Já tinha aqui evocado este Senhor Miguel Unamuno e como o
seu nome próprio, comum e associado ao do Cervantes, inspirou o pseudónimo
literário do nosso Torga.
Este livro é uma leitura que Unamuno faz ao famoso romance e
à personagem imortal e universal de Cervantes, escrevendo como se D. Quixote
tivesse sido uma figura real e o outro Miguel o seu biógrafo. Ele lê-nos o
livro, interpela o Cavaleiro da Triste Figura e, ao mesmo tempo, interpela-nos
a nós e ao seu mundo contemporâneo que, não sendo propriamente idêntico ao de
hoje, comporta questões de fundo que nunca perderão uma atualidade gritante. É
um livro para ler devagar, por vezes tive mesmo de reler certas passagens para
bens as digerir.
O texto que foi acrescentado como introdução, “O Sepulcro de
D. Quixote” é das coisas mais fantásticas e bem escritas que já li.
Unamuno escreve muito bem e, para lá disso, mostra-se um
fino conhecedor da natureza humana, especialmente naqueles aspetos onde não há séculos que a possam transformar. Um livro verdadeiramente magistral, que
jamais se esquece.
A universalidade e a amplitude da leitura de Unamuno são
especialmente curiosas pelas pontes que estabelece com várias figuras
religiosas, das quais a não menos relevante é o assinalar as semelhanças entre
as campanhas de D. Quixote e a vida de Santo Inácio de Loyola, fundador da
Companhia de Jesus. Entre outros paralelos, ambos tudo abandonarem em busca da
sua estrela, da sua visão de glória e do seu ideal. De passagem, sobre a
universalidade da temática quixotesca, aproveitem para visitar a fantástica
interpretação de “La Quete” (A busca) por Jacques Brel, exemplo aqui, e
mastiguem bem as palavras.
D. Quixote não é apenas de la Mancha, nem de Espanha, nem do
século XVII. É de todos os tempos, de todos os lugares, de todas as gentes que
acreditam e não desistem, que são loucas sim, mas pela grandeza das causas e
pelo valor da vida.
Deixo duas passagens:
Numa obra de enganos e embustes se condensou, o fruto do
nosso heroísmo; numa obra de enganos e embustes se eternizou a passageira
grandeza da nossa Espanha; numa obra de enganos e embustes se condensa e
compendia a nossa filosofia espanhola, a única verdadeira e autêntica; com uma
obra de enganos e embustes chegou a alma do nosso povo, encarnada em homem, até
aos mistérios do abismo da vida. E essa obra de enganos e embustes é a história
mais triste que jamais se escreveu; a mais triste, sim, mas também a mais
consoladora para quantos sabem saborear nas lágrimas do riso a redenção da
miserável sensatez a que a escravidão da vida presente nos condena.
Mas isso é absurdo, dizeis? E quem é capaz de dizer o que é
o absurdo? E ainda que o fosse! Só o que ensaia o absurdo é capaz de conquistar
o impossível. Não há outra forma de acertar uma vez no cravo que vibrar cem
marteladas na ferradura. E sobretudo, há apenas uma maneira de triunfar
verdadeiramente: é arrostar com o ridículo. […]. Sim, o nosso mal está todo na
cobardia moral, na falta de coragem para cada um afirmar a sua verdade, a sua
fé, e para defendê-la. A mentira envolve e estrangula as almas que habitam
nesta casa de borregos amodorrados, estúpidos por obstrução de sensatez.

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