28 janeiro 2010

Compulsos (2)

(Começou em )
- Eu, eu imagino demais. Em qualquer momento, entre o acordar e o adormecer, vejo-me num guião de algo que me vai acontecer: desgraçado, heróico, amoroso. Qualquer coisa em que estou no centro do mundo. Não planeio o que vou fazer ou o que necessito, apenas penso no que gostaria que me acontecesse.

E assim fechou aquele dia da macedónia das compulsões, todos visivelmente preocupados e reflectindo se realmente queriam mesmo trocar a sua mania de estimação bem conhecida, por uma mistura média daquelas maluqueiras todas.

Ele não pode deixar de a seguir com o olhar, receando concorrenciar em atitude o compulso da atracção. Não pensou nisso. Fiel à sua mania, lá imaginava que ela teria um desvio, um percalço, que evitaria que ela entrasse banalmente no automóvel e partisse. Qualquer coisa de que ele a salvaria, que ela o admiraria.... e, e, e, e...

Ao voltar para casa, imaginava como seria bom que a Joana lá estivesse esperando-o em surpresa sentada jovialmente na soleira da porta. Era altamente improvável; a Joana nem sabia onde ele vivia nem ele a tinha visto alguma vez sentada numa soleira. Era um cometa que uns anos antes atravessara o seu mundo, sem parar, sem lhe tocar e, depois disso, cada vez que pensava em brilhar, o brilho tinha o nome dela. Se ele soubesse desenhar como a mulher do círculo, desenharia a Joana que imaginava e talvez ao contemplar o desenho, por um momento, apenas contemplasse e parasse de imaginar.

Ela já se tinha habituado a utilizar toalhas de papel na mesa. Não porque lhe desagradasse riscar no pano; apenas porque rapidamente se saturavam e era caro substitui-las. O jantar era o momento alto do traço. Tinha-se instalado depois da ruptura com o João. Uma espécie de sudedâneo de diálogo. Sorriu ao recordar-se do círculo e do homem da imaginação: se ela fosse como ele estaria a imaginar agora que o ausente lhe tocava à porta. Suspendeu o traço por um momento, o tempo de imaginar e de recomeçar com mais vigor e uma ligeira humidade nos olhos.

De qualquer forma iria continuar no círculo. Quanto mais não fosse por curiosidade antropológica. Não que tivesse falta de imaginação para os traços, mas poderia ser sempre útil. Naquele momento entendeu que riscava mais por automatismo do que por inspiração e não gostou da constatação.

Se ela conseguisse imaginar o João pararia. Pararia de riscar e ficaria um momento reflectindo, olhando para dentro de si, em vez de estar constantemente entornando-se para fora.

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26 janeiro 2010

Compulsos (1)

Bem-vindos! Bem-vindos a este círculo dos compulsivos. Todos temos pulsões e compulsões, apenas a sua natureza e ponderação muda. Se as misturarmos e as distribuímos na boa medida, seremos todos normais.
- Eu, eu tenho a compulsão de olhar para a televisão em qualquer lugar. Na cozinha, na sala, no quarto de dormir, no de banho. Já instalei uma, é ilegal eu sei, no carro e agora tenho uma portátil na bolsa que vai zumbindo enquanto caminho e, de vez em quando, paro e pego nela para ver o que está a dar.

-Eu – desta vez um homem – tenho a compulsão de... de... como dizer assim em público – e ruborizava – como dizer... Acho demasiadas mulheres demasiado atraentes e penso .. penso.. penso...

- Eu – dizia uma coquete com um toque de desprezo apelativo dirigido ao anterior interveniente – eu não passo um dia sem comprar uma coisa de que gosto. Uma loja, uma montra... ai, ai, ai!...lá me apaixono sempre.

- Eu – novamente no masculino – eu, eu não consigo ver um automóvel à minha frente sem ter o impulso de o ultrapassar!

Sonolento ele via passar um desfile de pancadas banais e menores, desligando detalhes. Não é que quisesse mesmo ser normal, normal. Apenas um pouco menos compulsivo. Ia divagando e imaginando coisas normais até o moderador o acusar de estar a quebrar o círculo. Foi nessa altura que ela falou. Aliás, era das pessoas que para muita coisa nem necessitava de falar. Um simples olhar colocado e tudo parava à sua volta.

- Eu – dizia ela – não consigo ver um papel sem desenhar. Guardanapo, jornal, livro, embalagem. Em todos eles me debruço e me despejo.

A senhora das compras perguntou se ela também riscava catálogos de lojas e a da televisão reconhecia que também gostava de pôr estrelas no guia da TV, conforme a sua avaliação dos programas que via.

Ela não respondeu e olhou para ele passando-lhe, inapelável, a palavra.
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16 janeiro 2010

Pobreza e pobreza

Desta vez é o Haiti que está no foco mediático global. Este texto é politicamente incorrecto, mas quero começar por deixar claro que não estão em causa o pesar e a solidariedade que a dimensão humana da tragédia desperta, nem criticar a oportunidade ou a modalidade da ajuda humanitária global em curso. Longe disso.

A incorrecção vem de uma reflexão sobre um certo sentimento de culpa que se instala nestes momentos no primeiro mundo relativamente à pobreza e à fome no mundo. A fome e a pobreza não são relativas. Para cada ser humano por elas afectado as consequências são muito concretas. Agora, o que também é verdade é que uma boa parte dessa miséria tem factores endógenos. O caso concreto do próprio Haiti comparado com a Dominicana com quem partilha o mesmo meio natural é expressivo. Será o “primeiro mundo” responsável por essa diferença?

O Ruanda é um exemplo eloquente. Há menos de 20 foi arrasado por uma barbaridade que deixou profundas cicatrizes materiais e sociais. Sem recursos naturais significativos tinha todas as “condições e justificações” para continuar no caos mas hoje é um exemplo. Liderado por Paul Kamage conseguiu pacificar-se, estruturar-se, reconstruir-se e içar-se brilhantemente para os lugares cimeiros dos índices de desenvolvimento social em África!

Existem no mundo milhões de seres humanos impossibilitados de viverem com um mínimo de dignidade por razões que não são condições climatéricas adversas, meio ambiente hostil ou ingerências externas. Uma grande parte da pobreza no mundo é devida a má governação com os vários ingredientes que a mesma comporta.

Obviamente que o princípio da “soberania dos povos” limita a ingerência externa disciplinadora para os governantes incompetentes no sentido lato da palavra. No entanto, da mesma forma como há crimes contra a humanidade em cenários de guerra, não poderia haver lugar a uma figura penal para estes casos em que a paz é apenas formal?

Dentro do cenário da diferença entre o “dar um peixe ou ensinar a pescar”, a ajuda humanitária é apenas o dar o peixe para as necessidades imediatas. O resto passará por “ingerência externa” e responsabilização penal dos criminosos. A caridade não chega.

13 janeiro 2010

Casais e famílias

Parece-me defensável que dois homossexuais possam ter um contrato social que enquadre a sua partilha de vida, estabeleça direitos e obrigações mútuos, regulamente partilhas e heranças e outras coisas desse género. Aliás até nem me chocaria demasiado que 3 ou 4 pessoas, maiores e vacinados, decidissem constituir uma “família”, independentemente do respectivo sexo e orientação, originais ou modificados.

Quanto à adopção, a esfera é outra: a avaliação determinante é no ponto de vista do adoptado. Por isso, quando se começa a discussão falando no “direito à adopção”, já se está a entrar pelo mau caminho, com os papeis secundários a roubarem o palco aos protagonistas.

É que pela mesmíssima ordem de razões, não vejo nenhum motivo racional para não legalizar também a poligamia e respectivo direito à adopção. Se não há problema em ter dois pais ou duas mães, qual o problema de ter um pai e duas mães, ou duas mães e um pai? Seria uma restrição discriminatória, anticonstitucional e, inclusive, antidemocrática, considerando que presumivelmente há muito mais gente com inclinação sexual “poli” do que “homo”! A diferença é que o “poli” é socialmente condenável e considerado retrógrado enquanto o “homo” deixou de ser censurável e passou mesmo a ser sinónimo de modernidade.

A heterodoxia no relacionamento entre adultos é uma coisa que choca mais ou menos conforme o contexto e, talvez, o hábito (eu nunca me irei habituar ao mau gosto horrível das paradas gay). Quanto a menores a história é outra. Não ter pai nem mãe é uma coisa, mas ter dois pais ou ter duas mães não é normal. As relações afectivas com pai e com mãe têm diferenças concretas, função do sexo real do progenitor. Os técnicos, pedopsiquiatrias e até psicanalistas, poderão esclarecer com rigor e fundamento, se quiserem, mas falar disso não está “in”...

07 janeiro 2010

A rapariguinha do shopping

Um cheque da Fnac prestes a expirar fez-me correr a um “shopping” um dia antes do final do ano. Bom... se o movimento com crise é aquele, que seria se ela não existisse?!

Com o tempo limitado e sem muita paciência para acotovelar o necessário e optimizar os 10 Euros, trouxe um velho disco histórico que ainda não possuía, o primeiro do Rui Veloso, “Ar de Rock”, álbum que abre com o tema: “A rapariguinha do shopping”! E dá vontade de comparar, 30 anos depois, as duas gerações de rapariguinhas do shopping. Seguramente que a actual não traz uma revista de bordados nem faz malha no autocarro. Descerá as escadas rolantes enviando SMS’s por um telemóvel catita e já terá até ganho para o carrito. O olhar rutilante, abanar das ancas, rimel e crayon é que talvez sejam os mesmos....

Há 30 anos, a rapariguinha tinha pretensamente subido na vida. Já só se dava com gente bem e ia ao sábado à noite à boite! Hoje é o contrário. Poderá continuar a sentir o glamour por procuração de vender moda a gente, alguma, bem e irá seguramente à boite... mas o shopping é agora um elevador social que vai mais para baixo do que para cima.

Algumas rapariguinhas do shopping até terão uma licenciatura pública ou privada, um daqueles canudos mais ou menos consistentes e por lá andarão mais ou menos a prazo, em horizontes mais ou menos longos ou claros, mais ou menos acomodadas.

Os ditos cujos podem ser muito giros, alguns, e até práticos. Os investimentos em shoppings poderão ter tido um bom retorno financeiro para os promotores e construtores. No entanto, em termos sociais, culturais é até mesmo macro-económicos quanto ao impacto no crescimento do país, o efeito é nulo... ou negativo.

04 janeiro 2010

O Homem não é relativo

No virar do ano com os indispensáveis balanços e previsões, dei conta de que hoje, 4 de Janeiro de 2010, se completam 50 anos da morte de Albert Camus, para mim um dos espíritos mais belos e brilhantes do século XX. De uma clarividência extraordinária e com uma experiência de vida riquíssima, acabou como um proscrito do meio existencialista francês cuja miopia o considerava demasiado humanista. O tempo, supremo filtro, vem provando que Camus é intemporal enquanto o “papa” Sartre fica como uma referência datada, sendo necessárias realmente muitas dioptrias para conseguir defender Staline e Mao sem reconhecer o que eles realmente representavam. Para Camus o mundo não se dividia em “gregos contra troianos” onde é necessário optar por um lado até às últimas consequências; para ele o mundo era composto por homens. Foi resistente à ocupação Nazi, denunciou o Gulag e criticou ambos os lados do processo de independência da Argélia. Assim é difícil manter "amigos".

Ao iniciar o 2010 e nos 50 anos do seu desaparecimento, recomendo revisitar o grande Camus, e deixo aqui um aperitivo, repetido já de outra entrada anterior:

“Vivemos no terror porque a persuasão deixou de ser possível, porque o homem se entregou inteiramente à história e já não se pode voltar para a parte de si mesmo, tão verdadeira quanto a parte histórica, e reencontrar face a ele a beleza do mundo e dos rostos, porque vivemos no mundo da abstracção, o dos escritórios e das máquinas, das ideias absolutas e do messianismo sem nuances. Asfixiamos entre aqueles que acreditam terem absolutamente razão, seja na sua máquina, seja nas suas ideais. E para todos os que não podem viver que não seja no diálogo e na amizade dos homens, este silêncio é o fim do mundo.”
Da colectânea de textos “Reflexões sobre o Terrorismo”