01 dezembro 2020

De charanga y pandereta


Este título faz parte de um poema irónico e corrosivo sobre uma certa Espanha caricatural e retrógrada, escrito pelo andaluz António Machado (1875-1936). Encontrei-o num CD de Joan Manuel Serrat, de músicas feitas sobre textos do poeta, sendo a mais famosa a do “Caminante no hay camino, se hace camino al andar” e revi-o mais recentemente citado num livro sobre a Andaluzia, antes, durante e depois do domínio muçulmano: Andalousie, Vérités et Legendes, por Joseph Perez.

Lá como cá, esse período da história tende a ser visto de forma redutora, seja como um desvio pontual e rapidamente normalizado, seja como um período culturalmente rico que as armas castraram. Uma realidade que ultrapassa 5 séculos é naturalmente muito mais complexa e este livro veio-me parar às mãos no processo de mais aprender sobre o tema, mas esse não é o tema de hoje.

Sobre a imagem “típica” do flamengo, ciganos e touradas, da “charanga y pandereta”, diz J. Perez que sua popularidade cresce numa certa franja da população espanhola e muito fortemente na Andaluzia, como reação à tentativa de modernizar e de trazer ao país as luzes europeias, um efeito colateral das invasões napoleónicas do início de século XIX. Enquanto o pé direito carrega no acelerador, promovendo uma certa (a sua) ideia de evolução e modernidade, o esquerdo trava, reforçando a ligação ao passado e à especificidade local, contrariando o importado (para a imagem ser mais feliz, talvez os lados dos pedais devessem ser permutados).

É um processo relativamente comum de reação à mudança, especialmente presente em muitas comunidades expatriadas, que tanto se podem integrar, como amplificar o seu arreigo à identidade e cultura originais. Quanto mais me querem impingir hambúrgueres, mais aprecio a posta mirandesa. Menos ironicamente, podemos recordar como o Estado Novo utilizou e promoveu uma certa imagem da “cultura popular”, para bloquear o interesse e incentivar a falta do mesmo por coisas mais “modernas”…

As tradições tanto podem ser fonte de riqueza e raiz fecunda, como um lastro que atrasa a evolução. O empurrar a modernidade tanto pode ter como consequência um efetivo e positivo progresso como o enquistamento e um retrocesso nocivo. Nem o povo se educa e se desenvolve por decreto, por muitos iluminados que sejam/se julguem ser os legisladores, nem o congelamento em referências antigas tem futuro. Obviamente… ! E em nada ajuda a religião do fraturar, que tantos gostam de praticar…  quase um século depois, continuando a citar Machado, lá continuam e dificilmente reconciliáveis “las dos Españas”.


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