30 dezembro 2005

Um 2006…




Pleno de novos destinos, surpreendentes e desafiantes!!!

(Só falta mesmo é encontrar a bilheteira…)

28 dezembro 2005

Talvez me tenha reconciliado…


Quando José Saramago ganhou o Nobel em 1998, senti uma grande satisfação. Apreciador da sua obra que tinha lido praticamente na íntegra, a leitura recente do “Todos os nomes” proporcionara-me um enorme prazer.

O que se seguiu, fez-me perder rapidamente essa satisfação. Desde o partido a tentar tomar posse do prémio até aos conservadores católicos ressuscitando a polémica do “Evangelho”, polémica essa típica de quem nunca o terá lido. Saramago reage de forma infeliz à pressão dos holofotes mediáticos. De repente, toda a gente começa a falar e a comentar “Saramago”, mesmo aqueles que não tinham passado das três primeiras páginas do “Memorial do Convento”. Profundamente irritante.

Seguiu-se “A Caverna” que achei fraco e algo repetido sem nova graça. O “Homem Duplicado” prometia muito mas, enquanto em “Todos os nomes”, Saramago nos deslumbra a partir de um enredo singelo, neste o enredo promete mas o desenvolvimento desilude.

Estava na dúvida sobre o futuro a dar a este autor na estante das minhas preferências quando foi editado o “Ensaio sobre a lucidez”. A forma como ele chegou foi suficiente para desanimar qualquer um. Proliferação de comentários e de declarações infelizes de quem sabe e de quem não sabe.

Decidi não o ler. Corria o risco de contaminar a análise de uma obra literária com tanta a poeira que à volta dela esvoaça. Esperava mais tarde conseguir desligar a sua qualidade intrínseca daquela ruideira que em nada dignifica a Literatura.

Agora arrisquei “As Intermitências da Morte” e acho que Saramago regressou. Tive o cuidado de não ouvir nem ler previamente nenhum comentário nem opinião, nem sequer do autor. Não será o melhor livro dele, na minha opinião, mas gostei. Duas curiosidades. Uma, a enorme diferença de ritmo e de estilo narrativo que divide claramente livro em duas partes. A segunda, quando eu pensava que desta vez não teríamos uma mulher jovem atraída irresistivelmente por um homem maduro, Saramago dá a volta e seduz nem mais nem menos do que a própria morte. É obra!!!

26 dezembro 2005

Efeméride

O texto abaixo foi escrito pouco depois do 26 de Dezembro de 2004 e publicado como “Carta ao Director” no jornal "Público" de 6 de Janeiro de 2005. Revisto à distância, penso que não terá andado muito longe da realidade….

26 de Dezembro de 2005

Nessa data será evocada a efeméride sobre o maremoto de 2004. Iremos rever algumas das imagens que hoje nos passam e repetem à exaustão.

Algumas zonas estarão reconstruídas, talvez melhor ou talvez caoticamente, como estavam antes do acidente. Alguns habitantes dos países pobres terão migrado internamente. Estarão como estavam em 25 de Dezembro de 2004, e continuaram, uma boa parte da população da Índia, Sri Lanka e Indonésia, sem o mínimo de condições sociais e com infra-estruturas inexistentes ou degradadas.

Alguma ajuda humanitária continuará lá, abnegadamente, como está noutras partes do mundo, mas agora sem o privilégio dos focos das televisões e dos directos sem conteúdo.

Estarão turistas em “resorts”, implantes com todas as comodidades, alguns a escassa distância dos miseráveis que continuarão com dificuldade em obter água potável. Os mesmos turistas que, em Pukhet, foram gozar a praia, depois da catástrofe, quando o mar ainda tinha muitos corpos para devolver. Os mesmos turistas que festejaram a passagem de ano, alheados dos riscos para a saúde pública dos largos milhares de corpos por enterrar.

Os embaixadores de Portugal no Mundo continuarão entretidos com os seus croquetes e esperando que nada importante ocorra que possa solicitar o seu trabalho e justificar o seu estatuto.

A Europa continuará a exportar os seus excedentes agrícolas, como o açúcar, que são subsidiados para serem produzidos em excesso e depois escoados para países do terceiro mundo, em pseudo-ajuda, a preços ridículos, inviabilizando a produção local e tornando esses países dependentes desta caridade.

Provavelmente nalgum canto do Mundo terá ocorrido outro “Darfur” com algumas dezenas de milhares de mortos perante simples palavras de circunstância.

A língua portuguesa terá ficado enriquecida com outra palavra para maremoto, derivada do japonês, e enxertada por aqueles para quem importar palavras é “in”.

24 dezembro 2005

Charlot, Património Mundial

No dia 25 de Dezembro de 2005 passarão 28 anos sobre a morte do Grande Chaplin. Eu acho que Charlot deveria ser considerado património cultural da humanidade. Em qualquer época, em qualquer lugar deste mundo, aquele vagabundo é entendido e adorado. Sobretudo por quem tiver olhos e coração abertos, como as crianças. O pobre frágil e ágil, vencendo o bruto poderoso e tosco e, ainda por cima, ganhando no fim a menina bonita, é receita certa. Talvez por isso alguns intelectuais o achem sentimentalão e lamechas. Isso só pode, no entanto, vir de quem está distraído ou nauseado consigo próprio.

Uma leitura atenta dos filmes e, já agora, da sua biografia, permite ver muito mais. Charlot tem fome. Charlot luta pela comida, luta pela sobrevivência, obstinadamente. A comida tem uma presença quase obsessiva na sua obra. No topo está, naturalmente, a fabulosa cena da bota na “Quimera do Ouro.”

A mesma “Quimera do Ouro” produzida pela sua United Artists, frágil e ágil contra todo o poder das grandes produtoras apostadas em o ver falhar. E um dos filmes mais belos que eu já vi.

De novo a partir da “Quimera”, a dimensão coreográfica da deslumbrante dança dos pãezinhos. Mas não só. O movimento de Charlot em cena é muitas vezes pura e simplesmente um bailado.

Para os distraídos, Charles Chaplin, já sem Charlot, sem máscara, deixa em dois dos filmes finais uma nota explicativa da sua obra: “Luzes da Ribalta” e “Um Rei em Nova Iorque”. No primeiro está lá a dança explícita, a fugaz fronteira entre o sorriso e o esgar e a tenacidade da sobrevivência sem renuncia da beleza. No segundo, da mesma forma como o vagabundo batia no bruto sem piedade, Chaplin bate com elegância mas sem piedade numa América hipócrita e oca que o tinha envolvido na caça às bruxas por “actividades anti-americanas”.

Quem ainda o achar sentimentalão e lamechas, só pode estar mesmo muito distraído. Charlot é, de facto, com ou sem formalismo, património cultural da humanidade.

21 dezembro 2005

Ainda a AFA

Na sequência do texto anterior sobre a "American Family Association" e do comentário da Olivina, acrescento…

Embora a sociedade americana funcione de uma forma exagerada e quase caricatural em muitos aspectos, este tom de cruzada não é específico dos EUA. Considero ser uma enorme falta de coerência estes movimentos “católicos” de “pressão” preocuparem-se com estas coisas e ao mesmo tempo verem de forma resignada problemas muitíssimo mais graves face aos princípios da sua doutrina, sem falar sequer dos básicos direitos do homem. Daí o zoom inverso.

Sobre os crucifixos nas escolas portugueses existe alguma analogia. As argumentações a favor da sua manutenção por gente inteligente, além de roçarem a desonestidade intelectual, são uma tentativa de impor ao universo a marca da maioria. E, para avaliar isto, nada como calçar o sapato do “outro”. Que diriam eles se, integrados numa comunidade maioritariamente islâmica, mas que quisessem sentir também como sua, vivessem permanente debaixo de um crescente colocado em cada sala de aula, em cada cama de hospital, em cada repartição pública, jurassem em tribunal sob o Corão e etc…? Achariam isso perfeitamente “normal” e um legítimo direito da maioria? Vai uma aposta???

19 dezembro 2005

As grandes causas das famílias americanas

AFA - American Family Association. Com poucos dias de intervalo vi esta poderosa associação conservadora americana envolvida em dois casos curiosos.

A AFA achou grave que a Ford fizesse publicidade em revistas “gays” e pressionou a construtora de automóveis, ameaçando lançar uma acção de boicote contra os seus modelos. A Ford foi sensível à pressão e suspendeu a publicidade. De seguida os “gays” pressionaram e, em duas semanas, a Ford deu o dito por não dito e retomou esses anúncios.
Resultado: AFA – 0; Gays - 1.

A AFA não gosta da tendência verificada nos EUA de, em vez de se desejar um cristão “Feliz Natal”, se falar somente em laicas “Festas Felizes”. E lançou um boicote contra a cadeia Target, que tem 1400 lojas, por ela não falar explicitamente em Natal. 700 000 pessoas protestaram e a Target cedeu. A AFA tem mais marcas e cadeias na mira.
Resultado: AFA – 1; Laicos - 0

Duas sugestões
Eu acho que tudo se resolveria se, por exemplo, a Ford segmentasse o mercado: Ford para cristãos, Volvo para gays, Jaguar para judeus, Mazda para islâmicos e etc. O retalho também poderia criar redes de lojas especializadas à sombra de crucifixos, crescentes, estrelas de David, olho maçónico e por aí fora.

Duas constatações.
Algo me diz que esta civilização está a andar para trás,,,
Sem dúvida que o pressionar está muito na moda. Pressão é, por definição, uma força distribuída numa superfície. Entre a origem da força e o alvo existe um meio que é utilizado para transmitir e distribuir o efeito.

E um corolário.
São estes os problemas importantes e agudos da nossa sociedade e que justificam a mobilização maciça de boas vontades. Face a eles, os milhões de subnutridos do planeta, crianças sem escola, doentes sem assistência médica devida e outras misérias humanas são uma simples fatalidade e parte daqueles insondáveis desígnios supremos contra os quais somos todos impotentes.
E dos crucifixos esquecidos nas escolas portuguesas, nem falamos.

16 dezembro 2005

Alvorada



E um dia avalia-se

Os meus traços que se afundam, o meu tamanho ridículo, o meu tempo aprazado…

E diz-se que não!

Que por detrás do que parece correr, está uma dimensão profunda, que ensaia o infinito da nossa expectativa de infância.

O nosso tempo aprazado age, reage, encerra, aquilo que no fim pouco importa.

A grandeza está em como tu respondes ao meu sorriso de criança...

14 dezembro 2005

As liturgias musicais



Como já disse aí atrás, para mim a música anglo-saxónica “morreu” nos anos 70. Fui revisitá-la. E, sem grande rigor de representatividade, fiz uma lista com os seguintes temas:

Genesis – The Supper’s Ready (Foxtrot)
Pink Floyd – Shine on You Crazy Diamond (Wish you were here)
Vand der Graaf Generator – Wondering (World record)
Camel – Ice (I Can See Your House from Here)
King Crimson –The Court of the Crimson King (idem)
Jethro Tull – Aqualung (idem)

São temas que duram mais dos que os 3 minutos da praxe. Alguns muito mais mesmo. Com uma construção musical mais ou menos complexa em que alterna um registo intimista com teclas ondulantes a encher todo o espaço e batidas empolgantes acompanhadas por sintetizadores ziguezagueantes.

Temas em que, para lá de uma melodia mais ou menos bem arranjada, têm algo quase de litúrgico. De celebração da expressão musical.

Se alguém achar que foi feito algo de parecido dos anos 80 para cá e que arrisque ser colocado ao lado, em particular, da “sinfonia” “Supper’s ready”… avise…

12 dezembro 2005

“Grandes para quê?”

Esta pergunta foi utilizada por um fabricante de automóveis para promover um utilitário, procurando evidenciar que ele servia para a mesma função do que os outros maiores. Em parte, tinham razão. Infelizmente os estrategas da Ford e da General Motors nos EUA não viram o anúncio e acharam que se deveriam concentrar nos automóveis grandes, entregando o mercado dos “pequenos”, à escala deles, aos japoneses. Entretanto, os japoneses atacaram também os grandes e, com o aumento do preço do petróleo, os clientes descobriram que não necessitavam mesmo de automóveis grandes, criando um grave problema a esses construtores.

Falando nos preços altos do petróleo e na escassez dos recursos naturais, podemos falar também no efeito de estufa e nas quotas de CO2, das quais se começam a fazer os primeiros balanços, confrontar tudo isto com a obsessão económica pelo crescimento e questionar: crescer para quê?

Crescer! As empresas devem crescer para não serem engolidas pelos concorrentes; as economias dos países devem crescer para não perderem terreno. Mas … para que necessitamos de ter 10 cv mais nos nossos automóveis, cada ano que passa? Para que necessitamos de aumentar ainda mais a produção de produtos agrícolas, já excedentários e, ao mesmo tempo, sem conseguirmos acabar estruturalmente com a fome no mundo?

Razoabilidade na utilização dos recursos do planeta: Será razoável que, devido ao crescimento e ao embaratecimento dos voos aéreos, haja ingleses que voem para Girona, unicamente para comprar bebidas alcoólicas e regressem carregados de garrafas, de tal forma que a poupança “paga” a viagem? Ou que se exportem maçãs do Brasil em carga aérea, chegando aos supermercados europeus mais “baratas” do que as do vizinho que as deixa cair da árvore?

W. Churchill dizia que a guerra era um assunto demasiado sério para ser deixado exclusivamente ao cuidado dos militares. Eu acrescentaria que a economia é um assunto demasiado sério para ser deixado exclusivamente ao cuidado dos economistas.

Existe uma dinâmica de evolução intrínseca da natureza humana. Crescer sim mas: “Grandes em quê?”.

05 dezembro 2005

Será ???

Alguns anos atrás, este texto era impresso em posters com fundo bonito e fixado nas paredes. Acho que hoje estará muito fora de moda. Hoje, este perfil não será o de um Homem mas sim o de um grande totó, não?

SE

Se tu podes impor a calma, quando aqueles
Que estão ao pé de ti a perdem, censurando
A tua teimosia nobre de a manter.

Se sabes guardar sem ruga e sem cansaço.
Privar com Reis continuando simples,
E na calúnia não recorres à infâmia
Para com arma igual e em fúria responder,
- Mas não aparentar bondade em demasia
Nem presumir de sábio ou pretender
Manifestar excesso de ousadia, -

Se o sonho, não fizer de ti um escravo
E a luz do pensamento não andar
Contigo no domínio do exagerado,

Se encaras o triunfo ou a derrota
Serenamente, firme, e reforçado
Na coragem que é necessário ter
Para ver a verdade atraiçoada,
Caluniada, espezinhada, e ainda
Os nossos ideais por terra. — Mas erguê-los
De novo em mais profundos alicerces
E proclamar com alma essa Verdade!,

Se perdes tudo quanto amealhaste
E voltas ao princípio sem um ai,
Um lamento, uma lágrima, e sorrindo
Te debruças sobre o coração
Unindo outras reservas à Vontade
Que quer continuar, e prosseguindo
Chegar ao infinito da razão,

Se a multidão te ouvir entusiasmada
E a virtude ficar no seu lugar,

Se amigos e inimigos não conseguem
Ofender-te, e se quantos te procuram
Para estar com o teu esforço não contarem
Uns mais do que outros, — olha-os por igual!,

Se podes preencher esse minuto
Com sessenta segundos de existência
No caminho da vida percorrido
Embora essa existência seja dura
À força das tormentas que a consomem,

Bendita a tua essência, a tua origem
- O Mundo será teu,
E tu serás um Homem!

RUDYARD KIPLING
(Trad. de António Botto)


E lembrei-me de acrescentar uma parte da carta final de Nicolau Stavrougine do grandioso “Os Possessos” de Fedor Dostoivesky que me ficou gravada:

“Mas também aqui não pude odiar ninguém”

Tem que ser crime

“O Fiel Jardineiro” fez-me ir buscar ao meu baú este texto que escrevi o ano passado, a propósito dos 10 anos do genocídio do Ruanda. Sempre actual, sempre actual….

Há 10 anos tive o “privilégio” de seguir o genocídio do Ruanda em simultâneo nos meios de comunicação belgas e franceses. Foi a primeira vez que vi, com tamanha evidência, como um simples telejornal pode ser um instrumento de manipulação e de deformação da opinião pública.

A cobertura era pouco objectiva, dominada, por um lado, pela impotência e complexo dos belgas, antiga potência colonial, e, por outro, pela confusão e apreensão dos franceses relativamente a uma investida da influência anglófona naquela zona sensível.

É relativamente claro que na origem do drama estiveram interesses externos que atiraram gasolina para as brasas das tensões étnicas, provocando uma explosão muito maior do que a esperada.

Foi publicado recentemente um relatório da “Global Witness” sobre a situação em três países petrolíferos africanos, Congo, Angola e Guiné Equatorial. Segundo esta ONG, e só a título de exemplo, um em quatro dólares das receitas de petróleo é desviado pelo governo angolano, representando cerca de 1,7 biliões de dólares por ano, e, ao mesmo tempo, uma em cada quatro crianças angolanas morre antes dos 5 anos.

Além dos mortos e da miséria no presente, a falta de infra-estruturas sociais e de educação comprometem o futuro desenvolvimento desses países por uns bons anos.

Quase em simultâneo a “Transparency International” vem contar que somente 3 figuras somadas, Mohaemmed Suharto na Indonésia, Ferdinando Marcos nas Filipinas e Mobutu Sese Seko no Zaire terão desviado um total de 50 biliões de dólares, o equivalente a um ano inteiro de ajuda ocidental a todos os países subdesenvolvidos do mundo.

No tempo em que existiam colónias e colonizadores, estes, apesar de tudo, tinham a responsabilidade moral de organizar um mínimo de infra-estrutura social, sistema de educação e de assistência. Actualmente os antigos colonizadores continuam, em geral, a usufruir das matérias-primas das antigas colónias, subornando a elite dirigente. Como os países são “independentes”, desresponsabilizam-se totalmente da gestão que os “governos soberanos” fazem. É aparentemente cómodo mas é criminoso.

Numa altura em que se avança no conceito e na aplicação de uma Justiça Internacional, estas situações têm que ser consideradas crime. Os oligarcas locais são responsáveis mas, no hemisfério norte, existem cúmplices activos. Que, inclusive, não hesitam em instigar e patrocinar mudanças violentas de regime quando está em causa a perda da sua “influência”. O que se passou no Ruanda em 1994 foi, aparentemente, uma mudança que saiu fora do controle e que ultrapassou os padrões “habituais” das mudanças naquela zona do globo. Veja-se a história das últimas décadas na África Ocidental que está recheada de mudanças violentas sob o perfume do petróleo.

Tem que ser crime e o seu julgamento não pode ficar limitado aos autores materiais. O primeiro passo para haver alguma justiça é desmascarar a hipocrisia com que o mundo ocidental olha para esta situação de calamidade humanitária.

04 dezembro 2005

A Onu e as renas

Três criadores de renas na Lapónia, queixaram-se de que o corte de árvores na sua região pela Metsahallitus, empresa pública florestal finlandesa, era ilegal. Um tribunal decretou que o corte deveria ser suspenso provisoriamente e que os criadores teriam que apresentar uma garantia bancária de 1,05 Milhões de Euros, para poderem compensar as perdas da Metsahalitus, no caso de a decisão final do tribunal não lhes dar razão.

Na impossibilidade de apresentarem tal garantia, os criadores de renas apelaram à ONU, alegando discriminação perante a justiça. O comité dos direitos humanos da ONU solicitou a suspensão dos cortes e a Metsahalitus concordou. Esta história passa-se na Finlândia que por acaso, ou sem acaso, está no topo de muitos índices “civilizacionais”.

Não deixa, no entanto, de ser curioso comparar esta eficácia da ONU na defesa dos direitos humanos com, e é só um exemplo, o Darfur em que centenas de milhares de pessoas foram chacinadas perante pouco mais do que palavras de circunstância.

Também é curioso comparar este caso das renas com outro passado na mesma altura. Uma série de explosões numa fábrica petroquímica em Jilin, no nordeste da China, provocou uma mancha de 80 km de benzeno tóxico no rio Songhua. A jusante, na cidade de Harbin de 3,1 milhões de pessoas, a água foi cortada por quatro dias, esperando que a mancha passasse. Na mesma região, pouco tempo depois, mais uma exposição numa mina mata 166 pessoas, o que já parece uma rotina na China.

Ainda falta muito para que muitos seres humanos neste mundo tenham, na prática, os mesmos direitos que as renas finlandesas.

02 dezembro 2005

O Fiel Jardineiro



Finalmente! Um filme que me encheu as medidas!

Antes de mais, é um filme que não tem perfil “bossa de dromedário” como irritantemente costumam ter os filmes americanos.

Passo a explicar. Nesses filmes o “herói” começa lá bem no fundo das costas do bicho. Depois, com esforço e sorte lá consegue subir para a bossa. Quando se instala lá em cima, algo de imprevisto acontece e perde o equilíbrio. Ficamos na expectativa se voltará lá para a parte de trás do bicho, onde cheira mal … Mas não, felizmente não. A queda é para a frente, para o pescoço do animal. Depois, com tenacidade, lá se consegue içar para a cabeça e o final chega com o herói aí pendurado, dominando o mundo.

Experimentem ver/rever alguns filmes à luz deste perfil e digam lá se a maior parte deles não segue este esquema de “bossa de dromedário”. Nem sequer se arriscam a tentar o “perfil camelo”… duas bossas poderiam confundir os espectadores e engasga-los com as suas pipocas.

Segundo se dizia em 2000, a ideia para o livro de John Le Carré, que dá o argumento ao filme, da falta de ética e, no limite, da agressividade da indústria farmacêutica, surgiu-lhe ao tomar conhecimento do nosso caso Alfredo Pequito / Bayer.

Não sei se o filme ficará para a história. Mas achei-o belíssimo e incisivo. Com uma elegante e fundamentada acusação à brutal hipocrisia dos ex-colonizadores.

De ficar no final parado e arrasado por aquela África com tanto de deslumbrante quanto de miserável.

01 dezembro 2005

Quem pode criticar?

Depois das várias considerações e contra-considerações em textos anteriores do Glosa Crua sobre a autoridade das minhas críticas, sintetizei este texto, que foi publicado no “Público” de 28/11/2005 como “Carta ao Director”. Será que fica mais claro? Se calhar não…


Estamos a assistir a um período de mudança e de tentativa de mudança muito significativo. Não é objectivo do texto analisar a justeza, a oportunidade ou a forma como essas mudanças estão a ser realizadas, mas sim como são discutidas publicamente. Se escolhermos, como exemplos representativos, a justiça, a saúde e o ensino, assistimos a muita contestação dos visados pelas mudanças e, também, a muita contracontestação da restante "opinião pública".Vemos ainda argumentos de que a contracontestação não é credível porque, como diz o ditado, "quem está fora racha lenha".

Eu, em parte, acho que têm razão. Somos um país muito bem dotado de gente especialista em resolver os problemas dos outros e que opina sobre tudo e todos. Um caso sintomático e ridículo é a chuva de palpites para o futuro do(s) aeroporto(s) de Lisboa. Não nos faltam especialistas em planeamento de infra-estruturas aeroportuárias!

Entendo que um cidadão comum não estará habilitado a dar sugestões concretas sem conhecimento profundo de causa. Agora, o que pode e deve é exigir resultados. Exagerando, se eu for operado para extrair um quisto e, por erro, me amputarem um dedo, eu não vou querer saber porque aconteceu, nem tenho de ser eu a sugerir ao hospital o que deve/devia ter feito para que isso não acontecesse. Há gente paga para isso e a quem eu pago directa ou indirectamente.

Um cidadão comum também pode e deve criticar atitudes. E uma atitude profundamente errada nestes movimentos de contestação é a postura corporativa e de defesa sindicalista em bloco. Se os médicos, professores, magistrados e etc. não querem, e com razão, ouvir dizer que o problema reside principalmente na sua classe, então que deixem de defender a classe como se fossem todos os iguais. Separem o trigo do joio. Enquanto não o fizerem, não terão credibilidade na opinião pública.

Outro interveniente fundamental neste jogo é a comunicação social. A ausência de isenção e rigor em geral, e em particular neste campo sensível e determinante onde está em jogo a revisão da nossa infra-estrutura social, é irresponsabilidade grave.