22 janeiro 2014

Os recolectores do alheio

Num passado longínquo o ser humano era recolector. Passava e apanhava o que a natureza tinha para dar. Há um processo evolutivo posterior em que passamos a viver do que plantamos e a usufruir do que construímos. Esta organização social, que nos permite viver com uma qualidade muito, muito superior à desses tempos de recolectores, deixa pouco espaço para andarmos por aí a apanhar coisas na natureza.

Esta reflexão vem a propósito de duas notícias que me passam à frente dos olhos. O caso da China em que funcionários e próximos do aparelho do poder deitaram a mão a uns largos milhares de milhões e os aconchegaram em oportunos paraísos fiscais. Outro caso mais próximo e mais comezinho, passa-se na casa Fernando Pessoa, em Lisboa, que encomenda serviços directamente a uma empresa que tem sede na residência da sua directora artística. Em ambos os casos, local e dimensão à parte, há aparentemente um ponto comum: aproveitar uma oportunidade para ficar com uma maçã que está ali à mão, mesmo sem ter direito a ela. Há ainda outro ponto comum: não ocorrem em meios tipicamente capitalistas. Um dos casos ocorre num país/partido comunista/popular; o outro num meio artístico/cultural. Isto presume que o fenómeno é certamente muito transversal e abrangente e, quem sabe, herança dos genes recolectores que subsistam.

Para lá do enquadramento legal, policial e penal que se pode dedicar a estes fenómenos com mais ou menos empenho e eficácia, há um aspecto fundamental. O aproveitar uma situação/oportunidade para deitar a mão ao que não é nosso, destrói o fundamento da nossa sociedade e é um retrocesso civilizacional. A tentação é grande e não parece conhecer restrições quanto ao meio em que se desenvolve mas, no entanto, a qualidade de vida que todos queremos depende do que construímos. São os valores que estão na base da criação da riqueza que se destroem e isto é pior do que o prejuízo material associado.

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