27 fevereiro 2015

O que faltou ao Charlie Hebdo foi o desejo de diálogo

Numa entrevista realizada ao cardeal Gianfranco Ravasi, responsável da Santa Sé para a Cultura, li a frase que serve de título a este texto. Não sei se um caricaturista tem o dever de dialogar com o caricaturado, mas é de recordar que, antes do atentado, o Charlie Hebdo era um pequeno jornal, de tiragem modesta e, para muitos, de gosto discutível. Não tinha uma influência relevante na sociedade. Apontar a suposta falha de o jornal não ter “dialogado” como causa para as consequências conhecidas, é uma carga demasiado grande para coisa tão pequena. Mal andaríamos se sentíssemos necessidade de desenvolver considerações destas por cada piada de mau gosto publicada sobre o Papa.

A mensagem da entrevista é curiosa e, nalguns pontos, preocupante. Sinceramente, esperava mais de alguém naquele nível. Cito: “Para haver diálogo, é preciso haver dois rostos. Nós temos um Islão que avança, que tem um rosto, pode ser até um rosto violento, mas é bem definido. Nós, os ocidentais, perdemos os nossos traços distintivos”. O senhor Cardeal engana-se. Primeiro, fala em um (1) rosto do Islão e isso é abusivo. Entre outras coisas, ignora as tensões geoestratégicas que se apropriam e manipulam a fé de alguns, sendo elas, em larga medida, as responsáveis pela violência que hoje corre o mundo, carregando a bandeira do Islão. Depois, ao evocar a nossa perda de traços, parece sentir-se a nostalgia do tempo em que esses traços eram desenhados em Roma.

É possível ter uma sociedade com valores, com identidade bem definida e sem credo religioso? Penso que sim. É a salada de frutas multicultural que alguns defendem? Penso que não. Está tudo bem e no bom caminho? Não. É um caminho que custa muito a construir. Não nasce espontaneamente, nem por criação divina, nem por decreto laico. Passa certamente por confrontação, mas fundamentada e saudável. Os registos básicos de “o Islão é assim, os muçulmanos são assado”, “deve ser proibido, ou não”, “se dizes aquilo, levas um murro”, ficam num nível primário e nada acrescentam. É preciso mais, mais…

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