24 maio 2006

A Idade do Folhetim

“[…] Ao que parece, os “folhetins” eram produzidos aos milhões como elemento especialmente apreciado da matéria da imprensa diária, constituíam o alimento principal dos leitores desejosos de se instruírem, informarem, ou melhor, “conversarem” sobre mil objectos do saber […]

Tinham títulos como “Friedrich Nietzche e a moda feminina de 1870” ou “Os pratos favoritos do compositor Rossini” ou “O papel do cão de regaço na vida das grandes cortesãs” e assim por diante. […]

Quando lemos os títulos de semelhantes verborreias […] surpreende-nos menos a circunstância de haver pessoas que as devoram como leitura diária do que o facto de autores de prestígio, com classe e boa formação, ajudarem a “alimentar” este gigantesco consumo de curiosidades sem valor […]

Havia alturas em que eram particularmente apreciadas as perguntas feitas a personalidades conhecidas sobre assuntos da ordem do dia […] em que se punha por exemplo químicos ou virtuosos do piano a falar sobre política, enquanto autores em voga, ginastas, aviadores e até mesmo poetas eram postos a dar a sua opinião sobre as vantagens ou inconvenientes do celibato, sobre as causas presumidas das crises financeiras, etc. O que importava, apenas, era associar um nome conhecido a um tema realmente actual […]

Mudasse de dono um quadro famoso, fosse leiloado um manuscrito valioso, ardesse um castelo antigo, envolvesse-se num escândalo o possuidor de um nome aristocrático antigo, e os leitores encontrariam em milhares de folhetins não só os factos como também receberiam, no próprio dia ou no seguinte, uma quantidade de material anedótico, histórico, psicológico, erótico e outro sobre o assunto […]

Essas pessoas […] estavam quase indefesas perante a morte, o medo, a dor, a fome, já não encontravam consolo nas igrejas nem conselho no espírito. Eles, que liam tantos artigos e ouviam tantas conferências, não se concediam nem o tempo nem o esforço de se fortalecerem contra o medo, de combaterem neles mesmo o medo da morte, viviam a tremer e não acreditavam em amanhã nenhum.”

Parece familiar e actual?
É um extracto do romance “O Jogo das contas de vidro” de Hermann Hesse publicado em 1943. Apesar de ser ficção, esta "Idade do Folhetim" é colocada nos inícios do século XX.
Tão modernos estes antigos; tão antigos estes modernos.

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