Já falei aí para trás de Brel. Em 1966 no auge da carreira decidiu abandonar os palcos. No seu último concerto no Olympia, como sempre, recusou-se aos “encores” mas regressou 7 vezes ao palco para agradecer. Honrou os contractos pendentes e fez o último espectáculo em 1967. Depois de algumas experiências cinematográficas nem sempre bem sucedidas instalou-se nas ilhas Marquesas, no Pacífico. Doente, cancro de pulmão, quando ninguém esperava, ele regressa, doente, para gravar em 1977 um novo álbum de originais, a todos os títulos histórico e admirável, “Les Marquises”. Morreria no ano seguinte. Já falei disso antes – hoje apeteceu-me apenas fazer uma tradução livre de um texto magnífico dessa obra.
Orly
São mais de dois mil e eu apenas vejo dois
A chuva colou-os, parece, um ao outro
São mais de dois mil e eu apenas vejo dois
E sei que falam, ele dir-lhe-á “amo-te”, ela dir-lhe-á “amo-te”
Acho que estão a tentar nada se prometerem
Estes dois são demasiado magros para serem desonestos
São mais de dois mil e eu apenas vejo dois
E bruscamente ele chora, chora em grandes soluços
Rodeados que estão de gordurosos suados
Que lhes estendem o nariz
Mas estes dois dilacerados, soberbos de desgosto
Deixam simplesmente aos cães a façanha de os julgar
A vida não dá prendas e meu Deus com é triste Orly
Num domingo, com ou sem Bécaud
E agora eles choram, os dois, há pouco era ele apenas
Tão encastrados que estão, não ouvirão mais nada do que os soluços do outro
E depois
E depois infinitamente, como dois corpos que rezam
Infinitamente lentamente os dois corpos separam-se
E separando-se, os dois corpos dilaceram-se
E juro-vos que gritam
E depois retomam-se, voltam a ser um só
Voltam a ser o fogo e dilaceram-se de novo
E depois recuando, como o mar que se retira
Eles consomem o adeus
Ele balbucia umas palavras, agita uma mão vã
E bruscamente ele foge, foge sem se voltar
E depois ele desaparece, engolido pela escada rolante
A vida não dá prendas e meu Deus com é triste Orly
Num domingo, com ou sem Bécaud
E depois ele desaparece, engolido pela escada rolante
E ela, ela fica lá, coração em cruz, boca aberta
Sem um grito, sem uma palavra
Ela conhece a sua morte, acabou de a atravessar
Ela volta-se de novo, os seus baraços tocam o chão
De repente ela tem mil anos
A porta fecha-se de novo, ei-la sem luz
Ela volta-se sobre si e ela sabe que voltar-se-á sempre,
Ele já perdeu homens, mas aqui ela perde o amor
O amor disse-lhe, eis o inútil
Ela vivera de projectos que esperarão para sempre
Ei-la frágil, antes de estar à venda
Eu estou lá, segui-a
Nada ouso por ela, que a multidão debica como um fruto qualquer
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