“Cachucho não é coisa que me traga a mim mais novidade do que lagostim”. Assim começava o “FMI” de José Mário Branco escrito em 1979 após a primeira passagem da instituição por cá em 1977. Ouvi-o ao vivo no início dos anos 80 num Coliseu, “despejado” pelo autor de uma forma particularmente intensa e dramática. Para uma certa esquerda ainda na ressaca do Novembro de 1975, o FMI se não era o diabo capitalista em pessoa, estava pouco longe. Recordo também a capa, foto acima, do livro de Rui Mateus, “Contos Proibidos”, em que, muito colegialmente sentados numa escada, ele e Mário Soares recebem umas dicas de Helmudt Schmidt, o único que tem papeis nas mãos, na preparação das negociações com o FMI que se aproximavam. Recordo ainda mais recentemente Manuela Ferreira Leite ter dito que para endireitar o país era necessário suspender a democracia por 6 meses.
E recordo tudo isto ao consultar as 34 páginas do documento elaborado pela troika FMI/BCE/CE. Aproveito para sugerir aos interessados que o consultam na íntegra e no original, em vez de andarem atrás dos títulos que os média vão libertando de uma forma quase avulsa, seguidos dos variados palpites opinatórios amadores ou profissionais da praxe.
O conteúdo do documento pode ser bom para Portugal, mas para quem nos governou é arrasador. Um mínimo de pudor deveria abster a classe política de se congratular com o que quer que seja. Não está em causa o ser “melhor do que as piores previsões”. Está em causa é como é possível que haja tanto por fazer e que não tenha sido feito até hoje? Depois de tantos anos de apregoada boa governação e contenção, vem uma equipa a Lisboa e em apenas duas semanas e meia detecta e decreta tudo isto?
Não vislumbro a marca demoníaca imperialista do FMI que nos quer pôr de rastos como a esquerda tanto gosta de anunciar. Muito mais submissão foi e é pedida pelos nossos parceiros europeus ricos, algo fartos de nos pagarem as festas. Não terão a razão toda, mas alguma.
Este documento se não é um programa de governo completo, é-o pelo menos para uma série de capítulos sensíveis. Como é que nenhum governo nosso e democrático conseguiu avançar com uma boa parte destas medidas antes, apesar de toda a necessidade óbvia e visível? Incompetência, irresponsabilidade, rendição a interesses que não o público ou… porque se o tivessem feito teriam perdido as eleições? De todas as hipóteses, a última é a menos grave, mas façam-me um favor: tenham pudor e não sorriam nem mostrem orgulho com o que temos à nossa frente.
No fundo, Manuela Ferreira Leite não tinha razão porque errou no prazo. Não vamos ter seis meses mas sim três anos sem que a “democracia” bloqueie as reformas necessárias. Foi preciso termos falido para o conseguirmos, mas esperemos que no fim saiamos melhor. Se aprenderemos ou não, isso já é outra questão.
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