27 dezembro 2022

Entre Deus e os Homens (III)

Continua de ... 

Na conquistada Albi, uma das principais cidades de influência cátara, que até deu nome à cruzada, será construído um palácio episcopal, bem fortificado, não fosse o diabo tecê-las, e uma catedral majestosa e imponente, também bastante bem defensável. Hoje visitámos no palácio uma coleção Toulouse-Lautrec, com muito pouco cheiro dos processos inquisitoriais que por aquelas terras decorreram. O interior da catedral é impressionante, para não deslizar deslumbrante… e algo subjugador. Julgo não existirem muitas com a mesma densidade de expressões artísticas como esta. Não há praticamente um centímetro quadrado cru. Na capela-mor, uma das imagens, abaixo reproduzida, mostra e ensina que entre Adão e Deus, estão os doutores da igreja. Do outro lado, a mesma mensagem para Eva, sendo que continuam os doutores, não há doutoras.

Um dos aspetos comuns nestas heresias, e o mais perturbador para as instituições religiosas estabelecidas, é precisamente a rejeição de um clero, frequentemente rico e corrompido, na relação do ser humano com o divino. Um clero que, no seu projeto de poder, não vai hesitar em chamar as espadas e atear as fogueiras, com muito poucos escrúpulos e respeito pelos seus próprios valores.

Pelos lados da Galécia romana, noroeste ibérico, tinha antes nascido e passado um movimento herético no século IV, o Priscilianismo, onde se podem encontrar alguns pontos comuns com os cátaros, ou “Bons homens”, como eles próprios se designavam. O saudoso João Aguiar, dedicou-lhe um dos seus brilhantes romances históricos: O Trono e o Altíssimo. Recomendo.

Cerca de duzentos kms a sul de Albi podemos sentir as ruínas de Montsegur, o último bastião onde em 1244 os “últimos” 224 hereges foram queimados vivos, depois da rendição, por recusarem a conversão. Sem terra nem refúgio seguro, os “perfeitos” e “perfeitas” ainda cruzaram aquelas terras durante algumas décadas, até irem paulatinamente caindo nas malhas inquisitoriais. Aquele que é considerado o último perfeito do Languedoc, Guillaume Bélibaste, foi queimado em 1321.

Não há dúvidas sobre quem ganhou e hoje podemos ver e admirar inúmeras e impressionantes realizações que a igreja tutelada e hierarquizada nos deixou.  Entre a espetacularidade das pedras que a liderança centralizada e autoritária deixou e a espiritualidade que aquela e outras rebeldias do livre-arbítrio alimentaram… assim é a nossa herança.



 

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