06 junho 2016

Respeito por Abril

Na lapela do seu melhor fato, o Presidente colocou o mais gordo e vermelho cravo do mercado, preparando-se para as comemorações do 25 de Abril. Isto passa-se numa vila ou numa cidade, no interior ou no litoral, à esquerda ou à direita. Estarão lá todos os representantes da sociedade, todas as suas forças vivas, e até mesmo o líder tradicional da oposição, a cumprimentar com uma ligeira cumplicidade. Este mundo dá muitas voltas e devemos ser uns para os outros. 

Boa notícia é já não aparecer o Brás, o antigo diretor da biblioteca municipal. Não é que o atrevido convidou para uma conferência, sem avisar ninguém, um individuo complicado, com umas ideias que muito embaraçaram o Presidente na sessão pública? Democracia também é respeito e, ele, legitmamente eleito, não tolera nenhuma falta de respeito. O Brás já foi substituído pelo Antonino, um bom rapaz, certinho, que até o ajudou a dar um toque literário ao discurso do dia. Sugeriu duas citações: a das “portas que Abril abriu” e a da “madrugada do dia inicial”. O Presidente optou pelas “portas”. Fazia-lhe alguma impressão a ideia de se passar algo importante de madrugada, enquanto dorme. 

Fechada a porta do carro da Presidência, uma nuvem escureceu-lhe o horizonte. Era naquela viatura oficial que a mulher costumava ir à capital, para as suas necessidades. Um funcionário da câmara, o Quincas, tinha tido o descaramento de a fotografar lá. Esse já tinha carta de marcha e o tio dele, que fazia umas obrazitas para a autarquia, bem podia ir procurar trabalho para outras freguesias. Também lhe faria bem esperar um pouquinho mais pelos pagamentos devidos. É fundamental ensinar o respeito. 

Quando chegou à sua vez, o Presidente colocou a voz para o discurso, tão atento à forma, que se lhe baralhou um pouco o conteúdo: “As portas que Abril não abriu…” Ninguém ousou assinalar-lhe o erro, isso seria falta de respeito. Foram bonitas as comemorações. Como é costume falou-se muito de democracia, liberdades, cidadania, participações, de todas essas coisas importantíssimas. 

Esta história é naturalmente ficcionada. Não conheço ninguém chamado Antonino.

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