31 agosto 2025

Ser comunista (VII)

 7)       Para finalizar

Divórcios entre princípios apresentados e práticas desenvolvidas não são uma raridade na cena política. No caso dos comunistas é um pouco diferente, na medida em que eles defendem princípios falidos e ao mesmo tempo apoiam degenerações da aplicação dos mesmos, numa espécie de círculo quadrado.

Ser-se hoje comunista é um exercício mais de “ser contra” o mundo ocidental liberal e democrático do que “ser a favor” de uma teoria e práticas coerentes.

Frequentemente o inimigo dos inimigos é declarado amigo ou aliado. Vemos isso no apoio e simpatia de certa esquerda para regimes brutais, em várias latitudes, irmanados de um objetivo comum, o de destruir o regime liberal ocidental.

Um grande problema pode chegar, no entanto, no dia seguinte e um bom exemplo é o do Irão. A esquerda aliou-se aos islamistas para destituir o Xá, pró-ocidental, tiveram sucesso, mas, uma vez os islamistas no poder, a vida não foi fácil nem longa para os comunistas. Poderia ser uma boa lição para algumas sintonias que vemos atualmente entre chamados progressistas e notórios obscurantistas.

Não tenho simpatia por xenofobismos, racismos ou autoritarismos arrogantes, mas acho curioso que aqueles movimentos que já provaram e assumiram práticas antidemocráticas se queiram erguer em baluartes na defesa da democracia contra os perigos da extrema-direita. Não, não é por aí que fico tranquilo.

O que é exatamente ser comunista, hoje? Não sei!

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30 agosto 2025

Ser comunista (VI)

 6)       O nosso PCP

Durante o Estado Novo, o PCP foi uma das forças mais bem organizadas e ativa na oposição ao regime, embora seja pena que muitos dos arquivos da Pide relativos a esse tempo tenham desaparecido. Há quem diga que embarcaram para Moscovo…

Nessa época, qualquer opositor era etiquetado com o anátema de “comunista”, uma certa generalização, da mesma forma como em 1975 um não comunista era marcado como “fascista”.

Houve coragem de quem ousou ser opositor e isso é de reconhecer. No entanto, não foi o PCP quem fez a revolução de Abril e a sua ação posterior foi pouco democrática. Não é aqui local para concretizar todas as formas como os comunistas se tentaram apropriar do regime, mas o condicionarem os partidos políticos legitimados democraticamente, incluindo o cerco da Assembleia Constituinte, e o tentar prolongar o poder do MFA e do “Conselho da Revolução”, são bons e simples exemplos.

A chamada legitimidade revolucionária pode ser necessária e eficaz no dia da revolução, quando um vazio criado tem de ser preenchido por alguém e não há tempo nem condições para constituir e dar poder a novos órgãos com outra legitimidade, mas a dita, revolucionária, esvaziar-se-á em seguida, de dia para dia, e tentar mantê-la permanentemente chama-se apropriação.

Não faltam por esse mundo fora países onde a legitimidade revolucionária de quem combateu o colonizador continua a validar a sua presença no poder por décadas e gerações. Por norma não são casos de sucesso no que diz respeito à qualidade de vida dos seus cidadãos.

Felizmente Portugal teve a maturidade suficiente para deslegitimar esta “legitimidade revolucionária” com muito pouco drama e sangue e, apesar de todas as deficiências atuais do sistema e dos partidos, estamos muito melhor do que estaríamos se tivéssemos ficado exclusivamente nas mãos dos marxistas puros e duros.

Tudo isto para concluir que ser comunista em Portugal pode ser invocar os pergaminhos das lutas passadas contra a ditadura, mas a sua ação em 1975 preparava outra – “Olhe que sim, olhe que sim!”. Não, não é um partido defensor da liberdade.

Deixando o passado, hoje o PCP é um partido que não fez a prova de fogo de estar no poder democraticamente e não sabemos bem como se comportaria se disso tivesse oportunidade. Aplicaria a cartilha original de Marx, a prática de Estaline ou o sistema de Putin?

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Ser comunista (V)

 5)       Os órfãos e os padrastos

Os regimes socialistas nasceram em geral na sequência de revoluções, mas fatalmente acabaram confiscados por uma elite de iluminados autoritários, para quem o “povo” e os desfavorecidos para nada mais são chamados ou ouvidos. O partido é que tudo sabe e tudo decidirá para o seu (…) melhor.

O “sistema” Estaline não tinha por objetivo apenas reprimir opositores. Os milhões de presos, deportados e assassinados não eram todos perigosos conspiradores que ameaçavam os alicerces do regime. Numa grande parte eram apenas cidadãos “lambda” que por um sim ou um não, ou apenas por nada, foram apanhados nas rodas de uma engrenagem sinistra cujo poder se afirmava pela (in) discricionariedade do terror.

Já referi acima que as bases puras do marxismo falharam na prática. Agora, porque os seus crentes continuaram cegos e tolerantes face à barbaridade de Estaline e correspondentes? Julgo que Marx não aprovaria. Aliás, os revolucionários russos que não aprovaram tiveram problemas de esperança de vida. 

Muitíssimo mais curioso e inquietante é a posição dos comunistas relativamente à Rússia atual. Deixando de lado as práticas criminosas do regime, os seus fundamentos económicos e políticos não têm nada, mas mesmo nada que ver, com a cartilha de “A Capital”. Como então os comunistas, adotados e depois órfãos de Estaline se tornam enteados de Putin?

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29 agosto 2025

Ser comunista (IV)

4)   Ser do contra

Há sempre quem queira um mundo diferente daquele em que vive. É natural e até muito frequente em camadas sociais e intelectuais elevadas. Pode até ser salutar, no sentido de nos fazer questionarmo-nos.

Daí que os modelos “alternativos” ao vigente despertem tanto interesse e simpatia, muitas vezes pelo simples facto de serem diferentes e até antagónicos. Veja-se a moda do “maoismo” nos círculos universitários há umas décadas. Não era mais do que óbvio que, objetivamente, as políticas de “Grande Salto em Frente” e “Revolução cultural Chinesa” eram absurdos criminosos a merecer denuncia, repudio e condenação veementes?

Uma palavra também para a “inteligência” europeia que continuou durante muito tempo a ignorar e a relativizar goulags e repressões brutais na Europa de Leste em nome de uma solidariedade com… ou antagonismo face a ….? Racionalmente, não se explica.

Um pequeno exemplo, o intelectualmente brilhante Jean Paul Sartre e “supremo papa” do existencialismo, uma das mais importantes correntes filosóficas do século XX, visitou várias vezes a URSS nos anos 50 e 60, concluindo que “A liberdade de crítica é total na URSS”. Os críticos deportados nos Goulags devem lhe ter ficado reconhecidos, já sem referir os caídos frente à parede de execução, cuja não existência prática não parecia relevante para o existencialista teórico.

Podemos fazer uma campanha contra os malefícios do vinho, mas propondo, em alternativa, aguardente (ou vodka) ?! Enfim…

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Ser comunista (III)

 3)       Marxismo hoje

Quase dois séculos decorridos desde o estabelecimento das teorias de Karl Marx, os regimes políticos na Europa/Ocidente estabilizaram nos seus fundamentais e algumas experiências de marxismo foram realizadas por esse mundo fora, todas indiscutivelmente sem sucesso.

Deixando de lado as derivas criminosas como o estalinismo ou os khmers vermelhos, o certo é que a coletivização e estatização da economia não trouxeram prosperidade em nenhuma latitude onde foram testadas, pelos menos comparando com os países liberais e capitalistas. Funcionário dificilmente rima com inovador.

Alguns partidos socialistas europeus, que até incluíam o marxismo na sua certidão de nascimento, fatalmente colocaram-no na gaveta ao chegarem ao poder e ao serem confrontados com a realidade. Sim, falo da famosa frase de Mário Soares e também, por exemplo, da mais recente metamorfose do Syriza na Grécia.

Ninguém, no poder, defende largos programas de estatização da economia. As nacionalizações que vemos são boias de salvamento pontuais, lançadas a empresas “estratégicas” em dificuldade (por norma com sucesso muito questionável), mas não parte de uma política intervencionista geral.

Sem pôr em causa o modelo fundamental, os inquilinos do poder anunciam umas nuances publicitárias, a direita será mais amiga dos ricos e a esquerda dos pobres. A questão fundamental aqui é se o objetivo principal é acabar com os ricos ou acabar com os pobres.

As previsões de Marx de que quanto mais capitalismo, mais condições e probabilidades de uma revolução socialista também falharam redondamente. É a pobreza que cria instabilidade, não a riqueza. Apesar de algumas injustiças sociais que existem, as condições relativas da “classe operária” não têm comparação com as do século XIX e não faltam exemplos de operários que com capacidade e iniciativa se tornaram empresários, criando riqueza sem precisarem de lançar revoluções disruptivas.

O Estado tem um papel fundamental a desempenhar, certamente, mas de regulação e supervisão, não de propriedade e de gestão direta.

De um ponto de vista estritamente racional, continuar hoje a defender a viabilidade e a bondade do modelo marxista, não está ao mesmo nível de defender que a Terra é plana, mas pouco menos, tantas são as evidencias em sentido contrário.

Então, se não é por racionalidade, será por emotividade?

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28 agosto 2025

Ser comunista (II)

2)       O contexto histórico

É importante analisar os acontecimentos históricos dentro do contexto em que ocorreram. Neste caso, o marxismo nasce em meados do século XIX, um período de mudanças políticas e sociais enormes. Há a consolidação da revolução industrial que traz um enorme desenvolvimento e enriquecimento, não muito bem distribuído; há a transição do absolutismo para o liberalismo, com avanços e recuos. 

Não há revoluções todos os dias, mas a frequência é elevada. Por exemplo, em 1848 houve uma “primavera dos povos”, com revoluções e perturbações simultâneas em França, Áustria, atuais Itália e Alemanha, Irlanda, Suíça, Hungria, além de outras instabilidades na América Latina.

França que desde a sua revolução de 1789 foi uma espécie de laboratório de ensaio destas convulsões, tem o seguinte histórico de transições no século XIX.

1789 – Revolução inicial

1792 – Primeira República

(1793-1794) Terror de Robespierre e jacobinos

1799 – Consulado Napoleão Bonaparte

1804 – Primeiro Império (Napoleão Bonaparte)

1814 – Restauração monarquia Bourbon

1820 – Revolução e instituição da monarquia de Orleães

1848 – Revolução e instauração da Segunda República
               (Luís Napoleão eleito Presidente da República)

1851 – Luís Napoleão instaura Segundo Império

1870 – Queda de Luís Napoleão e instauração da Terceira República

Portanto: em 100 anos, como regime, temos 3 monarquias, 2 impérios e 3 repúblicas. Alguns destes eventos tiveram repercussões no resto da Europa, como especialmente o de 1848, acima referido. Curiosamente Portugal foi poupado a essa data porque, frescamente saído da guerra da Patuleia, era cedo para novos transtornos.

Voltando ao marxismo, pode-se entender que neste período em que “tudo acontecia” seria “normal” imaginar, especular e propor uma forma radicalmente diferente de organização política, económica e social, que nunca tinha sido tentada e que poderia ser a “solução” que faltava encontrar.

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Ser comunista (I)

 O que é ser comunista?

1)       Pelos princípios, pelas origens

Julgo ser consensual afirmar que ser comunista é, antes de tudo, ser marxista, abraçando e defendendo as ideias e o modelo de sociedade propostos por Karl Marx em meados do século XIX. Não é objetivo aqui desenvolver em detalhe o que é esse sistema marxista, apenas começar por recordar apenas algumas ideias base.

Será um modelo económico centrado no Estado, no coletivismo, inimigo da iniciativa privada e da acumulação de capital, tudo tendo como resultado a melhoria das condições de vida das classes mais desfavorecidas. Marx previa inclusive que o capitalismo se autodestruiria e seria nos países capitalistas que a revolução marxista iria naturalmente despontar e se consolidar.

E depois…? 

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24 agosto 2025

O outro urso no Alasca


Sergey Lavrov chegou ao Alasca, para a famosa cimeira, envergando uma camisola com as letras CCCP, iniciais correspondentes a URSS em russo. Encontro duas possíveis razões para tão bizarro “dress code”. Uma é que, com as sanções aplicadas ao país, seja difícil encontrar boas camisolas no mercado e o senhor precisou de ir ao caixote do sótão buscar esta, preservada da traça, que, pela lógica, terá um mínimo de 34 anos, tantos quantos tem a sepultura da URSS. A outra possível razão é que, da mesma forma que Zelensky aparece em uniforme militar, para recordar que está em guerra, Lavrov quer recordar que se discute o que já foi “deles” e onde ainda têm direitos.

Nesta lógica, Zelensky podia envergar a seguir uma camisola com o mapa da Ucrânia e a localização das ogivas militares CCCP, que entregaram à Rússia em troca de garantias de segurança. A palavra dos atuais senhores do Kremlin vale muito pouco quando apenas limitada pela sua “boa vontade”.

Entretanto ouço falar de sanções adicionais à Rússia. Após 3 anos e meio de guerra, ainda se conseguem desenhar novas sanções com alguma eficácia? As anteriores foram mais macias do que poderiam ter sido? Ao longo de todo este tempo, ainda se foram guardando reservas, apesar dos horrores? Apliquem todas as medidas, com toda a força, para a Rússia sentir efetivamente algo que a pare, mesmo que fiquemos sem camisolas novas no mercado ou outra comodidade qualquer. Subjugar tiranos insensíveis e brutais tem sempre um preço a pagar. Quanto mais rápido melhor e se for sem argumentos puramente militares, ainda melhor!

20 agosto 2025

Os incêndios não chegaram ao Algarve


Está certo que políticos e governantes têm direito a férias. Está certo que provavelmente estarem num ministério em Lisboa ou nas areias do Algarve, poucos efeitos diretos teria no efetivo combate aos incêndios. Está certo que a Ministra da Administração Interna pode ser ou ter sido muito competente noutras funções, mas, atualmente, quando fala, parece-me mais ouvir um “Tirem-me daqui!”, em vez de um “Eu estou aqui!”.

Evidentemente que as oposições aproveitam para tirar dividendos e fazer comparações com a presença dos anteriores governantes no passado em teatros semelhantes (e que não foram em agosto).

Enfim, para lá das questões objetivas e responsabilidades a apurar, aquelas imagens de “beautiful people” a gozar a praia, intercaladas com o desespero e impotência face aos fogos devastadores vai ficar gravada. Podia o PSD ter feito um “encontro”, mas não uma festa. E, por muitos entusiastas que o desporto automóvel em geral e a F1 tenham no país, não era momento para promover entusiasmos, nem esses nem outros. Insensibilidade e assustador alheamento do resto do país, o “real”.

Atualizado em 21/8 com a publicação no "Público"


17 agosto 2025

Atualidades de há 80 anos


Verão de 1944 e tempos seguintes. Depois de uma humilhante derrota e ocupação de quatro anos, França busca um rumo e uma nova normalidade. Os tempos imediatamente após os armistícios nem sempre são tranquilos. Há ajustes de contas e várias fações que se precipitam para o “vazio”, procurando tirar partido da transição para ganharem predominância e se imporem.

Este livro compila um conjunto de editoriais e de respostas públicas de Albert Camus. Clarividente, humano, objetivo, preciso e elegante, ele defende que deve haver justiça, mas resistindo a cair no ódio; que é preciso mudanças, mas não com uma nova guerra e que totalitarismos e campos de concentração são a condenar veemente, independentemente da cor e da bandeira dos mesmos. Convém recordar que na altura uma boa parte da “intelligentsia” ainda acredita na “necessidade” de lutar por todos os meios pelo “homem novo”.

Recortei algumas passagens que passo a seguir. Os que tiverem muito interesse, podem procurar o livro; os que tiverem pouco, que fiquem por aqui. Ninguém é obrigado a ler até ao fim, mas, são sempre atualidades.

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Não há vida sem diálogo. Mas o diálogo foi hoje, na maior parte do mundo, substituído pela polémica. O século XX é o século da polémica e do insulto. Eles ocupam, entre as nações e os indivíduos, e mesmo ao nível das disciplinas outrora desinteressadas, o lugar que tradicionalmente cabia ao diálogo refletido. Dia e noite, milhares de vozes, empenhadas, cada uma por seu lado, num tumultuoso monólogo,

Vivemos no terror, porque a persuasão já não é possível, porque homem se entregou totalmente à História e já não é capaz de se virar para a outra parte de si, tão verdadeira como a parte histórica, que pressente na beleza do mundo e no rosto dos outros; porque vivemos no mundo da abstração, no mundo dos gabinetes e das máquinas, das ideias absolutas e do messianismo sem cambiantes. Vivemos asfixiados no meio de pessoas que creem ter absoluta razão, seja nas máquinas, seja nas ideias que têm. E para todos os que não podem viver privados de diálogo e de amizade humana, um tal silêncio é o fim do mundo.

Sou pela pluralidade das posições.  Será que se pode fazer o partido dos que não têm a certeza de ter razão? Seria o meu. De qualquer modo, não insulto os que não estão comigo. É a minha única originalidade.

 E não se trata aqui de defender um sentimentalismo ridículo que englobasse todas as raças na mesma terna confusão. Os homens são todos diferentes, é verdade, e eu sei das profundas tradições que me separam de um africano ou de um muçulmano. Mas sei também o que nos une, sei que há, em cada um deles, algo que não posso desdenhar sem me destruir mim mesmo. É por isso que é preciso dizer claramente que tais sintomas, espetaculares o não, de racismo revelam o que há de mais abjeto e de mais insensato no coração do homem

Nos anos vindouros, através dos cinco continentes, irá prosseguir uma luta interminável entre a violência e a prédica. É evidente que a primeira tem mil vezes mais possibilidades de vencer do que a segunda. Mas eu sempre pensei que se o homem que tem esperança na condição humana é um louco, o que desespera dos factos é um covarde. E. doravante, a única honra está em sustentar teimosamente esta formidável aposta que irá decidir se as palavras são ou não são, afinal, mais fortes do que as balas.

Se tivesse tempo, diria também que esses homens deveriam tentar preservar na sua vida pessoal aquela parcela de alegria que não pertence à história. Querem fazer-nos crer que o mundo de hoje tem necessidade de homens totalmente identificados com a sua doutrina e almejando fins definitivos, numa submissão total às próprias convicções. Acho que, no estado em que se encontra o mundo, esse género de homens fará mais mal do que bem. Mas admitindo, o que não creio, que eles acabem por conseguir fazer triunfar o bem até ao final dos tempos, parece-me a mim necessário haver outro género de homens interessados em preservar alguns leves cambiantes, o estilo de vida, a possível felicidade, o amor e, enfim, o difícil equilíbrio, de que os filhos desses homens também irão afinal necessitar, mesmo que a sociedade perfeita seja já uma realidade

Sabemos que a nossa sociedade assenta na mentira. Mas a tragédia da nossa geração foi ter visto, sob as falsas cores da esperança, uma nova mentira sobrepor-se à antiga. Nada, pelo menos, nos obriga a chamar salvadores aos tiranos e a justificar, com a salvação do homem, o assassínio da criança. E assim, recusamo-nos a crer que a justiça porventura exija, mesmo provisoriamente, a supressão da liberdade. A dar-se-lhes ouvidos, sempre as tiranias são provisórias. Explicam-nos que há uma grande diferença entre a tirania reacionária e a tirania progressista. Haveria assim campos de concentração que vão no sentido da história e um sistema de trabalho forçado que pressupõe a esperança. Admitindo que tal fosse verdade, podíamos pelo menos interrogar-nos sobre a duração dessa esperança. Se a tirania, embora progressista, durar mais de uma geração, isso significará, para milhões de homens, uma vida de escravidão, e nada mais. Quando o provisório abarca a vida inteira dum homem, torna-se, para esse homem, definitivo.

 

Quando a morte se torna negócio de estatísticas e de administração é que de facto as coisas do mundo não vão lá muito bem. Mas se a morte se torna abstrata é porque a vida também o é. E a vida de cada um mais não será do que uma abstração, a partir do momento em que alguém se lembre de a submeter a uma ideologia. A desgraça é que nós estamos no tempo das ideologias e das ideologias totalitárias, isto é, suficientemente seguras de si, de sua razão imbecil ou da sua tacanha verdade, para só considerarem a salvação do mundo debaixo do seu próprio domínio. E querer dominar alguém ou alguma coisa é desejar a esterilidade, o silêncio ou a morte dessa mesma coisa ou pessoa.

Tenho horror à violência confortável. Tenho horror aqueles cujas palavras vão mais longe do que os actos. E aí que me afasto de alguns dos nossos grandes espíritos, cujos apelos ao crime deixarei de desprezar, quando forem eles a empunhar as armas da execução.

O longo diálogo dos homens acaba de se interromper. E não há dúvida de que um homem que não se pode persuadir é um homem que mete medo. E é assim que, a par das pessoas que não falavam por considerá-lo inútil, ia alastrando e alastra ainda uma imensa conspiração de silêncio, aceite pelos que tremem e que encontram bons motivos para a si próprios ocultarem esse temor, e criado pelos que nele têm interesse. «Não se deve falar da depuração dos artistas na Rússia, porque isso aproveita à reação.» «Não se deve falar no apoio dos Anglo-saxões a Franco, porque isso só aproveita ao comunismo.» Bem dizia eu que o medo é uma técnica.

15 agosto 2025

Barbie apagada na cidade-luz


O filme Barbie, independentemente da qualidade e do apreço que poderemos ter por eles em termos exclusivamente cinéfilos, tem um histórico de polémicas por supostos atentados à moralidade e promoção da homossexualidade, pelo menos na ótica de certas culturas, estando mesmo proibido nalguns países.

Na passada semana foi objeto de uma nova censura. Uma projeção ao ar livre, promovida por uma autarquia foi cancelada porque um grupo de fundamentalistas, que se opunham à exibição, ameaçaram abortar a projeção pela força.

A sessão foi então anulada por preocupações de segurança (medo...). Passou-se na Arábia Saudita, Qatar, Argélia …? Não, foi em França, Noisy-le Sec, a uma escassa dúzia de quilómetros do centro da cidade-luz e da catedral de Notre-Dame.

Se a condenação clara deste facto dispensa qualquer “nuance”, e o mesmo deveria ser objeto de séria preocupação, é extraordinário como o presidente da câmara, comunista, considera que a amplitude das críticas é injustificada e desproporcional, assim como a sua “apropriação” pela extrema-direita racista e islamofóbica (estará a fazer contas para as próximas eleições !?). Se condenar veementemente estas derivas inaceitáveis no nosso modelo social é ser extrema-direita…

Quanto a alianças entre comunistas e islamistas, basta olhar para o Irão e o que aconteceu aos progressistas depois da vitória da revolução “comum”.

Uma pequena provocação: os LGBT+ que arvoram bandeiras da Palestina, têm consciência da inconsistência da sua posição?

Um urso no Alasca


Meio mundo aguarda com expetativa o resultado da próxima cimeira no Alasca entre Trump e Putin, naturalmente. Aquela guerra precisa de acabar e considerando que já passaram mais de 24 horas depois da tomada de posse do presidente dos EUA…

Eu estou expectante, mas também cético. Supondo que até corre bem, as armas se calam e vamos a caminho de um acordo de paz, que garantias há de que Putin não inventa mais uma “ameaça” qualquer para relançar a ofensiva.

De recordar que este conflito foi iniciado sem que a Ucrânia tenha atirado uma simples pedra no território russo ou planear fazê-lo. A menos que a ocidentalização e liberalização de uma antiga colónia fosse uma pedra no sapato dos senhores do Kremlin.

Aparentemente o objetivo era “desnazificar” Kyiv e, se esse argumento legitimava a “operação especial” há três anos, porque não esse ou outro poderão ser de novo invocados? De recordar que em 1994 a Ucrânia entregou o arsenal nuclear soviético em seu poder, em troca de garantias de segurança e…

Quem começa uma guerra desta forma, não parece confiável para manter a paz sem uma forte coação militar e/ou económica. Todos aqueles que acreditam que as promessas de paz destes brutais senhores da guerra garantem algo, podem revisitar a história dos acordos de paz de Munique de 1938 e do que se seguiu.

Atualizado em 16/8 com a publicação no "Público"


13 agosto 2025

O que é uma nação

Nos tempos atribulados que vivemos quanto a estrangeiros, migrações e nacionalidades, falta muita reflexão objetiva, racional e, aparentemente, aquela coisa que toda a gente proclama ter, que é o bom-senso.

Migrações e evoluções sociais e culturais na sequência da chegada de gente diferente, sempre houve na história da humanidade, mas, mas… quando essas mudanças são demasiado rápidas (a velocidade é relativa, certo), os “mudados” passam a sentir que aquela “casa” já não é a sua e temos um problema “legitimo”. Pessoalmente, não tenho nenhuma questão com a tez da pele das pessoas, mas tenho sim com os códigos sociais, quando eles são radicalmente diferentes das nossas referências. Já vivi em outras paragens e não gostaria que alguns comportamentos que lá são normais passem a ser norma aqui. 

A definição dos limites de uma nação é complexa. Não é apenas geográfica, embora muitas vezes as cadeias montanhosas se transformem em fronteiras naturais e uma boa parte da nossa fronteira com Espanha ser fluvial. Não é apenas pela língua, já que existem nações multilinguísticas e outras vizinhas que partilham a língua, mas que se diferenciam. Não é também religiosa, apesar de em muitos casos as nações terem sido construídas precisamente sobre a homogeneidade religiosa.

Não há uma definição simples e abrangente do que é integrar uma nação. Penso que passa muito por uma conjugação no plural de um “somos” e um “fomos”, oportunamente desvalorizando/olvidando o que nos separa/separou e recordando/promovendo o que nos pode orgulhar e unir.

Por isso, para alguém poder ser português, não basta preencher um formulário, nem tão pouco genéticas e credos deverão ser condições de exclusão. O que deve ser obrigatório sim, são as referências culturais. É partilhar o “somos” e o “fomos”. Desculpem lá a pequena provocação, mas, como exemplo, quem desconhece Camões não pode ser português.


Atualizado a 14/8 com o recorte da publicação no "Público", com a última frase omitida... falta de espaço...(ideológico?)



11 agosto 2025

Firmwares canídeos


Alguns cães, chamados “de guarda”, têm uma programação mental que os faz desatar a ladrar e a avisar cada vez que algo “suspeito” se aproxima a menos de algumas dezenas de metros do seu “território”.

Caso estejam num monte alentejano, onde passará alguém perto uma vez por dia e o ladrar só chega ao “intruso” e aos donos, tudo bem… O problema é quando existem dessas espécies em ambiente urbano, num jardim de moradia ou mesmo no terraço de um apartamento que desatam a “avisar” cada vez que passa outro cão, um gato atravessa a rua ou vêm uma pessoa que achem indevida.

Isto acontecendo várias vezes por hora e, ainda por cima, despertando a solidariedade sonora dos restantes membros da espécie do bairro, é uma praga. Talvez os donos estejam habituados e seja para eles tão natural como ouvir o ronronar do frigorifico.

Tenho a sorte de ter um destes no 1º andar do prédio em frente e outro na casa ao lado. Significa que se um deles estiver distraído e não vir o intruso, o outro prontamente avisa e lá partem os dois em sonora investida estereofónica, o tempo de a ameaça permanecer no campo de visão de um deles…

Não se lhes pode mudar o chip para uma versão mais urbana e civilizada e com uma definição mais rigorosa do seu território? Ensina-se…?

05 agosto 2025

De la frontera


Ali para os limites da Andaluzia, existe uma dúzia de topónimos que incluem na sua designação “de la frontera”. Trata-se naturalmente da antiga fronteira entre o cristão e o mouro.

É uma linha que foi avançando para Sul acompanhando a reconquista, deslocando-se do vale do Douro, para o Tejo e depois Guadiana e acabando finalmente no Mediterrâneo… Penso que uma boa parte destas terras “de la frontera” estão associadas ao longo período de 2 séculos entre a tomada de Córdova, Sevilha (e o nosso Algarve) a meados do século XIII e a conquista de Granada, já nos finais do século XV.

Hoje, na península ibérica ficamos com esta “frontera” apenas no diretório do código postal, mas não é assim por todos os lados. Um dos locais onde uma fronteira destas está bem visível é em Chipre, onde ao longo de toda a ilha, de costa a costa, existe uma “zona tampão” fechada, se bem que atualmente mais fácil de transpor do que foi durante décadas. Mesmo a capital Nicósia está dividida, apesar de hoje ser possível atravessar facilmente a pé, mostrando apenas o passaporte (atenção a não comprar e trazer produtos de contrafação do Norte para o Sul).

No extremo leste da linha, zona turca, está uma das principais cidades da ilha, Famagusta, e logo ali ao lado o bairro/praia de Varosha, no passado um dos mais famosos e distintos destinos turísticos do mediterrâneo oriental. Com a entrada das tropas turcas em 1974, tudo foi abandonado precipitadamente, transformando o local numa zona deserta e fantasma durante décadas. Um verdadeiro monumento às novas fronteiras criadas neste mundo.

Mais recentemente as autoridades cipriotas turcas decidiram aproveitar o potencial turístico da cidade-fantasma, apesar de um certo vazio e polémica quanto à propriedade e direitos sobre os imóveis.

Bem asfaltadas as ruas principais, disponibilizadas para aluguer trotinetas elétricas e outros meios de transporte, os “turistas” singram pelo bairro, sorrindo e enquadrando as indispensáveis “selfies”, numa mistura muito exótica de prédios, hotéis e equipamentos em ruínas, instalações militares não fotografáveis e tranquilos veraneantes disfrutando das areias e águas que no passado fizeram a fama de Varosha. Coisas da frontera.

02 agosto 2025

Estado a mais ou Estado a menos


Os recentes anúncios por parte de vários países de reconhecimento de um Estado Palestiniano parecem-se ser principalmente uma tentativa de pressão/castigo sobre Israel, que merece certamente ser forçado a mudar de atitude.

Se esse reconhecimento proporcionará um avanço consistente na pacificação da região, é outra questão. Em primeiro lugar, os defensores do “from the river to the sea…” dizem claramente que Israel não tem direito a existir e não é com esses que a paz chegará. A história está cheia de migrações na sequência da constituição dos Estados Nações, por exemplo após a queda dos impérios (vejam o Otomano, com os gregos e os arménios) e no final das guerras (vejam os milhões no centro da Europa após a II Grande Guerra). No entanto, não há mais nenhum lugar no mundo em que as feridas dessas deslocações fiquem abertas tanto tempo e com netos de refugiados a continuar a usufruir do estatuto de “refugiados”.

Certo que as mortes de civis em Gaza têm que acabar, mas decretar um Estado, a menos de alguma influência indireta sobre Israel, que dará na prática? Esse Estado que representatividade terá, que governação terá, que segurança trará? Em 2006 houve eleições na Palestina, ganhas pelo Hamas, que deu guerra civil e administração separada das duas zonas, Gaza pelo Hamas e Cisjordânia pela Fatah. Depois disso não voltou a haver eleições e não foi Israel quem o impediu.

O que fez o Hamas livre em Gaza desde a retirada completa de Israel em 2005? Preparou nova guerra. Podem decretar que o Hamas ficará agora excluído, mas quem o financia encontrará certamente um Hamas-bis que retomará a cartilha e a ação.

Na minha opinião, o fundo do conflito é haver fações árabes que não aceitam menos do que a hegemonia árabe e muçulmana na região. Todas as guerras neste conflito foram iniciadas pelos árabes: 1948, 1967, 1973 e 2023. Com o tempo, líderes responsáveis, a começar por Sadat em 1978, foram progressivamente entrando num processo de normalização e de aceitação de Israel, mas “sobra” sempre alguém que retoma a atitude agressora. Certo que Israel, tem muitas ações condenáveis na sua história, mas é óbvio que, com o seu modelo de sociedade, se tiver a sua segurança garantida, será fácil encontrar solução. Outubro 2023 provou que deixar Gaza livre durante 17 anos não foi caminho para a paz.

PS: Atualizado a 7/8 com o recorte da publicação no Público

01 agosto 2025

Estes tempos


“[…] a nossa capacidade de integração dos imigrantes na comunidade política nacional. Devemos manter as portas abertas da nossa comunidade com moderação e dentro das regras legais que regulam a aquisição da nacionalidade, e portanto, dos direitos políticos próprios da cidadania. Também devemos exigir uma demonstração real da vontade de integração desse imigrantes na nossa comunidade nacional. A contrapartida da nossa abertura é a rejeição firme dos isolacionismos religiosos e culturais. Não podemos dar direitos políticos a minorias que recusam os nossos valores e não acatam as nossas leis. Queremos receber dignamente, isso sim, os cidadãos livres que escolheram partilhar o nosso destino coletivo e respeitar a nossa ordem jurídica”.

O texto acima é capaz de provocar alguma urticária em alguns setores políticos, culturais e sociais atuais e até ser linearmente carimbado como digno de uma extrema-direita xenófoba e racista. Ora bem, o texto não é de hoje, é de 2002 e foi proferido pelo Presidente da República Portuguesa da altura, Jorge Sampaio, que certamente não ficou na história como um inspirador de André Ventura.

A forma como o discurso não foi polémico na altura e hoje faria rasgar vestes, é sinónimo de que estamos a andar para trás e a cair em simplificações e radicalizações que não são sinónimo de bom-senso nem de inteligência.

Está subjacente que o designado multiculturalismo tem limites. Um país, uma sociedade, não é uma macedónia de legumes onde tudo se pode acrescentar livremente. Há coisas que não combinam. Por exemplo, e para não fazer muito complicado, o estatuto da mulher nalgumas sociedades não é compatível com os seus direitos constitucionais em Portugal. O eventual problema com quem chega não é a cor da pele, é o respeito pelos códigos sociais (para lá dos jurídicos, obviamente) que fazem a nossa identidade e o quadro em que queremos e decidimos viver.

Que hoje em dia, se possa ser insultado por “gente de elite” ao expressar o mesmo ponto de vista de Jorge Sampaio de 2002, é altamente preocupante para o estado da nação e da sua evolução.