22 dezembro 2022

Entre Deus e os Homens (II)


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Terminados os cercos, batalhas e rendições, a heresia não desapareceu. O fio da espada, as grandes fogueiras coletivas das cruzadas, a violência da guerra e as conquistas com sucessivas mudanças na senhoria das povoações não eliminaram os fundamentos daquela fé, nem a erradicaram.

Nestes fenómenos heréticos, tanto ou talvez até mais curioso do que o detalhe das bases teológicas e princípios teóricos está a forma como a sociedade os adota e com eles se identifica, ou não. Domingos de Gusmão cria em Prouilhe, no coração do território herético, o embrião da futura ordem dos dominicanos, que tenta entender e aproximar-se da sensibilidade espiritual da região, afastando-se e renegando o fausto do clero da época. Juntamente com os franciscanos, serão os frades mendicantes.

Da mesma forma como os senhores locais não tinham sido “de confiança” para combater convictamente o catarismo, obrigando à chamada de reforços do Norte, também o clero de proximidade não era suficiente afastado da heresia para levar até o fim a sua irradicação, após as vitórias militares. Foi necessário criar uma instituição com origem e hierarquia externa, dependendo diretamente do papa, para levar a bom porto a limpeza. Chamou-se-lhe Inquisição e a sua liderança será assumida pelos dominicanos. Apesar de figuras de relevo meritório, como Frei Bartolomeu de Las Casas, extremamente crítico das brutalidades coloniais espanholas na América Latina, esta ordem vai-nos presentear com um tal Tomás de Torquemada, cujo nome é um símbolo, e o massacre de Lisboa de 1503 é obra da incitação destes monges, de tolerância algo limitada.

A Inquisição vai instaurar processos, mais ou menos arbitrários e expeditos, com confissões de várias formas “motivadas”, conforme o estilo e a autonomia do inquisidor em funções. Não haverá mortes em massa, mas terá uma ação destruidora mais eficaz e perene, através da instauração do medo e da desconfiança, da promoção da delação, da asfixia da reflexão e o silenciar de diálogos e argumentações. A Inquisição matou fisicamente, direta ou indiretamente, chegou a desenterrar heréticos mortos para os fazer passar pelo fogo, e também destruiu a liberdade de pensar e de acreditar.

A riqueza humana está intimamente ligada à capacidade de o ser humano pensar, refletir, assumir e discutir as suas interrogações e convicções. Quando essas faculdades são castradas e é destruída a tolerância entre diferentes credos e conceções, o mundo empobrece e entristece. Podemos especular sobre se, caso não houvesse esta heresia e com esta intensidade, teria ou não nascido esta Inquisição, se teria chegado mais tarde, idêntica ou com outra forma. Indiscutivelmente os cruzados de Inocêncio III e sucessores foram um brutal travão ao desabrochar da luz na Europa, sendo que a península Ibérica vai herdar e suportar esta mordaça longamente.  

A emancipação espiritual do Languedoc foi demasiado grande para ser travada pelos meios existentes, nomeadamente simples bulas papais, excomunhões, interdições e outras ameaças, mas também demasiado pequena para resistir ao sufoco que o resto da atual França e a Santa Sé lhe aplicaram.

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Imagem acima: lápide em Montsegur

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