28 dezembro 2022

Jackpot


Se já estávamos habituados a todo o tipo de casos de falta de ética, princípios e até legalidade em torno do atual governo, o caso de Alexandra Reis é um verdadeiro jackpot que, pela acumulação de particularidades, será difícil de bater.

A começar, se ela sai da administração da TAP por renúncia, sua iniciativa, a que propósito a empresa deve indemnizá-la? A seguir, o valor parece absurdo e levantando sérias dúvidas sobre o enquadramento. Na etapa seguinte é nomeada para presidente da NAV. Para alguém que, de uma forma ou de outra, não serviu na TAP e foi tão cara de dispensar, vai o Estado assumir novo compromisso? E não faria sentido que uma tão rápida recuperação de rendimentos implicasse devolução parcial da indeminização, atendendo a que o “patrão” é o mesmo? Um patrão normal tê-la-ia certamente imposto.

Alexandra Reis era administradora e os administradores são nomeados e substituídos pelos acionistas, neste caso o Estado. Vamos acreditar que para esta empresa e este contexto os ministros da tutela não foram informados e validaram a operação, como agora presumem ter ocorrido ao solicitarem à TAP detalhes? Dormiam na forma ou fazem de conta?

Ainda, isto não se passa numa empresa qualquer, é numa empresa que representa um custo brutal para todos os contribuintes e assim deveria ser objeto de escrutínio e rigor adicionais neste e noutros campos.

Bom, não era tudo, ainda falta o fato de no final ser nomeada como secretária de Estado… e supostamente com tutela sobre a capitalização da TAP pelo Estado. Constitui um recorde difícil de bater, sem dúvida!

27 dezembro 2022

Entre Deus e os Homens (III)

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Na conquistada Albi, uma das principais cidades de influência cátara, que até deu nome à cruzada, será construído um palácio episcopal, bem fortificado, não fosse o diabo tecê-las, e uma catedral majestosa e imponente, também bastante bem defensável. Hoje visitámos no palácio uma coleção Toulouse-Lautrec, com muito pouco cheiro dos processos inquisitoriais que por aquelas terras decorreram. O interior da catedral é impressionante, para não deslizar deslumbrante… e algo subjugador. Julgo não existirem muitas com a mesma densidade de expressões artísticas como esta. Não há praticamente um centímetro quadrado cru. Na capela-mor, uma das imagens, abaixo reproduzida, mostra e ensina que entre Adão e Deus, estão os doutores da igreja. Do outro lado, a mesma mensagem para Eva, sendo que continuam os doutores, não há doutoras.

Um dos aspetos comuns nestas heresias, e o mais perturbador para as instituições religiosas estabelecidas, é precisamente a rejeição de um clero, frequentemente rico e corrompido, na relação do ser humano com o divino. Um clero que, no seu projeto de poder, não vai hesitar em chamar as espadas e atear as fogueiras, com muito poucos escrúpulos e respeito pelos seus próprios valores.

Pelos lados da Galécia romana, noroeste ibérico, tinha antes nascido e passado um movimento herético no século IV, o Priscilianismo, onde se podem encontrar alguns pontos comuns com os cátaros, ou “Bons homens”, como eles próprios se designavam. O saudoso João Aguiar, dedicou-lhe um dos seus brilhantes romances históricos: O Trono e o Altíssimo. Recomendo.

Cerca de duzentos kms a sul de Albi podemos sentir as ruínas de Montsegur, o último bastião onde em 1244 os “últimos” 224 hereges foram queimados vivos, depois da rendição, por recusarem a conversão. Sem terra nem refúgio seguro, os “perfeitos” e “perfeitas” ainda cruzaram aquelas terras durante algumas décadas, até irem paulatinamente caindo nas malhas inquisitoriais. Aquele que é considerado o último perfeito do Languedoc, Guillaume Bélibaste, foi queimado em 1321.

Não há dúvidas sobre quem ganhou e hoje podemos ver e admirar inúmeras e impressionantes realizações que a igreja tutelada e hierarquizada nos deixou.  Entre a espetacularidade das pedras que a liderança centralizada e autoritária deixou e a espiritualidade que aquela e outras rebeldias do livre-arbítrio alimentaram… assim é a nossa herança.



 

23 dezembro 2022

Os outros nas nossas botas


Há uma expressão “calçar os sapatos dos outros”, ou colocar-se na sua pele, que apela a experimentar ver um problema pelo lado do outro, eventualmente um adversário, e assim procurar entender o seu raciocínio, o seu ponto de vista e compreender melhor as suas ações.

Existe algo um pouco complementar que é o tentar colocar os outros no nosso lugar. Desconhecendo os fundamentos das suas motivações, trata-se de imaginá-las à luz dos nossos valores e princípios. É um jogo potencialmente perigoso.

Aqueles que apelam ao diálogo e à diplomacia face aos autoritarismos e agressões, das quais a situação na Ucrânia é o atual exemplo mais agudo, acham que como “connosco”, “com os outros” a lógica será a mesma. Obviamente que para Putin, tal como Hitler em 1938, há um sistema de valores que não é o “nosso”. Não é o diálogo, nem a argumentação que os convencem. É a força, militar, económica ou outra.

O sistema de valores que defendemos necessita de ser forte para resistir, sem hesitações nem meias-medidas. As botas de Putin são muito diferentes das nossas. Não serve de nada imaginá-lo a calçar as nossas, não há calçadeira que tal consiga.

22 dezembro 2022

Entre Deus e os Homens (II)


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Terminados os cercos, batalhas e rendições, a heresia não desapareceu. O fio da espada, as grandes fogueiras coletivas das cruzadas, a violência da guerra e as conquistas com sucessivas mudanças na senhoria das povoações não eliminaram os fundamentos daquela fé, nem a erradicaram.

Nestes fenómenos heréticos, tanto ou talvez até mais curioso do que o detalhe das bases teológicas e princípios teóricos está a forma como a sociedade os adota e com eles se identifica, ou não. Domingos de Gusmão cria em Prouilhe, no coração do território herético, o embrião da futura ordem dos dominicanos, que tenta entender e aproximar-se da sensibilidade espiritual da região, afastando-se e renegando o fausto do clero da época. Juntamente com os franciscanos, serão os frades mendicantes.

Da mesma forma como os senhores locais não tinham sido “de confiança” para combater convictamente o catarismo, obrigando à chamada de reforços do Norte, também o clero de proximidade não era suficiente afastado da heresia para levar até o fim a sua irradicação, após as vitórias militares. Foi necessário criar uma instituição com origem e hierarquia externa, dependendo diretamente do papa, para levar a bom porto a limpeza. Chamou-se-lhe Inquisição e a sua liderança será assumida pelos dominicanos. Apesar de figuras de relevo meritório, como Frei Bartolomeu de Las Casas, extremamente crítico das brutalidades coloniais espanholas na América Latina, esta ordem vai-nos presentear com um tal Tomás de Torquemada, cujo nome é um símbolo, e o massacre de Lisboa de 1503 é obra da incitação destes monges, de tolerância algo limitada.

A Inquisição vai instaurar processos, mais ou menos arbitrários e expeditos, com confissões de várias formas “motivadas”, conforme o estilo e a autonomia do inquisidor em funções. Não haverá mortes em massa, mas terá uma ação destruidora mais eficaz e perene, através da instauração do medo e da desconfiança, da promoção da delação, da asfixia da reflexão e o silenciar de diálogos e argumentações. A Inquisição matou fisicamente, direta ou indiretamente, chegou a desenterrar heréticos mortos para os fazer passar pelo fogo, e também destruiu a liberdade de pensar e de acreditar.

A riqueza humana está intimamente ligada à capacidade de o ser humano pensar, refletir, assumir e discutir as suas interrogações e convicções. Quando essas faculdades são castradas e é destruída a tolerância entre diferentes credos e conceções, o mundo empobrece e entristece. Podemos especular sobre se, caso não houvesse esta heresia e com esta intensidade, teria ou não nascido esta Inquisição, se teria chegado mais tarde, idêntica ou com outra forma. Indiscutivelmente os cruzados de Inocêncio III e sucessores foram um brutal travão ao desabrochar da luz na Europa, sendo que a península Ibérica vai herdar e suportar esta mordaça longamente.  

A emancipação espiritual do Languedoc foi demasiado grande para ser travada pelos meios existentes, nomeadamente simples bulas papais, excomunhões, interdições e outras ameaças, mas também demasiado pequena para resistir ao sufoco que o resto da atual França e a Santa Sé lhe aplicaram.

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Imagem acima: lápide em Montsegur

21 dezembro 2022

Entre Deus e os Homens (I)


No início do século XIII estava firmemente instalada no sudoeste francês, Terras de Oc, principalmente num losango entre Toulouse, Beziers, Carcassone e Albi, uma heresia cristã, que se designou por cátaros. Possuíam uma organização própria, uma interpretação específica do Evangelhos e, sobretudo, refutavam completamente o papel do clero rico e elitista na sua espiritualidade. 

Tinham uma visão da organização social muito menos estratificada do que a sociedade feudal da época, com valorização da necessidade do trabalho manual, chegando mesmo os seus perfeitos a serem genericamente apelidados tecedores. O espaço e a função das mulheres, se bem que não completamente ao mesmo nível dos homens, eram muito mais equilibrados do que na igreja romana. Esta, naturalmente, não aceitava esta dissidência e o Papa Inocêncio III, não a conseguindo anular por decreto, decidiu apelar a uma cruzada contra estes infiéis. Andava a pregar por ali e a tentar resgatar almas um tal Domingos de Gusmão, nascido no reino de Castela.

O Rei de França e os senhores do Norte, primeiro estes, o soberano depois, viram nesse desafio papal uma excelente oportunidade para alargarem o seu poder e domínio e lançaram-se na empreitada. Era também um destino mais próximo e acessível do que a longínqua Palestina para realizar uma “peregrinação”, travar algumas batalhas e atingir a absolvição dos pecados. Contrariamente a outras geografias onde os hereges, não tendo apoio temporal nem as suas ideias encontrando muito eco na sociedade, eram facilmente capturados e aniquilados, o contexto social e político do Languedoc proporcionava um apoio significativo por parte das comunidades e dos senhores locais.

As lutas que duraram 35 anos acabarem por ser em muito uma disputa de poder entre esses senhores locais e os “cruzados” vindos do Norte. Desde a tomada de Beziers em 1209, onde o líder espiritual da cruzada, Arnoldo de Amaury, ao ser inquirido sobre como distinguir os hereges dos bons fiéis terá respondido – “Matem-nos a todos, Deus saberá reconhecer os seus” – (frase talvez não rigorosa na forma, mas correta no conteúdo), até à capitulação e massacre dos últimos resistentes no castelo de Montsegur em 1244, não faltou violência e brutalidade.

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Acima: Montsegur
Abaixo: Dois livros interessantes sobre o tema, um mais interpretativo, outro mais descritivo




19 dezembro 2022

De vergonha em tristeza

Começo a sentir vergonha alheia pelo meu país e por quem o dirige. Em escassos dias o nosso Primeiro-ministro conseguiu a habilidade de deixar duas tristes e vergonhosas marcas para a sua e nossa posteridade.

Uma delas foi queixar-se de Carlos Moedas não lhe ter ligado por causa da inundação na sua garagem. Efetivamente, naquele contexto catastrófico, não é o Governo que deve aparecer, ser solidário e cooperar com as necessárias ações a tomar; é o Presidente da Câmara que tem obrigação de transmitir as suas condolências aos cidadãos “alfa” da cidade. Triste modelo, no mínimo anacrónico – se ao menos o PS fosse um partido monárquico…

A segunda foi a referência aos “queques a guinchar”, em entrevista formal. Concorde-se ou não a IL apresenta propostas concretas, em discursos corretos e mesmo que fossem uns excitados histriónicos, um PM não pode usar aquela linguagem, ponto! Nas recorrentes evocações e comparações com o Chega, inevitavelmente referido na mesma passagem, o PS brinca com o fogo. Promover uma oposição desqualificável pode parecer boa tática a curto prazo, mas não é por aí que virá uma evolução séria para o país e para o próprio PS. A qualidade de um projeto é, mais tarde ou mais cedo, reflexo da qualidade de quem o questiona. Está o PS pouco preocupado com a sua qualidade a prazo… e a do país? 

16 dezembro 2022

O lugar da justiça e os deveres da política


Após a revelação do escândalo do Qatargate assistimos a uma firme e pronta reação da Comissão Europeia e do Parlamento Europeu. Certo que ainda ninguém foi condenado, que a presunção de inocência continua de aplicação num Estado de Direito, mas o cheiro a esturro é tão forte, que forçou a uma tomada de posição e natural preocupação pela perda de confiança nas instituições europeias que tal situação gera.

Ainda não ouvi ninguém por lá proclamar “à justiça o que é da justiça (e esperemos que transite em julgado)”, como por estes lados se tornou tradicional, por mais escandalosos e inaceitáveis que sejam os fatos tornados públicos.

Certo que formalmente só é ladrão quem for apanhado a roubar, houver provas validadas, não anuladas por um incidente processual qualquer, o julgamento concluído, todos os recursos esgotados, tudo antes da prescrição e e e…

A um responsável político que gere causa pública ou a um eleito que recebeu uma procuração para representar cidadãos, exige-se mais do que simplesmente conseguir inocentar-se (… safar-se!) em tribunal. Ética. Podem perceber e tentar aprender?

15 dezembro 2022

O Titanic e o MSC World Europa

Cheira-me que se o MSC World Europa, o último grito dos navios de cruzeiro, ultramoderno e sofisticado, chocasse com um incontornável e imprevisto iceberg, a “culpa” seria certamente atribuída às alterações climáticas.

O Titanic, que teve esse azar há 110 anos, por azar simples, aselhice, incompetência ou outra coisa qualquer, não teve essa sorte. A ser hoje, seria certamente e apenas mais uma vítima da desregulação climática que está a libertar icebergues no Atlântico…

Não, claramente que temos problemas de sustentabilidade neste planeta, mas atribuir tudo e todos os “azares” às alterações climáticas… é simplificar a coisa.


14 dezembro 2022

Dois mais dois


O livro de Luciano Amaral, “Economia Portuguesa – As últimas décadas” é uma excelente síntese que permite ver por onde temos andado e de como aqui chegamos. O grosso dos factos elencados não traz muitas novidades, mas a sua colocação em sequência e perspetiva ajuda a entender a dinâmica.

De um Estado sem direitos, antes de 74, mas com a economia a crescer, passamos a um Estado com todos os direitos, mas de economia estagnada e a endividar-se de forma insustentável. Certo que a transição inicial durante a crise dos 70s não ocorreu no melhor contexto; certo terem existido alguns períodos de animação económica, mas não consolidaram; certo que, depois da fixação do cambio e posterior entrada no Euro, deixamos de poder compensar com a desvalorização da divisa os desajustes criados, mas… 20 anos após a chegada do Euro, ainda estarmos estruturalmente a derrapar e a não progredir, é sinal de alguns equívocos persistentes e/ou incompetência. Se ilustração faltasse, a Roménia a ligar o pisca para nos ultrapassar é um bom exemplo, depois de tantos outros já o terem feito.

Dois mais dois é quatro, dois menos três é negativo e a vida depois do défice permanente é a falência ou a mendicância. O interesse principal deste livro é colocar-nos face a uma decorrente e persistente incapacidade de gerar riqueza para pagar os compromissos que não paramos de assumir. Nas notícias do dia vemos muitas das “pequenas” coisas que nos agarram à cepa torta. Uma reflexão séria sobre o resultado, para lá da espuma dos dias, impõe-se. Isto se pretendemos efetivamente mudar de vida e deixar de ser falidos e/ou pedintes

09 dezembro 2022

Energia grátis

Não deixamos de ouvir falar e de sentir os aumentos no custo de energia elétrica e os impactos ambientais da sua produção. Sabemos também que o caminho não passa por apenas esperar novos grandes projetos, mas muito pela mudança de hábitos e contributos individuais.

Dentro da contribuição possível de cada um inclui-se a instalação de painéis fotovoltaicos domésticos, sendo que a motivação ambiental sobrepõe-se muitas vezes à avaliação financeira pura do investimento.

Feito o investimento, há desde logo a questão de desalinhamento entre o pico da produção, durante o pleno sol quando a casa está vazia (sobra energia que vai para a rede) e o consumo quando a casa está ocupada e já não sol há (falta energia que vem da rede).

Pareceria ser lógico e justo que o operador nos cobrasse o diferencial entre a energia que forneceu e a que recebeu, só que este balanço é feito e fechado em intervalos de apenas 15 minutos. Significa que o grosso da energia excedentária não é deduzida/contabilizada.

Teoricamente pode ser vendida, mas após um largo conjunto de procedimentos, como se essa venda fosse um desígnio relevante do processo, e mendigando junto dos operadores quem dá qualquer coisinha pelos kwh que nos sobram.

Não é muito motivador. O excedente deveria ser diretamente deduzido do consumo, eventualmente com ajuste regulamentado de tarifa. Esta burocracia e discricionariedade não ajudam à causa. 

Atualizado a 11/12 com a publicação no "Público"




06 dezembro 2022

Faz sentido?

A União Europeia decidiu proibir a comercialização dos veículos a combustão a partir de 2035. Ainda não sabemos como vai evoluir todo o contexto até lá, nomeadamente quanto à rede de carregamento, a disponibilidade de energia elétrica e o custo/ciclo de vida das baterias.

Não sabemos também como vai evoluir a relação de propriedade/utilização do automóvel. Da mesma forma como já muitos não compram CDs e DVDs físicos, apenas pagam para ter acesso temporário aos conteúdos, será que vamos deixar de ser proprietários “permanentes”?

Certo é que já neste momento, para um segundo veículo e utilização em contexto urbano, o elétrico serve perfeitamente e até é energicamente oportuno, sobretudo se carregar durante a noite, quando há frequentemente excedente de produção de eletricidade renovável.

A Citroen apresentou recentemente este protótipo de um possível veículo elétrico básico e irreverente, o Oli. Sendo ainda apenas um protótipo, pode-se questionar se esta abordagem faz sentido. Parece-me que sim. Para a tal utilização urbana não necessitamos de um produto com todas as opções e sofisticações tecnológicas. Baste que ande e seja barato na aquisição e na utilização. Se tiver um design irreverente, isso compensa um pouco o minimalismo.

O fato é que a migração para a mobilidade elétrica não passa por apenas trocar depósito, injeção e pistões por bateria, conversor e bobinas de cobre. Há mais coisas que mudam, potencialmente…