14 janeiro 2018

O que sobra


Sobraram-me formulários de entrada e saída na Argélia, da minha reserva estratégica. Não conto as vezes que os preenchi nos últimos doze anos. Aliás, até pensei em fazer um carimbo, de tantas as vezes ter que escrever o mesmo. Até nas saídas e chegadas dos voos internos. Se tivesse feito o tal carimbo, provavelmente isso seria irritante para os funcionários que, não raras vezes, se entretinham cuidadosamente a colocar os traços dos “ts” horizontais, os pontos no sítio dos “is” e a prolongar convenientemente as pernas dos “ns” e “ms”. Tudo isto entre, atrás, uma fila de três quartos de hora e, à frente, um pórtico de segurança que apitava inconsequentemente para toda a gente que o atravessava. Apesar do rigor na caligrafia, outros detalhes eram pouco relevantes, como prova o facto de alguém ter andado largos meses a indicar para local de estadia no país um hotel clássico...na altura fechado para obras (para quem conhece, o Aurassi).

Foi há uns doze anos que na sequência de uma descontinuidade me questionaram: Angola ou Argélia? Em poucos segundos, respondi Argélia. Ao fim destes anos, não é fácil uma síntese e até nem costumo ter muitas dificuldades com isso. São tantas os sim, mas… claro, mas… País básico e mal definido. Gente terrível e humana. Alguém, experiente no terreno, dizia ser um país exótico, que tornava as pessoas exóticas, proporcionalmente ao tempo de permanência. Sendo-se mau juiz em causa própria, não sei avaliar até que ponto me “exotizei” e em que medida de forma irreversível.

Todos os dias adormecemos diferentes de como acordamos, conforme o que vimos, vivemos, gozamos e sofremos. Talvez uma parte das brancas que me nasceram, tenham génese no desespero que é por ali tentar fazer coisas que por cá nos parecem triviais. Mas também, certamente, a minha dimensão humana, o que quer que isso seja, como quer que isso se meça, tenha ficado brutalmente maior depois de por ali passar. Talvez seja esse o balanço fundamental: pessoas, pessoas e pessoas, para o bem e para o mal, como quer que isso se avalie.

Quanto aos formulários que sobraram… entregam-se a quem provar ter necessidade.

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