30 outubro 2020

Três tempos e…

Tempo hoje:

Em outubro de 2020, num bonito e cerimonioso cenário, na Sorbonne, entre as figuras de Vitor Hugo e de Louis Pasteur, repousa a urna e é homenageado por toda a França o professor Samuel Paty, assinado por um islamista radical, e cujo crime foi ter mostrado numa aula as famosas caricaturas de Maomé, do Charlie Hebdo, no âmbito de uma discussão sobre a liberdade de expressão. Evocadas generosamente as três palavras: liberdade, igualdade e fraternidade.

Tempo antes:

Quantos “Maires”, galhardamente envergando a faixa tricolor, agora inquestionavelmente solidários com o luto, proclamando e repetindo as três palavras mágicas, num tempo antes, não fecharam os olhos e até ajudaram a construção de madraças suspeitas, com financiamentos de origem suspeita, com formações suspeitas, desde que isso os ajudasse a preservar o poder? Democracia a quanto obrigas?

Quantos intelectuais e outros que tais, que aplaudiram o filme de Jean-Luc Godard, o preservativo no nariz de João Paulo II, todas as provocações de bom e mau gosto, do “é proibido proibir”, estão calados, amedrontados ou intelectualmente acorrentados e porquê?

Tempo depois:

Diz o Presidente de lá que a França não renunciará às caricaturas religiosas. Do ponto de vista do princípio é coerente. Na prática, um vendaval se levanta, até maior do que a decapitação original provocara. Apetece questionar até onde irá este vendaval. Até as caricaturas serem aceites, sem causarem mortos, ou até um pouco mais de autocensura e chamemos-lhe respeito virem definitivamente amedrontar e acorrentar a liberdade de expressão? Certamente haverá mais mortos… mas qual será o próximo tempo?

 

13 outubro 2020

O dia em que o PS morreu


 

Após o 25 de Abril, o PS tornou-se rápida e claramente o maior partido português. Para lá da empatia e bonomia de Soares, havia um grande desejo de mudança, de progresso e de justiça social, mas em contexto ocidental. Sábia a escolha do povo. Era a vontade de uma coisa assim tipo Suécia, quando o outro partido, que na altura ainda não se chamava social-democrata, para muitos cheirava um pouco à antiga senhora.

Hoje, esse PS está morto e não é questão de lamentar a ausência dos fundadores, não foram santos e limpos como muitos imaginam. E ao executor darei um nome: Sócrates. Se não há virgindade antes do mesmo, a escala deste é outra e a sua herança assusta. Independentemente do resultado do processo que corre na justiça, ele está politicamente acabado, mas tanta trafulhice não é nem pode ter sido obra de um homem só, por mais poderoso que fosse. Houve Sócrates e houve companhia.

E à morte darei um momento. Quando António José Seguro foi saneado pela companhia.

E hoje podemos passar a certidão. As mudanças na Procuradoria Geral da República e no Tribunal de Contas, para lá de coisas de importância formal menor, como Vitor Escaria no gabinete do PM, atestam que a companhia está pujante e bem instalada. Atestam que o se o cancro até pode ter nascido com Sócrates, não morreu com o seu afastamento.

O PS, tal como muitos o viam em 1974, está definitivamente morto e ai, ai os populismos! São uma séria ameaça.

Imagem: versão impressa no Público de hoje.


04 outubro 2020

Apropriação e integração


Fazem-me muita alergia as polémicas com as chamadas apropriações culturais. Alguém de uma cultura utilizar uma referência cultural de outra ser condenável como um roubo. Como se cada manifestação cultural e cada agente pudessem ser catalogados, associados inequivocamente a uma cultura específica e fosse possível construir muros à volta. Isto é inviável e a História da Humanidade e das Artes está cheia de belas realizações mestiças.

Ridicularizando o que o merece: se eu usar uma boina vasca, umas havaianas brasileiras, cozinhar uma pizza ou preparar um sushi… será aceitável? E aquele cabelo louro do Neymar?

Mas o fundo do problema não é esse, de todo. Se um branco se vestir de zulu e dançar conforme, será fortemente recriminado, se um negro se trajar a rigor e dançar o vira, é um bom exemplo de integração. Obviamente que há questões de gosto e mau gosto. Não aprecio de todo as varinas, tricanas e minhotas das marches populares, mas nunca me passou pela cabeça apelar à sua censura. As ditaduras do gosto acabam sempre em coisas feias.

Nos anos 80 a Brigada Vitor Jara pegou em temas tradicionais e interpretou-os com instrumentos populares, mas sem respeitar as suas regiões de origem. Um trabalho excelente, que muito contribuiu para lançar um grande interesse são pela música tradicional portuguesa. Mas … um cavaquinho ir colorir um tema da Beira Baixa ou um adufe vir marcar um do Minho? E as enormes influências africanas em muita boa música popular portuguesa? E o ukulele??


01 outubro 2020

Recuperação e Resiliência


 A aplicação da bazuca dos fundos europeus para a recuperação pós-covid recebeu o nome de resiliência. Não me parece feliz. Resiliência é resistência, aguentar, mas nós precisamos muito mais de que a manutenção e a salvaguarda do que existia antes. 

Precisamos de desenvolvimento, a sério, de formação e qualificação, a sério, um Estado de direito a funcionar, de ter a justiça a aplicar a legislação célere e a sério. De novas mentalidades, de uma cultura de inovação, de risco. Basicamente fazer mais coisas e melhor. De preferência coisas que sejam faturadas por empresas, em ambiente competitivo e não em circuitos fechados, controlados. Não deverão existir dúvidas sobre a pertinência deste princípio, não será certamente um tema fraturante. 

Infelizmente, parece que o conceito de resiliência prevaleceu. Resiliência de um sistema que não funcionou, que é o Estado gastar, gastar... Estes anúncios de “investimento” público no SNS, que necessita, e em pontes e estradas, bastante mais discutível, faz-me lembrar tristemente a resposta a uma outra crise e aos “investimentos” no parque escolar e TGV’s… de má memória. Efetivamente, o betão é muito resiliente.