31 julho 2018

E agora, Bloco?

Considero o Bloco de Esquerda um projeto político atípico e um pouco difícil de caraterizar ideologicamente. Tem origens heterogéneas e, mais do que isso, com uma grande carga de anacronismo nos alicerces herdados. Se na década de 70 um jovem urbano se podia facilmente reclamar de trotskista, maoista, maxista-leninista e por aí fora, estes fundamentos, hoje, para um partido que se aproxima do poder, estão naturalmente falidos. Já ninguém, ou quase ninguém, se reclama “trotskista”, certo? Ou, pelo menos, ninguém sabe o que isso poderia ser como prática, mesmo prática.

O BE é claramente contra uma séria de coisas e difusamente a favor de umas ideias. Temos as causas “fraturantes”, e como esta palavra soa bem naquele contexto, mas o exercício do poder não se pode limitar ao “quebrar”.

Diz-se correntemente que em política só estão puros os virgens. Ou seja, só não fez asneiras, quem nunca teve oportunidade de as fazer. Com todo o perigo destas visões generalizadoras, é certo que um partido “do contra” corre grandes riscos quando se aproxima do exercício do poder.

O caso de Ricardo Robles marcará um antes e um depois, penso. Primeiro, na perspetiva individual do comportamento de alguém que tem algum relevo na organização. Ele pode não ter feito nada de ilegal, dando já de barato a promiscuidade entre as suas funções na Câmara e o investimento imobiliário, mas comportou-se como um padre que de manhã, do alto do seu altar, prega a moralidade e condena impiedosamente os pecadores… e à noite participa em orgias.

Depois, pior, é absolutamente deplorável a defesa que a cúpula do partido fez, porque aí deixou de ser um caso individual e passou a ser o partido, institucionalmente, a caucionar uma hipocrisia descarada. Para quem faz bilhete de identidade da defesa intransigente dos (seus) princípios, não vai ser fácil recuperar desta ferida.

29 julho 2018

A propriedade e a partilha

O Huguinho nasceu em família favorecida e juntou uma enorme coleção de automóveis miniatura. O Sr. Padre disse-lhe que ele devia partilhar alguns com os meninos cujos pais tinham menos posses. O Huguinho aceitou o conselho e foi oferecendo algumas miniaturas, enfim, as mais estragadas e as de que gostava menos, aos colegas mais desfavorecidos. O Huguinho tornou-se muito solidário.

O Zezinho não nasceu nem rico, nem perto, mas empenhou-se muito em estudar, aprender e trabalhou seriamente. Hoje tem uma vida desafogada, paga os seus impostos e cumpre todas as obrigações sociais. O Huguinho continua a achar que se deve sempre dividir a propriedade com quem tem menos, mas o Zezinho não concorda completamente, muito especialmente quando está em causa o que se conseguiu por mérito e esforço próprio. O Huguinho continua a ver a riqueza como algo que herdou e vai herdando, culpabilizando-se por ser um favorecido. O Zezinho não sente culpa nenhuma por ter o que tem.

Um destes dias o Huguinho vai participar nuns trabalhos políticos que incluem temas como “A propriedade é o roubo: debate sobre a socialização dos meios de produção”. Ao Zezinho isto parece um grande disparate, mas existir no mesmo programa um outro painel - “Direito à boémia: necessidade da vida noturna para produção e radicalização cultural”, ajuda a entender melhor o contexto.

Obviamente que o universo não se resume a Huguinhos e Zezinhos, mas que há muitos Huguinhos por aí, há…. (e só enfia o barrete quem quiser)

25 julho 2018

O tamanho conta?


Quando se fala em categorias de máquinas fotográficas, para lá das simpatias clubísticas pela marca do coração, para lá de mais ou menos versatilidade, transportabilidade e sofisticação tecnológica, existe um parâmetro fundamental para a qualidade do resultado final, que é o tamanho do sensor.

Simplificadamente, há os de 35mm, do tamanho da antiga película, usado por profissionais e amadores endinheirados (se excluirmos uma invenção da Sony que puxou o nível de entrada mais para baixo), os mais populares APS-C, do nome de um antigo filme, linearmente cerca de 1,5 mais pequenos do que os anteriores, e os “minorcas”, fração de polegada, das compactas, superzooms e telemóveis. Estes últimos não têm tamanho standard, mas linearmente são cerca de 4 vezes ainda mais pequenos do que os APS-C. Para resoluções próximas é óbvio que o sensor minorca será construído com elementos mais pequenos e que isso tem um preço na qualidade da imagem. Ou seja, o tamanho conta.

No entanto, os telemóveis começam a tirar fotografias “agradáveis” de ver, especialmente se forem visualizadas num pequeno écran…. de telemóvel. Recentemente li um artigo (até num sítio sério) que questionava o tal dogma de “o tamanho conta”. A parafernália de softwares de otimização, realce, correções e o diabo ao pixel, fazem os sensores minorcas parecerem gente grande. Tenho que concordar que o meu telemóvel me apresenta muitas vezes imagens bastante crocantes, muito para lá da minha expetativa.

Uma das caraterísticas que se perde com os sensores pequenos é a possibilidade de desfocagem do fundo e o destaque do elemento principal nos retratos. Mais uma vez, há software para “resolver”. Devo dizer que acho bastante artificiais algumas imagens assim tratadas, apresentando um “bokeh liquido”… questão de gosto e não gosto.

Softwares, softwares… imagens à parte.

21 julho 2018

Habitats e migrações

Sim, existe um animal chamado ser humano, a mesma espécie em vários continentes e latitudes; sim, teoricamente tem direitos universalmente reconhecidos, independentemente da raça, credo, género, etc; sim, ele pode viajar e migrar pelo planeta; sim, mas… também possui uma dimensão cultural e social que não é igual em todo o mundo, nem pode ser ignorada.

Com maior ou menor dependência, com maior ou menor facilidade de adaptação, todos temos um habitat sócio – cultural específico onde estamos integrados. Cada qual e cada um, imagine-se deslocado para as estepes da Ásia Interior e pense se seria feliz a viver aí para o resto da sua vida. Não somos todos iguais, não reagiríamos todos da mesma forma, mas uma larga maioria, certamente, não se sentiria “em casa”.

Migrações. Há que distinguir o contexto temporário, sequência de uma guerra ou catástrofe natural, da situação definitiva. Por muita compaixão que tenhamos por quem vive mal, e devemos tê-la e mobilizarmo-nos para melhorar a vida de todos os seres humanos, um ser humano não pode ser encarado como um infeliz animal abandonado, do qual temos pena e que trazemos para casa. E não pode sê-lo por várias razões. A primeira é existir uma enorme probabilidade de ele não se sentir feliz num habitat, eventualmente materialmente melhor e mais seguro, mas diferente do seu original. Os problemas que se vivem nas “comunidades” por essa Europa fora, têm muito a ver com isto, apesar de todos os esforços de integração realizados. Não pode ser feito em grande escala, porque isso equivale a retirar recursos aos seus locais de origem e empobrece-los adicionalmente. E também porque uma chegada massiva altera o habitat destino, tornando-o estranho para todos, os que chegam e os que lá estavam. Não confundir com xenofobia.

Os nossos habitats evoluem, mas, uma vez mais de forma variável conforme cada qual e cada um, essa mudança tem uma velocidade limite aceitável e integrável. Se for demasiada rápida, será vista como uma rutura de referência. Isto não é xenofobismo.

A missão e obrigação de melhorar sustentavelmente a sorte dos mais desfavorecidos deste planeta não passa por trazê-los todos para nossa casa.

20 julho 2018

Figuras tristes

Vinte e dois deputados desta nação, e invocando expressamente esse estatuto, escreveram ao Supremo Tribunal Federal do Brasil apelando à libertação de Lula da Silva. Para começar, do ponto de vista formal e institucional, não faz nenhum sentido deputados enviarem recados destes a magistrados. Com o Atlântico pelo meio, pior ainda.

Segundo estes nossos representantes eleitos, “Lula de Silva é hoje reconhecido mundialmente como um preso político” (!?). Isto é um enorme insulto ao sistema judicial brasileiro, ignorando oportunisticamente que neste processo foram julgados e condenados figurões de diversos quadrantes políticos e de grandes grupos económicos.

É irónico recordarem o contributo de Lula para retirar da pobreza milhões de brasileiros. Independentemente do mérito que possa ter ido nessa realidade, num país decente isto é absolutamente irrelevante para o processo judicial, a menos que se queira valorizar o “Roubou, mas fez!”.

Consultei recentemente uma publicação da “Transparency International” com uma ordenação da corrupção percecionada no setor público, em 180 países do mundo. Como em todos os exercícios deste tipo, serão certamente discutíveis os critérios de avaliação e a ponderação. No entanto, é claríssimo existir uma correlação muito forte entre corrupção e subdesenvolvimento. Ou seja, nos países em que o setor público mais rouba é onde as populações pior vivem.

Na teoria toda a gente está de acordo e condena a corrupção. No entanto, na prática, quando o problema atinge a “tribo”, muito facilmente se assobia para o lado ou pior, como neste caso e noutros cá do burgo, tenta-se branquear responsabilidades, conjeturando histórias da carochinha. Meus senhores, enquanto continuarmos a colocar o filtro da simpatia à frente destes factos, a corrupção não irá diminuir e continuaremos subdesenvolvidos. Alguém tem dúvidas??

01 julho 2018

Sobre a verdade dos outros


Faço parte daqueles que entendem que a prática passada e atual da instituição igreja católica é muito frequentemente, e infelizmente, afastada dos princípios do cristianismo de Cristo. A promiscuidade com o poder, as perseguições aos “infiéis”, a fortuna ostentada, a beatice mesquinha e a limitação do espírito crítico são exemplos de coisas que não lhes ficam/ficaram bem.

Recentemente li estes dois livros sobre um personagem fascinante: Pierre Claverie, na sua última função bispo de Orão, na Argélia. Um deles é uma coletânea de textos seus, o outro uma biografia. A dimensão espiritual e a riqueza humana do seu discurso são notáveis.

Nascido na “bolha colonial” e ignorando “o outro” nunca disso se esqueceu, assumiu-o e tudo fez para o corrigir. Foi “pied noir”, nome dado aos franceses nascidos na colónia e regressados à metrópole depois da independência. Também foi “pied rouge”, os europeus que se instalaram na Argélia independente para colaborarem na construção do novo país. Aprendeu árabe e manifestou uma vontade e um empenho permanente em entender e respeitar o Islão: “Preciso da verdade dos outros”, dizia ele.

Cruzam-se aqui a ação e os princípios da igreja católica pós concílio Vaticano II, sendo forçoso reconhecer que se todas tivessem feito caminho semelhante, hoje não haveria tantas tensões religiosas na bacia mediterrânea. Podem torcer o nariz e o que mais quiserem, mas racional e objetivamente… essa é que é essa.

Pierre Claverie era um adepto do diálogo e da aproximação entre religiões, mas sabia “existir um abismo que nos separa”, que não se atravessava com grandes especulações teóricas, nem com ingenuidades superficiais. Só posso concordar. É inútil e pueril discutir se o meu Moisés é mais completo do que o teu ou se um profeta teve mais revelações do que o outro. O diálogo e a real aproximação só podem acontecer entre pessoas e é muito mais fácil quanto mais humano for o relacionamento. Daí a sua enorme paixão pelo contacto com todo o tipo de gente.

Na década de 90, durante a época do terrorismo, quando um francês religioso católico era visto como um estrangeiro não isento e, para muitos, pouco desejado, os seus textos, para lá de extremamente ricos de conteúdo, eram de uma objetividade, frontalidade e honestidade irrepreensíveis.

Morreu em 1 de agosto de 1996, despedaçado por uma bomba quando entrava em casa. Alguém achou que ele não merecia viver.