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Terminados os cercos, batalhas e rendições, a heresia não desapareceu. O fio da espada, as grandes fogueiras coletivas das cruzadas, a violência da guerra e as conquistas com sucessivas mudanças na senhoria das povoações não eliminaram os fundamentos daquela fé, nem a erradicaram.
Nestes fenómenos heréticos, tanto ou talvez até mais curioso
do que o detalhe das bases teológicas e princípios teóricos está a forma como a
sociedade os adota e com eles se identifica, ou não. Domingos de Gusmão cria em
Prouilhe, no coração do território herético, o embrião da futura ordem dos
dominicanos, que tenta entender e aproximar-se da sensibilidade espiritual da
região, afastando-se e renegando o fausto do clero da época. Juntamente com os
franciscanos, serão os frades mendicantes.
Da mesma forma como os senhores locais não tinham sido “de
confiança” para combater convictamente o catarismo, obrigando à chamada de
reforços do Norte, também o clero de proximidade não era suficiente afastado da
heresia para levar até o fim a sua irradicação, após as vitórias militares. Foi
necessário criar uma instituição com origem e hierarquia externa, dependendo
diretamente do papa, para levar a bom porto a limpeza. Chamou-se-lhe Inquisição
e a sua liderança será assumida pelos dominicanos. Apesar de figuras de relevo
meritório, como Frei Bartolomeu de Las Casas, extremamente crítico das
brutalidades coloniais espanholas na América Latina, esta ordem vai-nos
presentear com um tal Tomás de Torquemada, cujo nome é um símbolo, e o massacre
de Lisboa de 1503 é obra da incitação destes monges, de tolerância algo limitada.
A Inquisição vai instaurar processos, mais ou menos
arbitrários e expeditos, com confissões de várias formas “motivadas”, conforme
o estilo e a autonomia do inquisidor em funções. Não haverá mortes em massa,
mas terá uma ação destruidora mais eficaz e perene, através da instauração do
medo e da desconfiança, da promoção da delação, da asfixia da reflexão e o silenciar
de diálogos e argumentações. A Inquisição matou fisicamente, direta ou
indiretamente, chegou a desenterrar heréticos mortos para os fazer passar pelo
fogo, e também destruiu a liberdade de pensar e de acreditar.
A riqueza humana está intimamente ligada à capacidade de o ser humano pensar, refletir, assumir e discutir as suas interrogações e convicções. Quando essas faculdades são castradas e é destruída a tolerância entre diferentes credos e conceções, o mundo empobrece e entristece. Podemos especular sobre se, caso não houvesse esta heresia e com esta intensidade, teria ou não nascido esta Inquisição, se teria chegado mais tarde, idêntica ou com outra forma. Indiscutivelmente os cruzados de Inocêncio III e sucessores foram um brutal travão ao desabrochar da luz na Europa, sendo que a península Ibérica vai herdar e suportar esta mordaça longamente.
A emancipação espiritual do Languedoc foi demasiado grande para ser travada pelos meios existentes, nomeadamente simples bulas papais, excomunhões, interdições e outras ameaças, mas também demasiado pequena para resistir ao sufoco que o resto da atual França e a Santa Sé lhe aplicaram.
Continua para ...
Imagem acima: lápide em Montsegur
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