Não é todos os dias que se pode assistir a uma coroação em direto, ainda por cima com tanta pompa e circunstância como foi esta última de Carlos III. Aliás, parece que por cá, mesmo antes de 1910, a tradição era mais uma aclamação popular, mais ou menos espontânea, e não cerimónia solene em palácio ou catedral
A abadia de Westminster não foi apenas um local para a
coroação. Carlos foi coroado na abadia, pelas autoridades religiosas. Ao ouvir a
parte principal da cerimónia, pareceu-me viver noutro tempo, quando o poder
real era legitimado por suposta nomeação e designação divina. Efetivamente, se
no reino ninguém pode estar acima do rei, não sendo de bom tom que ele se
apodere a ele próprio e quando o povo ainda pouco ordena, só mesmo alguém do
outro mundo pode ter ascendência para empossar um monarca.
Se numa perspetiva teórica faz sentido, na prática ficam
muitas dúvidas sobre até que ponto o tal divino deu o seu consentimento e
validou a escolha. Será na base do “Quem cala consente”? E também, em cada
rutura ou mudança de dinastia, Deus ficou sempre do lado do vencedor, que se
impôs com argumentos nem sempre muito espirituais?
Para lá destas falhas e incoerências, esta espécie de
bicefalia tem algo de positivo, na medida em que não concentra todo o poder
numa só estrutura. Recuando na História, por facilidade descritiva, ao tempo em
que o notário da escolha divina não era cardeal ou arcebispo, mas o Papa, houve,
é certo, Papas sequestrados por Reis, Reis condicionados por Papas, cisões
temporárias e definitivas, mas globalmente havia poder e contrapoder. O Rei não
tinha legitimidade completa sem a bênção do Papa, nem este tinha poder para
impor o Rei e ditar ao Rei o que entendesse. Apesar dos desvios e abusos,
talvez esteja aqui, nesta não concentração do poder numa única entidade, uma
das razões do desenvolvimento bem-sucedido da Europa.
Curiosamente a nomeação divina, que dá o tema deste texto,
ocorre num país (reino) em que desde o século XVI e Henrique VIII, passou a haver
concentração de poderes na mesma figura, mas também onde existem instituições
democráticas e estruturas representativas das mais sólidas e estáveis desde há
muito tempo. Exceções? Outras razões…?
Nota: Pode-se considerar a aclamação popular portuguesa, um
embrião, mesmo imperfeito, de democracia? Com todos os defeitos, é preferível
ser (parte do) “povo” a empossar o soberano do que uma mitra.
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