26 novembro 2025

De Miguel para Miguel

Já tinha aqui evocado este Senhor Miguel Unamuno e como o seu nome próprio, comum e associado ao do Cervantes, inspirou o pseudónimo literário do nosso Torga.

Este livro é uma leitura que Unamuno faz ao famoso romance e à personagem imortal e universal de Cervantes, escrevendo como se D. Quixote tivesse sido uma figura real e o outro Miguel o seu biógrafo. Ele lê-nos o livro, interpela o Cavaleiro da Triste Figura e, ao mesmo tempo, interpela-nos a nós e ao seu mundo contemporâneo que, não sendo propriamente idêntico ao de hoje, comporta questões de fundo que nunca perderão uma atualidade gritante. É um livro para ler devagar, por vezes tive mesmo de reler certas passagens para bens as digerir.

O texto que foi acrescentado como introdução, “O Sepulcro de D. Quixote” é das coisas mais fantásticas e bem escritas que já li.

Unamuno escreve muito bem e, para lá disso, mostra-se um fino conhecedor da natureza humana, especialmente naqueles aspetos onde não há séculos que a possam transformar. Um livro verdadeiramente magistral, que jamais se esquece.

A universalidade e a amplitude da leitura de Unamuno são especialmente curiosas pelas pontes que estabelece com várias figuras religiosas, das quais a não menos relevante é o assinalar as semelhanças entre as campanhas de D. Quixote e a vida de Santo Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus. Entre outros paralelos, ambos tudo abandonarem em busca da sua estrela, da sua visão de glória e do seu ideal. De passagem, sobre a universalidade da temática quixotesca, aproveitem para visitar a fantástica interpretação de “La Quete” (A busca) por Jacques Brel, exemplo aqui, e mastiguem bem as palavras.

D. Quixote não é apenas de la Mancha, nem de Espanha, nem do século XVII. É de todos os tempos, de todos os lugares, de todas as gentes que acreditam e não desistem, que são loucas sim, mas pela grandeza das causas e pelo valor da vida.

Deixo duas passagens:

Numa obra de enganos e embustes se condensou, o fruto do nosso heroísmo; numa obra de enganos e embustes se eternizou a passageira grandeza da nossa Espanha; numa obra de enganos e embustes se condensa e compendia a nossa filosofia espanhola, a única verdadeira e autêntica; com uma obra de enganos e embustes chegou a alma do nosso povo, encarnada em homem, até aos mistérios do abismo da vida. E essa obra de enganos e embustes é a história mais triste que jamais se escreveu; a mais triste, sim, mas também a mais consoladora para quantos sabem saborear nas lágrimas do riso a redenção da miserável sensatez a que a escravidão da vida presente nos condena.

 

Mas isso é absurdo, dizeis? E quem é capaz de dizer o que é o absurdo? E ainda que o fosse! Só o que ensaia o absurdo é capaz de conquistar o impossível. Não há outra forma de acertar uma vez no cravo que vibrar cem marteladas na ferradura. E sobretudo, há apenas uma maneira de triunfar verdadeiramente: é arrostar com o ridículo. […]. Sim, o nosso mal está todo na cobardia moral, na falta de coragem para cada um afirmar a sua verdade, a sua fé, e para defendê-la. A mentira envolve e estrangula as almas que habitam nesta casa de borregos amodorrados, estúpidos por obstrução de sensatez.

 

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