se circula na estrada pela direita. Agora, um conjunto complexo de regras delirantes sem sentido e sem utilidade que não seja, eventualmente, demonstrar o poder de quem as decreta, não ensina nada de positivo, muito pelo contrário. Depois, a parte dos chefes. Na vida real, correcta, as hierarquias são ocupadas por quem demonstra ter mérito e capacidade para o ser. Há uma zona muito negra quanto ao poder nas tais comissões da praxe, por muito pomposa que possa ser a sua designação oficial. Como funcionam? Foram um dia criadas, assumiram a liderança do processo e ao longo do tempo o testemunho foi sendo transmitido conforme regras internas, sabe-se lá quais… Daí que se possa e deva questionar qual a legitimidade e a representatividade destas comissões para imporem regras aos demais. Vamos lá a ver friamente: um grupo que se estabelece dentro de uma comunidade, com organização interna fechada e que subjuga o resto da comunidade a regras arbitrárias, humilhantes e mesmo agressivas, não se enquadra num cenário de “tradição” e muito menos “académica”. Está mais próximo de um gangue de bairro!

E, para acabar, meninos: fazer caixinha para ninguém dizer quem atirou o avião de papel nas costas do professor é uma coisa; prejudicar deliberadamente a investigação da morte de 6 colegas não é solidariedade de grupo: além de vergonhoso é, para todos os efeitos, criminoso.

24 janeiro 2014

Uma análise deficitária

Ao que parece, o défice das contas públicas em 2013 vai ficar melhor do que a última previsão e há quem julgue que isso pode ser uma oportunidade para reduzir a “austeridade”. Ora bem, 1% menos do que o previsto é bom mas 4% negativo continua a ser mau, continuamos a afundar, apenas a um ritmo mais lento.

Em números muito redondos, com uma dívida pública que supera largamente o PIB, uma taxa de crescimento prevista para 2014 inferior a 1% e juros a 5%, é fácil entender que continuamos a empobrecer e que a probabilidade de sairmos deste buraco é tudo menos garantida.

Presumir que os 4% de défice são um “alívio”, uma “folga” que pode permitir relaxar o esforço de consolidação orçamental é um sinónimo triste de que sem uma tutela e uma disciplina imposta pelo exterior não nos governamos nem nos deixamos governar. Se esta austeridade é a correcta isso pode e deve ser discutido. Agora, no cenário actual, achar que 4% de défice já permite abrir os cordões à bolsa é de uma irresponsabilidade e/ou ignorância assustadora.

Já agora, a propósito dos juros, porque é que o governo não consegue captar directamente as poupanças nacionais, oferecendo uma remuneração inferior à que suporta nos mercados e superior às aplicações disponíveis, dispensando o sistema financeiro intermédio para uma parte da dívida? Propostas nesse sentido não são muito visíveis, mas também, se calhar, um cidadão tem mais confiança num contrato que faz com um banco do que com o Estado…

22 janeiro 2014

Os recolectores do alheio

Num passado longínquo o ser humano era recolector. Passava e apanhava o que a natureza tinha para dar. Há um processo evolutivo posterior em que passamos a viver do que plantamos e a usufruir do que construímos. Esta organização social, que nos permite viver com uma qualidade muito, muito superior à desses tempos de recolectores, deixa pouco espaço para andarmos por aí a apanhar coisas na natureza.

Esta reflexão vem a propósito de duas notícias que me passam à frente dos olhos. O caso da China em que funcionários e próximos do aparelho do poder deitaram a mão a uns largos milhares de milhões e os aconchegaram em oportunos paraísos fiscais. Outro caso mais próximo e mais comezinho, passa-se na casa Fernando Pessoa, em Lisboa, que encomenda serviços directamente a uma empresa que tem sede na residência da sua directora artística. Em ambos os casos, local e dimensão à parte, há aparentemente um ponto comum: aproveitar uma oportunidade para ficar com uma maçã que está ali à mão, mesmo sem ter direito a ela. Há ainda outro ponto comum: não ocorrem em meios tipicamente capitalistas. Um dos casos ocorre num país/partido comunista/popular; o outro num meio artístico/cultural. Isto presume que o fenómeno é certamente muito transversal e abrangente e, quem sabe, herança dos genes recolectores que subsistam.

Para lá do enquadramento legal, policial e penal que se pode dedicar a estes fenómenos com mais ou menos empenho e eficácia, há um aspecto fundamental. O aproveitar uma situação/oportunidade para deitar a mão ao que não é nosso, destrói o fundamento da nossa sociedade e é um retrocesso civilizacional. A tentação é grande e não parece conhecer restrições quanto ao meio em que se desenvolve mas, no entanto, a qualidade de vida que todos queremos depende do que construímos. São os valores que estão na base da criação da riqueza que se destroem e isto é pior do que o prejuízo material associado.

17 janeiro 2014

Orgulho e vergonha

No passado, na escola primária, falavam-nos tanto das glórias passadas, 500 anos atrás, que até chegávamos a questionar: mas de que serve isso hoje?!? Materialmente pode servir de pouco e não é muito construtivo caminharmos para a frente com a cabeça voltada para trás. No entanto, sabermos de onde vimos ajuda a saber quem somos e uma rica identidade é um factor valioso no presente. Vem isto a propósito de outro pormenor da história do meu país de que me orgulho muito.

“Está pois a pena de morte abolida nesse nobre Portugal, pequeno povo que tem uma grande história. (...) Felicito a vossa nação. Portugal dá o exemplo à Europa. Desfrutai de antemão essa imensa glória. A Europa imitará Portugal. Morte à morte! Guerra à guerra! Viva a vida! Ódio ao ódio. A liberdade é uma cidade imensa da qual todos somos concidadãos”.

Esta saudação é do escritor francês Victor Hugo, que já no seu romance “ O último dia de um condenado” de 1829 fazia uma pungente interrogação do sentido da pena de morte e um veemente apelo à sua abolição.

A abolição para crimes civis em Portugal ocorreu em 1867. Hoje, efectivamente, toda a Europa seguiu o pequeno país, assim como quase todo o mundo. Dentro das excepções encontra-se inexplicavelmente um grande país e com grandes responsabilidades no concerto das nações chamado Estados Unidos da América. Infelizmente, para lá de não desistir de executar condenados, demonstram ainda não saber matar como aconteceu no passado dia 16/1, com a execução de Dennis McGuire no Ohio. Face à impossibilidade de obterem os químicos habituais por parte dos fabricantes europeus que se recusam a fornece-los para esse fim, resolveram experimentar uma nova combinação. Tanto quanto entendo, a execução química deve ter uma fase inicial de anestesia antes da fase letal, que não deve ser sentida pelo executado. Desta vez, e não é caso único, correu mal. O desgraçado demorou 24 minutos a morrer tendo estado mais de 10 a arfar e em convulsões, não se sabendo bem se morreu asfixiado, aterrorizado ou por outro motivo qualquer!

Dois séculos após o romance de Victor Hugo e 150 anos depois do exemplo do pequeno país, há ainda quem agonize não só psicologicamente mas também fisicamente às mãos de um estado de direito. “Shame on you! “

08 janeiro 2014

Futebol, Fátima e Fado

Eram estes os 3 F’s que numa época triste simbolizavam a identidade nacional e mobilizavam o país. Para cada um deles, havia uma figura correspondente representante: Eusébio, Lúcia e Amália. Com o desaparecimento físico desses três símbolos, Lúcia a caminho da beatificação acelerada, Amália no Panteão, reivindica-se que Eusébio siga o mesmo caminho da fadista, apesar de isso não se enquadrar na legislação existente, que define quem deve ser homenageado no local.

Parece-me mal que isto seja debatido e até decidido a quente, assim como penso que estes assuntos deve ser definidos por princípios de base gerais e não em função de casos concretos. Se a legislação alterada levar Eusébio ao Panteão, que dizer nos dias, esperemos que longínquos, de Carlos Lopes ou Rosa Mota? Com todo o respeito pela figura e vida de Eusébio, fica um certo aroma de haver uma rentabilização excessiva da sua morte, de se estar ainda e sempre a sobrevalorizar os famosos 3 F’s.

Mesmo considerando que o horizonte temporal dos presentes no Panteão nacional é apenas da segunda metade do século 19 para a frente, estarem lá, além de Amália e Humberto Delgado, 4 escritores e 4 presidentes da República, é pouco representativo de todos os notáveis da pátria dos últimos 150 anos. Ou seja, este “Pan” não é muito abrangente e fazê-lo sede do Futebol e Fado também não o irá engrandecer.

No fundo, o importante não é onde ficam os ossos, é o que resta da vida. Mais importante do que o material morto é o imaterial vivo. Como dizia muito sabiamente um grande, dos maiores: “A minha pátria é a língua Portuguesa”.

02 janeiro 2014

Eu e a música tradicional portuguesa - Da teoria à prática

Fruto de um conjunto de circunstâncias, eu e um grupo de amigos assumimos a direcção de um grupo folclórico nos anos 80 – “A Rusga de Arcozelo”. O grupo tinha já na sua carta de intenções que folclore era mais cultura do que espectáculo, que não se devia limitar às danças e cantares, nem estes se restringirem aos palcos.

Do ponto de vista musical deveria obviamente procurar o rigor e a riqueza que, de uma forma geral, são procurados para os trajes (embora por vezes mais para os femininos). Na altura em que assumimos o grupo, a tocata compunha-se de um acordeão (executante remunerado) e dois ou três instrumentos de corda, apenas a fazerem acompanhamento. Uma das vantagens do dito cujo é que, para o bem e para o mal, ele pode assumir sozinho a festa e isto é importante quando não está em causa uma ou duas actuações, mas sim várias dezenas por ano.

Não havia executantes em quantidade e muito menos com a qualidade necessária para interpretar a melodia em cordas, permitindo assim dispensar o dito cujo de um dia para o outro. Não existiam muitas escolas de música e os poucos que aprendiam (principalmente piano… teclas…) não estavam minimamente motivados para um projecto desta natureza.

Foi procurada e nomeada uma pessoa para assumir a responsabilidade da tocata, função tantas vezes órfã; foi encontrada e preparada uma pessoa que lá passou as melodias para as cordas de um bandolim e foram formadas outras, que sem formação ou apetência musical significativas, aprenderam o estado de espírito necessário para acompanhar a função. Eu fiz parte deste último grupo.

Iniciou-se uma fase transitória em que o acordeão aprendeu a respeitar e a dar o espaço aos demais, recuando em todas as fases em que não era indispensável. Quem cantava reaprendeu a fazê-lo por sua iniciativa, deixando de ser em cópia do fole e, quando se entendeu que estava pronto, pronto ficou, e sem acordeão.

Não estávamos ao nível técnico dos grupos bem preparados, da “música tradicional em segunda mão”, mas o objectivo não era esse. O objectivo principal era respeitar a origem e, curiosamente ou não, confirmar que o resultado final além de mais correcto era mais rico e mais agradável de ouvir.

E um exemplo simples do resultado final está aqui.

Continuação do anterior "A culpa"

E acabou...!