19 maio 2008

Por quem os sinos dobram


Não era dali e, por isso, dali partiu. Pela forma como vestia ou como teria actuado. Por acções ou intenções, provadas ou presumidas, estava a ser delapidada. Não parecia um processo tradicional, organizado, em que o condenado é preparado e parcialmente enterrado, os homens até à cintura e as mulheres até ao peito. Parecia mais uma iniciativa espontânea. Uma mole masculina acotovelava-se e saltava em torno e por cima dela, para atirar pedras, dar pontapés, fotografar e filmar. Há tanto interesse em agredir como em registar. É, aliás, a difusão de um desses registos que me alimenta esta descrição e de onde extraí as imagens acima inseridas.

Ela em posição fetal tenta proteger a cara ensanguentada. Resiste às tentativas de ser exposta, para pedra, pontapé ou fotografia. Tenta debilmente erguer-se, mas cai rapidamente. Finalmente, uma grande pedra imobiliza-a. Alguém a eleva bem alto para a atirar de novo, rebentando o crânio. Uma poça de sangue espalha-se lentamente e a turba acalma. Terminam os pontapés e as pedras, reduz o ritmo das fotografias e o filme acaba.

Depois de escrever o texto acima tentei situar o assunto e foi fácil. Passou-se no sul do Iraque, o crime foi namorar com um rapaz de etnia diferente e passar uma noite fora de casa. Tinha 17 anos. O filme que eu recebi tinha minuto e meio, o suplício demorou cerca 30 minutos. Nome: Du’a Khalil Aswad.

E desculpem-me as outras dezenas de milhares de mortos, mas há coisas para as quais, para mim, os sinos dobram com mais intensidade do que quando é um terramoto na China ou um ciclone na Birmânia.




“Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti."

De Jonh Donne e utilizado por E. Hemingway para título do seu famoso romance.

1 comentário:

Maria Manuel disse...

Fizeste o caminho da procura que levou da amostragem de um caso à denúncia do caso de Du’a Khalil Aswad. E isso faz toda a diferença.
É preciso que a cada um que seja conhecido mostremos o horror, gritemos a denúncia da crueldade, o tremendo erro, a enorme injustiça, a deturpação de “valores” que nem pelo facto de serem tradicionais, culturais ou religiosos se podem aceitar num mundo de humanidade…!
Um era curdo outro shiita? Pena, então, que o coração de ambos não tenha batido a rebate num alerta sobre essa diferença, mas apenas tenha pulsado sangue jovem, talvez numa emoção de amor…